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As ocupações irregulares e a formação das cidades brasileiras

A formação das cidades, especialmente as ocupações irregulares nos grandes centros urbanos, depende da concretização dos direitos fundamentais, dentre eles a REURB.

24/8/2023

O Brasil é, desde a Colônia portuguesa, um país caracterizado por fortes desigualdades econômicas, qualificadas e mantidas pela distribuição de renda desproporcional, com formação de castas e exclusão periférica dos mais carentes. Esse cenário se repete no que se relaciona ao mercado imobiliário urbano, no qual as grandes propriedades se acumulam nas mãos de poucas pessoas.

Importante mencionar que a questão habitacional digna é existente em todo o mundo, pois: “[...] Desde 1970, o crescimento das favelas em todo o hemisfério sul ultrapassou a urbanização propriamente dita... Na Amazônia, uma das fronteiras urbanas que crescem com mais velocidade em todo o mundo, 80% do crescimento das cidades tem-se dado nas favelas, privadas, em sua maior partem de serviços públicos e transporte municipal, tornando assim sinônimos “urbanização” e “favelização” (DAVIS, 2006, p. 27).

A origem da desigualdade se encontra no passado colonial e nas instituições relacionadas à escravidão e, especialmente, a desigual distribuição de terras: “[...] apesar da crescente urbanização e da perda de poder político das elites rurais em muitos países da região, o problema da distribuição de terras não foi resolvido” (OSÓRIO, 2004, p. 17-18).

A história das políticas públicas de habitação no Brasil guarda estreitas relações com o processo de urbanização nacional, originado, especialmente, do êxodo rural iniciado nas primeiras décadas no Século XX, que levou a população do campo às cidades, a partir do início da industrialização

O processo brasileiro de urbanização elevou a demanda por empregos, moradia e serviços públicos. A partir da crise mundial de 1929, passando pela 2ª Guerra Mundial, até o final da década de 1970, “[...] o Brasil foi marcado por um processo de concentração progressiva e acentuada da população em núcleos urbanos” (ROLNIK, 2006, p. 199).

Em decorrência do acelerado êxodo rural, foi necessária a formulação e a implantação de políticas de habitação, que, entretanto, não foram capazes de conter a utilização e a construção irregular. Dessa forma, o processo de urbanização ocorrido no Brasil deu-se, notadamente, de maneira informal.

Entre 1950 e a década de 1980, a população pobre dos grandes centros urbanos teve como principal meio de acesso à casa própria o loteamento periférico, todavia, produzidos ilegalmente, por falta de titulação da propriedade e pelo descumprimento das normas urbanísticas (LAGO; RIBEIRO, 1996, p. 43-44).

Esse quadro de informalidade na construção civil teve como resultado imediato uma crise no setor imobiliário privado, bem como demonstrou a inefetividade dos programas habitacionais públicos, tais como o extinto ‘BNH’, incapazes de conter as ocupações e construções irregulares e de prover moradia às camadas mais pobres da população.

No início de 1985, com a redemocratização, o setor habitacional apresentava “[...] baixo desempenho social, alto nível de inadimplência, baixa liquidez do Sistema, movimentos de mutuários organizados nacionalmente”, e a expectativa de que as autoridades resolvessem a crise do Sistema sem penalizar os mutuários (AZEVEDO, 1996, p. 79).

Ocorre que a efetivação dos programas habitacionais continuou frágil e deveras ineficiente, submetida às intempéries da política e, especialmente, da concentração das finanças públicas e de sua gestão no governo central, de maneira que sequer a redemocratização foi capaz de dar concretude aos sistemas habitacionais.

A descontinuidade das ações governamentais, a redução dos investimentos habitacionais, a fragilidade ou ausência de políticas urbana, fundiária e habitacional e a postergação do processo legislativo para aprimorar os instrumentos de intervenção urbana contribuem para manter o conflituoso e desigual quadro urbano (CHAFFUN, 1996, p. 23).

Nesse contexto, os grandes latifundiários converteram-se em negociadores imobiliários, passando a representar, muitas vezes, a única alternativa viável para que as pessoas destituídas de capital bastante para aquisição de imóveis à vista. Nesse contexto é que se fortaleceram os incorporadores imobiliários no País.

O pequeno especulador cedeu lugar, na dinâmica de constituição do espaço construído, às grandes empresas imobiliárias, especialmente a partir da instituição do Sistema Financeiro de Habitação, que consolidou “[...] a instável figura do incorporador”, que surgiu na década de 1940 (LAGO; RIBEIRO, 1996, p. 42).

Suas ações, entretanto, eram limitadas “[...] pelas dificuldades decorrentes da inexistência de um mecanismo capaz de centralizar poupanças para financiar os empreendimentos” (LAGO; RIBEIRO, 1996, p. 42), produzindo o surgimento de contratos de aquisição caracterizados por cláusulas leoninas e juros acima dos marcos legais.

Para o Poder Público é inconveniente garantir apenas a titulação do lote, pois, muitas vezes, “[...] a forma como a área foi ocupada consagra injustiças”. Há assentamentos “[...] em que alguns lotes têm tamanho bastante superior à média dos demais lotes e, simultaneamente, há lotes encravados, sem acesso para o logradouro público” (ALFONSIN, 2000, p. 212).

Além disso, “[...] as favelas não são dotadas da menor infraestrutura, não sendo nem ao menos servidas por água potável” (ALFONSIN, 2000, p. 212). Ocorre que o fato de se ter um teto sobre a cabeça não equivale à concretização suficiente do direito fundamental à moradia digna.

Nesse sentido, o assunto “moradia” foi aventado na Conferência das Nações Unidas para Assentamentos Humanos, de 1976, realizada no Canadá, que implicou na Declaração de Vancouver sobre Assentamentos Humanos, da qual restou assentado que “[...] a moradia adequada constitui um direito básico da pessoa humana” (SARLET, 2002, p. 138).

Em que pese os diversos instrumentos internacionais que consagram o direito à moradia, assim como o fato de constar, expressamente da Constituição de 1988, no Título destinado aos direitos fundamentais, as políticas públicas voltadas à sua promoção são insuficientes, qualitativa e quantitativamente.

Apesar de não existir uma estimativa precisa do número total de famílias e domicílios instalados em favelas, loteamentos e conjuntos habitacionais irregulares, clandestinos e outras formas de assentamentos irregulares, “[...] é possível afirmar que o fenômeno está presente na maior parte da rede urbana brasileira” (ROLNIK, 2006, p. 199).

Os mercados informais e populares produziram o aumento do número de projetos de urbanização e melhorias habitacionais, todavia, de forma pontual e, em regra, incompleto, sem “[...] remover as diferenças físicas, urbanísticas, administrativas e simbólicas que separam esses assentamentos da cidade formal” (ROLNIK, 2006, p. 204).

Esses fatores “[...] repercutem fortemente na inserção política destes moradores. Boa parte destes projetos de urbanização tem circulado internacionalmente como “boas práticas”, mas dificilmente se constituem em ‘boas políticas’ no sentido abrangente, massivo e universalizante do termo” (ROLNIK, 2006, p. 204).

O desafio de implementar “[...] implementar uma política para ampliar o acesso à terra urbana para a população de baixa renda em condições adequadas” é elemento fundamental para “[...] enfrentar o passivo de destruição ambiental e exclusão social que marca nosso modelo de urbanização” (ROLNIK, 2006, p. 204).

Parta tanto, faz-se necessário “[...] mudar a agenda do planejamento e gestão do solo urbano que, na maior parte das cidades brasileiras, sempre esteve mais voltada para a cidade formal, raramente dialogando com os mercados de baixa renda” (ROLNIK, 2006, p. 204).

Um processo de regularização fundiária sustentável demanda “[...] a adoção de mecanismos de segurança da posse, trabalhando para que os possuidores recebam o título da respectiva propriedade ou a concessão de uso para fins de moradia na área”, pois é necessário “[...] formar raízes, evitar a ‘expulsão branca’” (BORATTI, 2007, p. 403).

Isso evita que, anos depois, necessite-se tratar da regularização de outras áreas ambientalmente sensíveis pelas mesmas pessoas que já a obtiveram. A integração à cidade formal implica na regularização urbanística, jurídica e registraria, de modo que os cidadãos destinatários do projeto se integrem à cidade formal (BORATTI, 2007, p. 403).

Neste viés, o direito à moradia é um conceito complexo, que não demanda apenas uma proteção contra o clima ou um local no espaço que sirva de ponto de referência, tendo em vista que a regularidade imobiliária a integra de forma inexorável, tornando a Reurb um instrumento público essencial à própria dignidade.

A demanda da população por espaços urbanos tem se intensificado ao longo das décadas: “[...] em detrimento desta procura pelo solo urbano, para fins de construção de moradia, dois são os fatores sociais decorrentes: escassez e aumento do valor” (GUERINI; MARCHESE; VIEIRA, 2019, p. 167).

Dessa forma, a intervenção estatal no sentido da promoção do direito à moradia é indispensável, especialmente no contexto de desigualdade que caracteriza o Brasil, não apenas no que concerne à aquisição de uma moradia, como, também, à sua regularização jurídica, econômica, social e registral.

Mas a correção das deficiências demanda um sistema de controle de centros múltiplos, mediante desenvolvimento, moralidade, inteligência e respeito próprio, bastantes para permitir os processos automáticos que precisam incidir em todos os pontos nos quais a vida humana esteja em perigo ou a personalidade humana seja ameaçada (MUMFORD, 1998, p. 598).

Nesse sentido, a REURB definida pela lei 13.465/2017, deve ser obrigatoriamente incluída dentre as políticas públicas habitacionais definitivas da União, Estados, DF e Municípios, por ser indispensável à concretização plena do direito fundamental à moradia, permitindo ao proprietário, inclusive, certas operações contratuais e registrais, a exemplo da alienação.

A REURB, portanto, é essencial ao exercício das faculdades do domínio, “[...] radicada na faculdade de dispor: quem pode dispor do que é seu, a princípio, pode dispor no todo ou em parte, e, então, para dispor em parte, pode parcelar, lotear/desmembrar” AMADEI; PEDROSO; MONTEIRO FILHO, 2017, p. 66).

Neste prisma, a Reurb é um procedimento indispensável à regularização da situação jurídica e urbanística de imóveis construídos irregularmente, precipuamente em metrópoles, inclusive, em áreas de risco, garantindo a dignidade dos moradores das localidades, de maneira a se concretizar, de maneira integral, o referido direito fundamental.

Isso porque as ocupações irregulares constituíram comunidades inteiras, com dinâmicas próprias e tradições específicas, de maneira que sua desconstituição, além de, evidentemente, prejudicar o direito fundamental à moradia, pode destruir relações interpessoais e comunitárias constituídas durante décadas.

Verifica-se, portanto, que as políticas públicas habitacionais brasileiras, desde o seu início, foram incapazes de efetivar, minimamente, o direito fundamental à moradia digna e a Reurb surgiu justamente como um procedimento dirigido a tornar regulares as habitações construídas fora dos padrões legais e urbanísticos, voltando-se a dar concretude ao direito fundamental à moradia digna.

Neste vértice,  conquanto tenha tal objetivo, a Reurb, especialmente em decorrência da enorme burocracia estatal que envolve as políticas públicas em geral, é incapaz de atingir seu objetivo de maneira eficaz nas metrópoles, sendo imperioso um caráter programático para efetivo impacto da Reurb no Brasil, em relação às políticas públicas habitacionais, especialmente quanto à concretização do direito fundamental à moradia digna, especialmente nas grandes cidades.

Portanto, a formação das cidades, especialmente as ocupações irregulares nos grandes centros urbanos, depende da concretização dos direitos fundamentais, dentre eles a REURB, colacionando um feixe de interesses e ações voltados às populações mais carentes e que podem mudar o caráter vulnerável da irregularidade fundiária brasileira.

Robson Martins
Doutor e Mestre em Direito. Professor Universitário. Procurador da República. Promotor de Justiça (1999-2002). Técnico da JFPR (1993-1999).

Érika Silvana Saquetti Martins
Doutoranda Dto ITE. Mestre Dto. UNINTER. Mestranda Pol Públicas UFPR. Espec Dto e Proc Trabalho, Dto. Público e Notarial e Registral. Professora Pós Graduação latu sensu Direito. Advogada.

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