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Os atos lesivos stricto sensu da lei anticorrupção

O percurso de responsabilização passará, de início, pela relação estabelecida entre a conduta e a pessoa física, com predomínio da teoria subjetiva; se nada ficar comprovado, inexistirá a prática do ato ofensivo, logo, será extinta qualquer investigação tendente a identificar eventual responsabilização da pessoa jurídica envolvida.

21/9/2023

A lei anticorrupção (lei 12.846/13) designa como ato lesivo as hipóteses especificadas nas quais considera ter sido vitimada a Administração Pública. De acordo com o texto legal as hipóteses previstas no normativo poderão resultar de atos voluntários e, até mesmo, involuntários; poderão, ainda, advir de condutas omissivas, como, também, de condutas comissivas.

Dependendo da situação concretamente ocorrida a elas são acostados, pelo normativo, o cardápio de sanções administrativas e judiciais correspondentes, deixando certa margem de flexibilidade para que os apenamentos sejam adequadamente identificados para serem aplicados nas situações de infração ocorridas.

Agora é forçoso sublinhar que, ao examinar tais hipóteses de atos lesivos, constata-se que de 11 hipóteses assentadas no art. 5º, da lei em apreço, há, efetivamente, somente 3 delas que poderiam ser consideradas atos lesivos anticorrupção em sentido estrito, uma vez que as demais hipóteses contém aplicabilidade em situações que, não necessariamente, tenha havido a prática de corrupção, a maior parte delas, destaque-se, no ambiente licitatório e de contratos administrativos.

Referimo-nos, aqui, portanto, às hipóteses que designamos a) vantagem indevida, b) participação econômica ou financeira na prática de atos lesivos e c) a pessoa interposta, as quais consideramos se tratar stricto sensu e que serão objeto das presentes investigações, esclarecendo ao interessado na matéria que as demais hipóteses já foram por nós examinadas noutra oportunidade.1

1. Vantagem indevida2

A lei anticorrupção considera ofensa à Administração Pública o ato de prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público ou a terceira pessoa a ele relacionada.

Prometer consiste na exteriorização, oral, escrita ou gestual, de alguém em favor do destinatário da mensagem – ou de um terceiro que aquele indique –, no sentido de que se pretenda praticar determinado ato em seu favor, condicionado ou não à adoção, pelo destinatário, de determinada conduta. A ênfase, no caso, é de se dar esperança, ao destinatário, de que, com elevado grau probabilístico, haverá uma recompensa, determinada ou determinável, direta ou indiretamente em seu favor, caso ocorra determinado ato ou evento, recompensa essa predominantemente de caráter monetário ou patrimonial. A promessa, no caso, poderá consumar-se enquanto esperança transmitida ao destinatário, mas não com a entrega do objeto prometido, quer por discordância daquele que seria beneficiário, quer por descumprimento daquele que anteriormente prometera, quer ainda por fato estranho a ambos; poderá, ainda, efetivamente concretizar-se, mediante a outorga do benefício na sua integralidade, ou, tendo parte do benefício anteriormente prometido efetivamente concretizado em favor do beneficiário ou do terceiro.

Oferecimento, por sua vez, é a mensagem oral, escrita ou gestual na qual o agente ativo deseja, subsequentemente, transferir ao destinatário da comunicação – ou a terceiro indicado – determinado benefício financeiro ou patrimonial em retribuição a determinado agir do beneficiário, passado ou futuro, que guarde nexo de pertinência lógica com o benefício auferido ou a ser auferido pelo ofertante da vantagem. A oferta poderá consumar-se enquanto oferecimento, mas, finalisticamente, frustrar-se, por fato do destinatário, do próprio ofertante ou de terceiro; o oferecimento encerra-se em si mesmo, formalizando a lesão.

Dar, a seu turno, consiste na entrega efetiva de algum benefício, mais das vezes financeiro ou patrimonial, por meio de uma mensagem oral, escrita ou gestual, ou, ainda, mediante a tradição de determinado bem móvel ou imóvel ao beneficiário da mensagem ou a terceiro por ele indicado. A ênfase aqui reside na contemporaneidade da transferência e da mensagem correspondente, diferentemente do que se passa no prometer ou no oferecer, que podem frustrar-se no que atina ao resultado substancialmente pretendido de transferir-se determinado benefício; o dar, diferentemente, pressupõe a efetivação, a implementação, a concretização, consumando-se.

A partir dessas condutas do sujeito ativo (prometer, oferecer ou dar) a hipótese-tipo vai sendo confeccionada com o respectivo objeto, qual seja, com a saturação do que consista a vantagem indevida. Essa expressão sugere, de pronto, tratar-se de algo positivo – visto sob o prisma do beneficiário, claro –, pois vantagem, como se sabe, é o antônimo de desvantagem, algo negativo; sugere, ademais, tratar-se de algo que, em circunstâncias de normalidade, não seria devido pelo sujeito ativo, logo, não se tratando d’algo devido; a vantagem, no caso, sugere, predominantemente, ser material, monetária ou patrimonial. É o caso de entregar dinheiro; prometer dar uma passagem aérea; arcar com custos de hospedagens, dar um automóvel etc.

Mas, para nós há a possibilidade da vantagem não propriamente consistir nessas espécies, como a que ocorre em prometer-se dar um emprego de destaque na pessoa jurídica proponente, quando o agente desligar-se da entidade pública ou beneficiando um terceiro, como o que se passa com parentes e amigos, ou, ainda, receber uma promoção funcional até mesmo indevida, fruto de gestões do agente ativo junto à alta esfera administrativa ou política da entidade pública ao qual pertença o beneficiário da vantagem.

2. A participação econômica ou financeira na prática de atos lesivos3

A lei considera ato lesivo à Administração Pública aquele, comprovadamente, consistente em financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos atos ilícitos previstos na lei em apreço.

Volta-se, claramente, para atingir aqueles sujeitos que contribuam, financeira ou patrimonialmente, para a prática do ilícito. Financiar, no caso, consiste na entrega de recursos, capitais ou fundos; custear, em suportar despesas, encargos ou custos; patrocinar, finalmente, no ponto sob destaque, apoiar e estimular, com ou sem instrumentalização monetária ou patrimonial, a prática do ato lesivo.

O legislador, contudo, sabendo que de antemão não poderia vislumbrar todas as possibilidades de condutas passíveis de serem previamente surpreendidas na rica realidade ontológica, recorreu à expressão “de qualquer modo subvencionar” para com ela abranger todas as maneiras, formas e todos os títulos pelos quais o agente ativo possa contribuir, financeira ou patrimonialmente, para a ocorrência do ilícito, como o que se passa com o comodato de instrumentos eletrônicos para escutas propiciando a prática do ato lesivo.

A propósito, os atos lesivos a que se refere o preceptivo consistem em todas as infrações praticadas ou tentadas contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira, tal como previstas e especificadas na própria lei, logo, não atingindo as hipóteses-tipo infracionais ou ilícitas previstas noutros diplomas legislativos, como as disciplinadas pelo Código Penal, cominadas pela legislação anticoncorrencial ou aquelas previstas no conjunto de normas gerais de natureza licitatório-contratual.

Limita-se, portanto, segundo o preceptivo em destaque, a identificar e responsabilizar os financiadores dos ilícitos, ou seja, aqueles que, efetivamente, não o pratiquem, mas, sim, contribuam, relevantemente, para que a prática seja efetivamente concretizada.

3. A pessoa interposta4

Considera-se infração contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira, a utilização de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados.

A hipótese-tipo nitidamente se volta para a conduta ardilosa e dissimulada do agente que procura eclipsar, com seu agir, seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos a serem praticados, para tanto intrometendo entre si e a Administração Pública determinada pessoa física ou jurídica.

A interposição, no caso, no que diz respeito à pessoa jurídica, poderá tanto se referir à sociedade ou companhia especificamente criada para tal finalidade, ou, diferentemente, utilizar-se de pessoa jurídica anteriormente constituída.

Evidentemente o ônus probatório é delicado, pois com exceção da localização de contratos de gaveta, ajustes escritos inominados detalhadores da estrutura do ardil e das metas ilícitas almejadas ou, ainda, revelações decorrentes da celebração de acordos de leniência, costuma-se enfrentar intensa dificuldade para surpreenderem-se estruturas envolvendo interpostas pessoas.

Milita, ainda, em desfavor da prática ilícita, a incansável determinação dos países mais desenvolvidos de coibirem atos ilícitos praticados por empresas off-shore sediadas em paraísos fiscais, assim como no sentido de não mais permitirem a abertura e manutenção de contas numeradas e inominadas em bancos situados em países que, até o final do século XX, admitiam tal prática.

Agora, uma vez identificada e comprovada a estrutura, o preceito em tela volta-se para atingir o arquiteto da estrutura dolosa de interposição, e não o agente ou a interposta pessoa em si, que estará sujeita a outra hipótese-tipo prevista em lei. Realmente, o comando em questão nitidamente procura identificar – e, posteriormente, responsabilizar – o agente criador e implementador da interposição, com isso combatendo o agir ardiloso e doloso que procura enganar a Administração Pública, seja nacional seja estrangeira.

4. A aferição subjetiva instrumental para permitir a responsabilização objetiva

Ao concluir as presentes considerações, não poderíamos deixar de gizar um aspecto que se nos mostra de bastante relevo.

Como se sabe, a lei anticorrupção, expressamente, estabelece ser objetiva a responsabilidade da pessoa jurídica (art. 2º).

Mas, enquanto a responsabilidade objetiva é claramente atribuída à pessoa jurídica, tal somente ocorrerá após ficar comprovada a prática de atos lesivos por meio de pessoas físicas, agentes ou representantes da pessoa jurídica. E tal se dará, predominantemente, por meio da identificação de condutas catalogadas pela lei anticorrupção que somente resultam da prática dolosa ou culposa grave.

Esse ponto possui extrema importância e merece ser aqui sublinhado: para ocorrer a responsabilização objetiva da pessoa jurídica, deverá precedentemente restar provada e escrutinada a conduta subjetivamente movida por dolo ou culpa grave dos seus agentes, dado que todas as ações consideradas lesivas à Administração Pública, em sentido estrito, tal como relacionadas no seu artigo 5º, pressupõem uma conduta instruída, repita-se, por dolo ou culpa grave de agentes.

A esse propósito, podemos desde logo adiantar que os verbos utilizados pelo dispositivo, no tocante à materialização do ilícito, em sentido estrito, remetem, invariavelmente, a uma conduta comissiva, deliberada pelo agente.

Assim, associando-se uma conduta do agente da pessoa jurídica com qualquer um dos verbos utilizados pela lei anticorrupção, nos aludidos dispositivos em sentido estrito, como prometer, oferecer, dar, financiar, custear, patrocinar, subvencionar, ocultar ou dissimular, e a partir dessa associação identificar-se uma prática lesiva, restará configurada a conduta dolosa ou culposa grave instrumental para, aí sim, poder cogitar-se da imposição de uma sanção à pessoa jurídica correspondente.

Afigura-se, à evidência, de clareza meridiana, para nós, que a responsabilização objetiva da pessoa jurídica será uma responsabilidade consequente à identificação da conduta que, subjetivamente movida por dolo ou culpa grave, venha a ser reconhecida e declarada em desfavor dos seus agentes e representantes.

Uma vez provada a prática, o que deverá resultar, insistimos, do querer doloso ou culposo grave, aí sim, somente neste instante, será disparada a responsabilização objetiva, apenando a pessoa jurídica correspondente.

Como se percebe, o percurso de responsabilização passará, de início, pela relação estabelecida entre a conduta e a pessoa física, com predomínio da teoria subjetiva; se nada ficar comprovado, inexistirá a prática do ato ofensivo, logo, será extinta qualquer investigação tendente a identificar eventual responsabilização da pessoa jurídica envolvida; caso, contudo, haja a identificação da conduta da pessoa física, resultante de dolo ou de culpa grave, acarretadora do ato lesivo previsto na lei anticorrupção, então opera-se a transitividade para a pessoa jurídica, responsabilizando-a e a apenando.

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1 Marcio Pestana. lei anticorrupção. Exame sistematizado da lei 12.846/13. Barueri : Ed. Manole.

2  Art. 5º da lei 12.846/13: “Constituem atos lesivos à administração pública, [...] assim definidos: I – prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada”.

3 Art. 5º da lei 12.846/13: “Constituem atos lesivos à administração pública [...] assim definidos: [...] II – comprovadamente, financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos atos ilícitos previstos nesta lei”.

4 Art. 5º da lei 12.846/13: “Constituem atos lesivos à administração pública, [...] assim definidos: [...] III – comprovadamente, utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados”.

Marcio Pestana
Sócio do escritório Pestana e Villasbôas Arruda Advogados.

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