Migalhas de Peso

O parcelamento no cartão de crédito ou me engane que eu gosto

Os usuários desses parcelamentos são confrontados com os juros cada vez mais elevados – na medida em que o seu endividamento e, consequentemente, o risco dos credores das respectivas faturas aumenta progressivamente.

16/8/2023

A “bola da vez” na economia em geral e nos meios bancários no particular é a questão do parcelamento das compras feitas por cartões de crédito. Ou seja, o devedor da fatura não tem recursos para fazer o pagamento integral, adimplindo somente uma parte da dívida – no pior cenário não pagando nada - e jogando tudo ou a diferença para a próxima fatura, cujo valor será agregado às compras futuras, nelas incluídas as parcelas a vencer. Podemos chamar esse processo de “roda viva”, de lenta “morte financeira” ou de “bola de neve”.

Os usuários desses parcelamentos são confrontados com os juros cada vez mais elevados – na medida em que o seu endividamento e, consequentemente, o risco dos credores das respectivas faturas aumenta progressivamente. Já se falou a esse respeito que juros nesse patamar poderiam ser considerados como “pornográficos”, o que não é tecnicamente verdadeiro. Isto porque os juros – como se sabe desde tempos muito antigos - são a expressão combinada do uso do dinheiro alheio em determinado espaço de tempo. Quanto maior o valor da dívida e quanto maior o espaço de tempo entre o nascimento daquela e a data do pagamento mais elevados serão os juros das operações. Isso sem esquecer o perfil do devedor e o fato de que as garantias que ele pode oferecer não são lá muito eficazes – o que de maneira geral é a realidade econômica e jurídica no Brasil.

A origem de dívidas dos cartões de crédito é múltipla e nada desconhecida: (i) necessidade de financiar uma compra que não pode ser paga à vista; (ii) mesmo quando o usuário pode pagar à vista, ele opta pelo financiamento porque não há desconto para a liquidação imediata ou ele é muito pequeno diante da remuneração do valor correspondente se for aplicado no mercado financeiro; (iii) o parcelamento libera o usuário para novas compras; e (iv) a dívida aumenta no mesmo passo em que o usuário, movido pelo desejo até mesmo inconsciente provocado pela publicidade avassaladora, não resiste ao apelo “X vezes sem juros”. E aqui o bicho pega pois, como já foi dito acima, não há crédito sem juros.

Nesse ambiente a publicidade que teria o importante papel de informar sobre os bens que podem ser adquiridos no mercado e suas características assumiu abertamente a função de provocar desejos intensos, despertando uma vontade inexorável de se comprar alguma coisa de que não há necessidade por um preço inteiramente desconexo da utilidade e do custo de produção.

Veja-se que as estatística demonstram, segundo o Datafolha, que 75% da população brasileira usou o crédito parcelado sem juros no ano de 2022, tendo movimentado um trilhão em compras, o que não é nada desprezível. Ou seja, descartar essa ferramenta é uma tarefa muito complicada e sensível, capaz de descarrilhar o trem da economia, já bem estragada entre nós.

O que existe, na verdade, é uma aparência enganosa de que o valor à vista é igual ao valor parcelado, seja em duas, três ou até mesmo dez vezes, sob o regime do pagamento sem juros. E é interessante observar que nas compras feitas on line não costuma aparecer a possibilidade para um comprador de um desconto para pagamento à vista, no boleto bancário ou na próxima fatura do cartão de crédito; ou o desconto é insignificante, sem interesse para o incauto comprador. Este poderia até mesmo pensar que os bancos são burros ou mesmo muito bonzinhos porque aceitariam receber ao longo do tempo um valor sem juros e defasado pela inflação sempre presente.

Nada disso, os juros já estão antecipadamente precificados para o limite máximo da quantidade de parcelas – que incorrem diretamente no preço do produto – e se o cliente aceita pagar duas ou de três parcelas, isso tão somente o livra de um financiamento mais longo, enquanto e o banco enriquece pelos juros antecipadamente recebidos. Assim sendo, mesmo o comprador lúcido, que tem recursos para pagar à vista, entra no jogo, aplicando na poupança o dinheiro correspondente, pagando as faturas mês a mês e recuperando um pouco dos juros embutidos no preço do produto adquirido.

Falando ainda da posição dos bancos o jogo da proliferação dos cartões e do crédito rotativo em um primeiro momento os beneficia porque ganham com sua administração mediante os juros cobrados, exercendo um incentivo negativo para proporcionar aos comerciantes uma situação melhor do que esse parcelamento. Esses continuam no jogo, que é uma prática geral, mesmo que o preço dos produtos seja inflacionado pelos juros correspondentes. De um lado o comprador assume os juros (em boa parte inconscientemente), somente fazendo a conta de que a prestação cabe no seu bolso; e, de outro porque não há sistema concorrente que possa oferecer preços e condições melhores.

O problema para os bancos surge quando a inadimplência assume patamares extremamente elevados (realidade atual), dando lugar à liquidação com prejuízo da carteira formada por recebíveis construídos pelas faturas não pagas, diminuído pelas vantagens tributárias correspondentes. Mas enquanto de maneira geral a operação assim formatada der lucro, ela continuará indefinidamente, notando-se mais uma perversidade: os bons pagadores, que resgatam integralmente as suas faturas de cartão de crédito nos seus respectivos vencimentos, pagam por aqueles que não o fazem.

O resultado perverso desse sistema se mostra quando o devedor deixa de pagar o valor cheio de uma fatura, somando-o ao da próxima, em um processo de moto contínuo do que se falou acima. Pior ainda, quando ele estoura o limite do seu cartão de crédito ele adquire um segundo cartão para pagar o primeiro e assim vai se enterrando aos poucos. Sabe-se de devedores que colecionam cartões de crédito da mesma forma como crianças colecionam figurinhas de jogos de futebol. Essa história de multiplicação de cartões nas mãos dos seus usuários tem parentesco com a prole de coelhos: cada vez aumenta mais.

Uma coisa não fica muito bem explicada, ou seja, sabendo ou devendo saber por dever de oficio que o adquirente de novo cartão de crédito está endividado, como se explica que a prancha do navio pirata continue acessível, para que dela se jogue o incauto na boca do crocodilo? Isto porque banqueiro burro já nasceu falido. Não é crível que os bancos não conheçam o risco que assumem em tais circunstâncias, sabendo-se que em muitos casos cartões novos chegam às mãos de pessoas que não os pediram, parecendo ser essa uma estratégia de pescaria de peixes desavisados do perigo de morderem a isca. Na somatória total espera-se que a diferença entre ganhos e perdas seja lucrativa.

No cenário acima os devedores se mostram inadimplentes e vêm procurar nós outros, advogados para fazermos uma mágica e darmos um fim na sua dívida, missão daquelas impossíveis. E aí entra o Judiciário com o seu papel de solucionar esse endividamento, muitas vezes não diferenciando entre o joio e o trigo, considerando que o consumidor é sempre bonzinho e que os bancos são sempre o lobo mau. Para isso o CDC – Código de Defesa do Consumidor se traveste de Código de Defesa dos Coitadinhos.

Um enorme buraco está presente, mostrando-se a preocupação com ele do lado governo, do Banco Central, dos credores e de associações de consumidores, que apareceram com diversas ideias. Uma delas, o “Desenrola Brasil” 'é de curto alcance financeiro, mero paliativo.

Quanto Banco Central - BCB - a sugestão foi direta, pura e simples extinção do rotativo. No seu lugar o saldo devedor não pago seria automaticamente convertido em um financiamento a juros mais palatáveis. Mas, como a própria Autoridade Monetária reconheceu, isso terá de ser mais bem estudado e acrescentamos que precisa ser combinado com muitos gringos, dentro de um modelo do tipo Conselho de Segurança da ONU, cada um podendo exercer um direito de veto, considerando-se que os interesses em jogo têm atores que divergem bastante entre si, de forma especial no curto e no longo prazo. Afinal de contas é melhor ganhar alguma coisa agora, arriscando-se a perder mais no futuro. Lógica econômica ilógica, como se percebe.

É sintomático verificar que associações de consumidores e de varejistas do comércio e até mesmo do turismo se uniram contra a extinção do rotativo, considerando que o BC estaria interferindo indevidamente no assunto, esquecendo-se que o art. 4º, VI da lei 4.595/64 estabelece competência do CMN - Conselho Monetário Nacional para disciplinar o crédito em todas as suas modalidades e as operações creditícias em todas as suas formas, competindo ao BCB cumprir e fazer cumprir, entre outras, as disposições expedidos pelo CMN (art. 8º, “caput”), a par de exercer o controle do crédito sob todas as suas formas (art. 8º, VI). Ou seja, o BC está atuando perfeitamente dentro do seu quintal.1

Na defesa dos comerciantes, foi alegado na mesma matéria supra citada que o BCB estaria interferindo erradamente em uma operação adotada pelos lojistas, que estaria funcionando adequadamente, segundo uma estratégia que consideram melhor para eles, embutindo os juros no preço das vendas, ou assumindo o seu pagamento. Do lado dos bancos foi dito que ficariam bastante incomodados, desejando recuperar a taxa de juros de tais operações que viria a ser reduzida, substituindo o modelo atual por um produto cujo custo cairia no colo do consumidor.

Ainda em referência à fonte citada, mesmo sendo mais oneroso, o parcelamento no cartão de crédito traria mais segurança para os varejistas, a par da liquidez que proporcionam, razão pela qual estimulam essa modalidade de crédito, mesmo que por ela paguem uma comissão que não é barata. O impacto econômico na sua extinção causaria um impacto gigantesco, não substituível esse modelo por uma saída eventual pelo retorno ao sistema de carnês, contratado diretamente junto aos lojistas. Os tempos são bem outros, como se observa.

A Febraban, por sua vez, alega, conforme a mesma matéria, que o sistema é distorcido, tornando-se necessária uma diluição dos riscos entre os diversos elos da cadeia, cabendo atualmente aos bancos suportarem todo o elevado custo da inadimplência, sendo necessário se encontrar uma solução construtiva. Isso parece ser contraditório quando se sabe da chuva interminável de cartões de crédito que cai todos os dias nas cestas dos consumidores, sem que para tanto critérios técnicos de segurança financeira sejam atendidos

Outras soluções são alvitradas, tal como a redução dos custos dos bancos por meio da taxa de intercâmbio cobradas dos lojistas, que é a percentagem paga em cada operação pelo credenciador do estabelecimento comercial ao emissor do cartão, cujo resultado seria pago no final pelo consumidor. Outra ideia difícil de se implementar corresponderia à proporcionalidade entre o valor do bem e o número de parcelas sem juros a serem oferecidas ao consumidor. Por exemplo, uma geladeira poderia ser negociada em até dez parcelas, enquanto um liquidificador ficaria na faixa de três.2

No lado político, segundo a mesma fonte, tem havido reclamações sobre um alegado não comprometimento efetivo dos bancos com a redução desses juros, imaginando-se uma desastrada intervenção do governo no setor ou uma atuação do Congresso em matéria que não seria de sua competência, mas que apresenta um velho apelo de se reduzir os juros na marra, os princípios econômicos que se virem.  

Tudo o que se possa imaginar apresenta custo para um mais agentes do sistema, inexoravelmente, cabendo aqui a velha máxima de que não existe almoço de graça, alguém sempre paga a conta e o consumidor, parte mais fraca e muitas vezes nada desinteressado, assume a maior parte.

A verdadeira solução, de longo prazo – um verdadeiro horror para os governantes – é estabilizar a economia - com a redução significativa da inflação - e o aumento da renda da população. Nesse cenário idílico, o custo inflacionário seria tão pouco relevante, que financiar em parcelas custaria muito barato para os credores, sem significativo aumento dos preços. Os comerciantes fariam a reposição do capital de giro em condições aceitáveis e todo mundo ficaria muito feliz. Não custa sonhar.

Ah, sim! Caberia à reforma tributária reduzir a carga dos impostos, do que resultaria importante redução dos custos em geral e das taxas de juros no particular. Acreditar nisso nem a falecida velhinha de Taubaté, que descanse em paz, enquanto nós outros nos preparamos psicologicamente para botar a mão no bolso quando tal reforma chegar, ajudados se possível por algum psicólogo financeiro.

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1 Veja-se a esse respeito “Associações Criticam fim do parcelamento sem juros no cartão”, Jornal Folha de São Paulo, de 13.08.2023.

2 Cf. “Bancos Pressiona por tarifa no Parcelado, mas há Resistência”, Jornal Folha de São Paulo, de 13.08.2023.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

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