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Contratos de planos de saúde celebrados antes de 1999

Minha percepção individual – após análise de centenas desses contratos – é de que as operadoras de saúde não tinham ainda a dimensão que os planos e seguros saúde tomariam com o passar dos anos.

9/8/2023

No histórico de criação e implementação de planos e seguros saúde no Brasil, temos que, inicialmente, foram criadas as modalidades individuais e familiares – ainda nos anos 1980. Tinha, como regra geral, um vislumbre semelhante ao seguro de vida, que também começou a ganhar força nessa época.

Contudo, os contratos de planos e seguros saúde passaram a ganhar maior escalabilidade nos anos 1990 – oportunidade na qual diversas famílias aderiram ainda no começo dos anos 1990. Nessa ocasião, portanto, não se falava em planos coletivos e sequer havia grande preocupação na elaboração das condições gerais e contratos celebrados. Minha percepção individual – após análise de centenas desses contratos – é de que as operadoras de saúde não tinham ainda a dimensão que os planos e seguros saúde tomariam com o passar dos anos.

Com o crescimento de referidas contratações, que passaram a ser prioridade para a maioria das famílias, surgiu a necessidade de criação de um órgão (ou agência) que regulasse o setor. Com a lei 9.656/98 (a principal lei que regulamenta o setor da saúde suplementar no Brasil) surgiu a Agência Nacional de Saúde (ANS) e a lei 9.961, de 28 de janeiro de 2000 a instituiu como órgão regulador.

Acontece que referida lei (9.656/98) não se aplica aos planos antigos – nomenclatura utilizada para definir qualquer plano ou seguro saúde contratado anteriormente a sua vigência, em janeiro de 1999. Em suma: a lei 9.656/98 não regulamenta nenhum plano ou seguro saúde celebrado antes de janeiro de 1999. Isso porque a Lei não pode retroagir para atingir o ato jurídico perfeito – ou seja, os contratos celebrados antes de sua vigência.

Para os contratos denominados “antigos” – anteriores a 1999 – temos que devem ser regidos pelo texto constante nas próprias condições gerais contratadas na adesão. Inclusive no que tange ao reajuste a ser aplicado nesta modalidade de contrato1.

Muitas pessoas – inadvertidamente – optam por “adaptar” o contrato à lei 9.656/98. Referida situação, como regra geral, não é benéfica para o segurado, culminando no aumento do valor do prêmio (mensalidade) e na redução de direitos (diferente do que é dito pela maioria do setor).

Mas, em relação ao reajuste, como ele ocorre para os planos “antigos”? Referida modalidade de plano possui enormes abusividades no que tange, especialmente (mas não só) ao reajuste de faixa etária. É situação muito comum (e a experiência demonstra que é ainda mais comum em planos anteriores a 1997) que os reajustes de faixa etária não possuam previsão contratual.

Existem requisitos que devem ser seguidos para possibilitar a aplicação do reajuste de faixa etária nesta espécie de contrato.

Em sede de recurso repetitivo o Egrégio Superior Tribunal de Justiça pacificou o tema (tema 952 do STJ) acerca da abusividade dos reajustes de planos e seguros de saúde, estabelecendo critérios para a verificação da existência de tal abusividade2.

Os parâmetros fixados para a análise da abusividade dos reajustes praticados em contratos antigos, não adaptados são:

a) Existência de previsão contratual para o reajuste;

b)  Observância das normas expedidas pelos órgãos reguladores, quanto à validade formal da cláusula de reajuste;

c)  Aplicabilidade das normas da legislação consumerista para se aferir a abusividade; e

d) Pertinência entre a base atuarial (aumento da sinistralidade) e o reajuste aplicado, de modo que não sejam aplicados percentuais desarrazoados, que onerem excessivamente o idoso e inviabilizem sua permanência no plano.

Ocorre que a enorme maioria dos contratos antigos não possuem a previsão dos percentuais que serão aplicados nos reajustes de faixa etária – violando, além do julgado em Recurso Repetitivo pelo STJ, também o próprio teor do CDC3.

Não obstante os segurados, em muitas situações, buscarem a mudança de operadora de saúde ou, mesmo, o cancelamento do plano ou seguro saúde contratados, temos que esta não seria a melhor opção – especialmente tendo em vista que os planos celebrados nesta época costumam garantir mais direitos que os planos recentes.

O Judiciário, neste tipo de situação, vem entendendo que a cláusula de reajuste de faixa etária sem a previsão do percentual a ser aplicado é nula de pleno direito – com isso, haveria o direito do segurado em anular os reajustes de faixa etária aplicados sem previsão no contrato, diminuindo o valor do prêmio (mensalidade) e devolvendo o que foi pago de indevido aos segurados (respeitado o prazo prescricional).

Assim, a melhor solução, para quem possui esse tipo de direito, é a análise concreta da situação apresentada, tendo em vista a probabilidade de abusividade nos reajustes aplicados – já tendo a matéria sido julgada em sede de recurso especial repetitivo.

____________

1 E a própria ANS dispõe sobre isso em seu site: Para os planos de saúde antigos, aqueles contratados antes de 01/01/1999 – quando entrou em vigor a Lei nº 9.656/98, que regulamentou o setor de planos de saúde – e não adaptados à Lei, as regras de reajuste são aquelas estabelecidas em cada contrato.

Nos casos de contratos antigos sem cláusula clara relativa ao percentual de reajuste anual - que não indica expressamente o índice de preços a ser utilizado - ou nos casos em que as cláusulas são omissas quanto ao critério de apuração e demonstração das variações consideradas no cálculo de reajuste, o índice aplicado é limitado ao determinado pela ANS. (Disponível em: https://www.gov.br/ans/pt-br/assuntos/consumidor/reajuste-variacao-de-mensalidade/reajuste-anual-de-planos-individuais-familiares-1/reajustes-de-precos-de-planos-de-saude-antigos)

2 RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. CIVIL. PLANO DE SAÚDE. MODALIDADE INDIVIDUAL OU FAMILIAR. CLÁUSULA DE REAJUSTE DE MENSALIDADE POR MUDANÇA DE FAIXA ETÁRIA. LEGALIDADE. ÚLTIMO GRUPO DE RISCO. PERCENTUAL DE REAJUSTE. DEFINIÇÃO DE PARÂMETROS. ABUSIVIDADE. NÃO CARACTERIZAÇÃO. EQUILÍBRIO FINANCEIRO-ATUARIAL DO CONTRATO.

1. A variação das contraprestações pecuniárias dos planos privados de assistência à saúde em razão da idade do usuário deverá estar prevista no contrato, de forma clara, bem como todos os grupos etários e os percentuais de reajuste correspondentes, sob pena de não ser aplicada (arts. 15, caput, e 16, IV, da Lei nº 9.656/1998).

2. A cláusula de aumento de mensalidade de plano de saúde conforme a mudança de faixa etária do beneficiário encontra fundamento no mutualismo (regime de repartição simples) e na solidariedade intergeracional, além de ser regra atuarial e asseguradora de riscos.

3. Os gastos de tratamento médico-hospitalar de pessoas idosas são geralmente mais altos do que os de pessoas mais jovens, isto é, o risco assistencial varia consideravelmente em função da idade. Com vistas a obter maior equilíbrio financeiro ao plano de saúde, foram estabelecidos preços fracionados em grupos etários a fim de que tanto os jovens quanto os de idade mais avançada paguem um valor compatível com os seus perfis de utilização dos serviços de atenção à saúde.

4. Para que as contraprestações financeiras dos idosos não ficassem extremamente dispendiosas, o ordenamento jurídico pátrio acolheu o princípio da solidariedade intergeracional, a forçar que os de mais tenra idade suportassem parte dos custos gerados pelos mais velhos, originando, assim, subsídios cruzados (mecanismo do ommunity rating modificado).

5. As mensalidades dos mais jovens, apesar de proporcionalmente mais caras, não podem ser majoradas demasiadamente, sob pena de o negócio perder a atratividade para eles, o que colocaria em colapso todo o sistema de saúde suplementar em virtude do fenômeno da seleção adversa (ou antisseleção).

6. A norma do art. 15, § 3º, da Lei nº 10.741/2003, que veda “a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade”, apenas inibe o reajuste que consubstanciar discriminação desproporcional ao idoso, ou seja, aquele sem pertinência alguma com o incremento do risco assistencial acobertado pelo contrato.

7. Para evitar abusividades (Súmula nº 469/STJ) nos reajustes das contraprestações pecuniárias dos planos de saúde, alguns parâmetros devem ser observados, tais como (i) a expressa previsão contratual; (ii) não serem aplicados índices de reajuste desarrazoados ou aleatórios, que onerem em demasia o consumidor, em manifesto confronto com a equidade e as cláusulas gerais da boa-fé objetiva e da especial proteção ao idoso, dado que aumentos excessivamente elevados, sobretudo para esta última categoria, poderão, de forma discriminatória, impossibilitar a sua permanência no plano; e (iii) respeito às normas expedidas pelos órgãos governamentais: a) No tocante aos contratos antigos e não adaptados, isto é, aos seguros e planos de saúde firmados antes da entrada em vigor da Lei nº 9.656/1998, deve-se seguir o que consta no contrato, respeitadas, quanto à abusividade dos percentuais de aumento, as normas da legislação consumerista e, quanto à validade formal da cláusula, as diretrizes da Súmula Normativa nº 3/2001 da ANS. B) Em se tratando de contrato (novo) firmado ou adaptado entre 2/1/1999 e 31/12/2003, deverão ser cumpridas as regras constantes na Resolução CONSU nº 6/1998, a qual determina a observância de 7 (sete) faixas etárias e do limite de variação entre a primeira e a última (o reajuste dos maiores de 70 anos não poderá ser superior a 6 (seis) vezes o previsto para os usuários entre 0 e 17 anos), não podendo também a variação de valor na contraprestação atingir o usuário idoso vinculado ao plano ou seguro saúde há mais de 10 (dez) anos. C) Para os contratos (novos) firmados a partir de 1º/1/2004, incidem as regras da RN nº 63/2003 da ANS, que prescreve a observância (i) de 10 (dez) faixas etárias, a última aos 59 anos; (ii) do valor fixado para a última faixa etária não poder ser superior a 6 (seis) vezes o previsto para a primeira; e (iii) da variação acumulada entre a sétima e décima faixas não poder ser superior à variação cumulada entre a primeira e sétima faixas.

8. A abusividade dos aumentos das mensalidades de plano de saúde por inserção do usuário em nova faixa de risco, sobretudo de participantes idosos, deverá ser aferida em cada caso concreto. Tal reajuste será adequado e razoável sempre que o percentual de majoração for justificado atuarialmente, a permitir a continuidade contratual tanto de jovens quanto de idosos, bem como a sobrevivência do próprio fundo mútuo e da operadora, que visa comumente o lucro, o qual não pode ser predatório, haja vista a natureza da atividade econômica explorada: serviço público impróprio ou atividade privada regulamentada, complementar, no caso, ao Serviço Único de Saúde (SUS), de responsabilidade do Estado.

9. Se for reconhecida a abusividade do aumento praticado pela operadora de plano de saúde em virtude da alteração de faixa etária do usuário, para não haver desequilíbrio contratual, faz-se necessária, nos termos do art. 51, § 2º, do CDC, a apuração de percentual adequado e razoável de majoração da mensalidade em virtude da inserção do consumidor na nova faixa de risco, o que deverá ser feito por meio de cálculos atuariais na fase de cumprimento de sentença.

10. TESE para os fins do art. 1.040 do CPC/2015: O reajuste de mensalidade de plano de saúde individual ou familiar fundado na mudança de faixa etária do beneficiário é válido desde que (i) haja previsão contratual, (ii) sejam observadas as normas expedidas pelos órgãos governamentais reguladores e (iii) não sejam aplicados percentuais desarrazoados ou aleatórios que, concretamente e sem base atuarial idônea, onerem excessivamente o consumidor ou discriminem o idoso.

11. CASO CONCRETO: Não restou configurada nenhuma política de preços desmedidos ou tentativa de formação, pela operadora, de “cláusula de barreira” com o intuito de afastar a usuária quase idosa da relação contratual ou do plano de saúde por impossibilidade financeira. Longe disso, não ficou patente a onerosidade excessiva ou discriminatória, sendo, portanto, idôneos o percentual de reajuste e o aumento da mensalidade fundados na mudança de faixa etária da autora.

12. Recurso especial não provido.

(Resp 1568244/RJ, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 14/12/2016, Dje 19/12/2016)

3 Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...) X - permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira unilateral; (Original sem grifos)

Iris Novaes
Advogada desde 2013, especialista em direito da saúde suplementar. Possui 4 pós graduações no currículo, incluindo em direito da saúde. É, além de advogada militante, professora e palestrante.

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