Migalhas de Peso

A responsabilidade objetiva dos bancos nos chamados "golpes do delivery" envolvendo motoboys

Combate ao crime organizado, que é um dever de todo o cidadão, mas sobretudo da esfera pública em sua área penal e policial, deve ser acompanhado da tomada de providências pelos Bancos para que o famigerado “golpe do delivery” não mais tenha lugar em nosso solo pátrio.

12/9/2023

O avanço tecnológico experimentado nas últimas décadas por toda a sociedade nem sempre veio acompanhado da observação legal e ética quanto à sua aplicação em diversos cenários sociais.

Um exemplo disso são os crimes envolvendo os chamados motoboys, em que há diversas modalidades, desde furtos de celulares, até pessoas jurídicas fake que interceptam ligações telefônicas e enviam criminosos com as maquininhas de débito e crédito para a entrega de um produto ou serviço, restando viciados aqueles aparelhos.

Nesse passo, tornou -se recorrente também a prática do chamado “golpe do delivery”, em que uma organização criminosa contata a vítima, muitas vezes uma pessoa idosa, informando que deve ser entregue uma encomenda vinda de alguma empresa.

A encomenda por variar, desde objetos simples, até cestas de aniversário, por exemplo. Os criminosos chegam a dar à vítima a alternativa de retirar a encomenda em alguma loja ou solicitar entrega via motoboy, convencendo a pessoa a aceitar o segundo caminho. Quando é feita a escolha por essa segunda via, o contato avisa que será cobrado um custo de entrega/frete, por meio de cartão de débito. O motoboy chegou ao endereço da pessoa, e na primeira tentativa que esta empreende para passar o cartão de débito, a maquininha acusa “erro”; depois, é tentado o pagamento via cartão de crédito, onde aparece “o mesmo erro”.

Por vezes, o motoboy chega a simular que estava ligando para sua “sede”, reclamando dos problemas com a máquina de pagamento. Ato contínuo, o motoboy se evade do local, “para trazer outra máquina”, mas aí já é tarde, pois a maquininha original já realizou um débito na conta das vítimas, às vezes de valor bastante elevado.

Em alguns casos, o Banco liga em seguida para a vítima, questionando se havia sido feita mesmo tal transação. Entretanto, tal conduta não elide a responsabilidade objetiva da Instituição Financeira em impedir que uma operação de débito ou crédito, completamente fora dos padrões da conta das pessoas lesadas, fosse levada a cabo.

Nosso escritório recentemente defendeu uma dessas vítimas, o que culminou pela prolação da Sentença, confirmada em Segunda Instância, na qual a Justiça Estadual confirmou que, embora o crime tenha sido perpetrado por terceiros, o Banco também possui responsabilidade pelo ocorrido.

De fato, constou da Sentença no processo n. 1008014-47.2023.8.26.0002, do Juizado Especial Cível de Santo Amaro, em São Paulo, Capital:

“Dispõe o artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor, que: “O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. Parágrafo primeiro - O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - o modo de seu fornecimento; II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi fornecido” (destaquei).

É exatamente essa a hipótese dos autos, uma vez que, por ter prestado serviço falho, que não ofereceu a segurança que dele seria razoavelmente esperável, deve o Banco responder pelos prejuízos financeiros causados aos demandantes.

Isso porque, o banco lucra ao vender a ideia de facilidade adicional representada pela prestação de serviço 24 (vinte quatro) horas, cujas operações são realizadas por intermédio de máquinas e aparelhos celulares à disposição do consumidor, com evidente facilitação para o consumo dos produtos bancários e consequente aumento da lucratividade.

Há, porém, o reverso da moeda: se o serviço fornecido se mostra falho, permitindo a ação de marginais, o fornecedor responde objetivamente por danos causados aos consumidores por tal ação.

E tal responsabilidade deriva da obrigação imposta ao fornecedor de garantir a plena segurança na utilização do serviço, o qual, por sua própria natureza, reveste-se de periculosidade, ante a facilitação do uso do dinheiro, que expõe o consumidor à vulnerabilidade em alto grau, fato que se comprova diariamente em qualquer meio de notícias”.

A decisão ainda recordou que essa periculosidade já é reconhecia pelo ordenamento jurídico, especialmente pela lei 7.102/83, que estabeleceu a obrigatoriedade de prestação de serviços de segurança em razão dos riscos inerentes às atividades bancárias.

Por fim, o Magistrado afirmou que não há que se falar em isenção de responsabilidade por caso fortuito externo, pois, embora imprevisto, o chamado “golpe do delivery” é fato previsível e guarda ligação direta com o âmbito da relação jurídica contratual que une o Banco fornecedor e o usuário de seus serviços.

Nem se diga que a Instituição Financeira não tinha como evitar a fraude, porque a operação em valor elevado, segundo a Sentença, totalmente fora dos padrões dos consumidores, era evidente sinal dessa mesma fraude, e assim deveria ter sido obstaculizada pelo Banco, que não o fez.

Esta recente decisão, agora de 2023, confirma a jurisprudência remansosa de nossos Tribunais:

“Importante ressaltar que o caso se submete às regras consumeristas, inclusive por força da súmula 297 do STJ que dispõe que “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras.”

Assim, e considerando a hipossuficiência técnica e econômica da autora, era do banco o ônus da prova de que agiu com diligência e as operações refutadas não advieram de falha na prestação de seu serviço, ônus do qual não se desincumbiu.

A alegação da autora, de que teria sido vítima de fraude, restou incontroversa e o réu se ateve a sustentar a culpa exclusiva da vítima que entregou cartão e senha pessoal a terceiros, possibilitando assim a ocorrência da fraude.

[...] Apega-se em sua defesa à inexistência de conduta lesiva de sua parte, o que é insuficiente a configurar a excludente de responsabilidade, que no caso é objetiva, nos termos do artigo 14 da Legislação Consumerista.

Ademais, importante notar que a instituição financeira não se atentou à mudança repentina no perfil da movimentação da conta bancária da autora.

Foram efetuadas sucessivamente compras na função crédito e saques na função débito, em valores elevados, que destoam do perfil de consumo da autora.

A atuação diligente do banco, conferindo a devida atenção à movimentação repentina de altos valores, em total dissonância com a movimentação padrão do consumidor, por certo, teria evitado a concretização da fraude.

Dessa forma, não há como se afastar a responsabilidade do banco réu” (TJSP, Acórdão na Apelação Cível 1000399-64.2022.8.26.0576, 23ª Câmara de Direito Privado, Relator Desembargador Virgílio de Oliveira Junior, j. 24.1.23) (destacamos).

“Não se pode aceitar que o ocorrido com a apelada seja classificado como fortuito externo, de modo a reconhecer a excludente de responsabilidade das instituições financeiras. No caso, a apelada foi vítima de fraude, situação que não pode ser classificada como imprevisível e inevitável, ainda mais se considerada a inequívoca hipossuficiência da consumidora.

[...] Portanto, não há falar em caso fortuito, ou mesmo culpa exclusiva do consumidor, já que inexistente qualquer indício de que tenha a apelada tido algum benefício ante a situação descrita nos autos, que lhe imponha a responsabilidade integral [...].

Desse modo, por inexistentes as excludentes de responsabilidade, seja o fortuito externo, seja a culpa exclusiva da vítima, aplicável à hipótese o Código de Defesa do Consumidor, ante o que dispõe a Súmula 479 do Colendo Superior Tribunal de Justiça, com a inversão do ônus probatório, consoante dispõe o artigo 6º, VIII do diploma consumerista, ante a vulnerabilidade técnica e informacional da apelada [...].

Feitas estas considerações, as casas bancárias deverão suportar as consequências do risco de suas atividades, nos termos do artigo 14 do CDC, não sendo suficiente para afastar a responsabilidade e demonstrar a inexistência de falha nas transações questionadas.

Quanto ao dano moral, a não contenção da fraude, o dissabor causado pela perda automática de parte dos vencimentos e a necessidade de ajuizar ação para ressarcimento do prejuízo suportado infligiram aflições que ultrapassam o mero aborrecimento e que justificam a fixação de indenização” (TJSP, Acórdão na Apelação Cível n. 1000584-36.2022.8.26.0210, 14ª Câmara de Direito Privado, Relator Desembargador César Zalaf, j. 20.1.23) (destacamos). 

“INDENIZAÇÃO – CARTÃO BANCÁRIO – DESCONTO EM CONTA CORRENTE E CARTÃO DE CRÉDITO – DESPESAS IMPUGNADAS - USO INDEVIDO MEDIANTE FRAUDE – "GOLPE DO MOTOBOY" - TRANSAÇÕES QUE FOGEM INTEIRAMENTE AO PERFIL DO CORRENTISTA – DANO MATERIAL - RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO FORNECEDOR DO SERVIÇO, CONSIDERADA FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO – INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA - DANO MORAL CONFIGURADO – MONTANTE ADEQUADO” (TJSP, Apelação Cível no Processo n. 1003853-61.2019.8.26.0704, 22ª Câmara de Direito Privado, Relator Desembargador Matheus Fontes, j. 02.06.20, publicação 02.06.20) (destacamos).

Por todos estes motivos, não restam dúvidas de que o combate ao crime organizado, que é um dever de todo o cidadão, mas sobretudo da esfera pública em sua área penal e policial, deve ser acompanhado da tomada de providências pelos Bancos para que o famigerado “golpe do delivery” não mais tenha lugar em nosso solo pátrio.

Dávio Antonio Prado Zarzana Júnior
Sócio de Gueller e Vidutto Sociedade de Advogados. Presidente da Comissão de Direito Natural e das Relações Sociais da 116ª Subseção da OAB/SP.

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