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Transparência e Accountability na Arbitragem com o Poder Público: O Princípio da Publicidade em foco

A definição do conteúdo do procedimento arbitral a ser divulgado dependerá da análise, em cada caso em concreto, da essência do ato ou do interesse predominante que ele representa

3/8/2023

Definição de arbitragem

Embora não haja um conceito único para a arbitragem, existem pontos essenciais comuns e estão presentes em todas as definições como: a autonomia da vontade das partes, a celeridade, a tecnicidade do árbitro, a confidencialidade e a executividade das decisões. 

Portanto, a arbitragem é um instituto privado com natureza jurisdicional1, adjudicatório2 e alternativo à jurisdição estatal para a pacificação social. Através da convenção arbitral que “gera um direito potestativo de constituição do tribunal arbitral e o afastamento da jurisdição dos tribunais comuns”3, as partes, capazes, atribuem a um terceiro(os) o poder de julgar o litígio no limite material do interesse patrimonial disponível.

A adoção desse instituto pelo poder público mostra-se eficiente e em ampla ascensão, principalmente após a reforma da Lei de Arbitragem, lei 9.307/96 (indicada a seguir como LArb), em 2015, pela lei 13.129/15 que com a influência dos princípios da legalidade e da publicidade4 o legislador fez alterações importantes no âmbito da arbitragem pública, estabelecendo requisitos de conformidade ao procedimento arbitral como a necessária transparência e o afastamento da confidencialidade típica na arbitragem privada.

O princípio da publicidade como regra

Antes de mais nada, importa assinalar que arbitragem não pode ser vista como um meio adequado para a solução de todo e qualquer conflito, a sua gênese está no direito privado, tanto que uma das vantagens apontadas por aqueles que optam por esse procedimento é a confidencialidade, de modo a assegurar, por exemplo, a proteção de segredos empresariais e a imagem da empresa no mundo dos negócios.

Posto isso, para a Administração Pública poder utilizar-se deste método para dar cabo as suas controvérsias, o legislador nacional incluiu na LArb algumas especificidades, nomeadamente, no § 1.º, do artigo 1.º, a autorização expressa do uso da arbitragem pela Administração Pública direta e indireta para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis. No mesmo artigo, no § 2.º, indica-se que é competente, para a celebração de convenção de arbitragem, a autoridade ou o órgão da administração pública direta que realiza acordos ou transações. 

Relativamente ao critério de julgamento, o art. 2.º, § 3.º, por força do princípio da legalidade, afastou a equidade5, designando o direito como critério6. Por fim, flexibilizou-se a regra da confidencialidade, típica da arbitragem comercial, em virtude do princípio da publicidade, estabelecendo que “a arbitragem que envolva a administração pública será sempre de direito e respeitara' o princípio da publicidade”.

Essa obrigatoriedade desempenha um papel importante na promoção da transparência e da accountability dos atos realizados pelos órgãos públicos. Ademais, observa-se que a Lei de Licitações e Contratos Administrativos, lei 14.133/21, seguiu, no art. 152, o mesmo postulado estabelecido na LArb prescrevendo que arbitragem será sempre de direito e observará o princípio da publicidade. 

A abrangência do princípio da publicidade

Verificou-se que o legislador em 2015 não estabeleceu detalhadamente a abrangência do princípio da publicidade, no sentido de definir se a regra recai sobre a totalidade do procedimento ou apenas em parte dele e a quem cabe conferir efetividade à publicidade, limitou-se o legislador a indicar a regra de que a “arbitragem será sempre de direito e que respeitara' o princípio da publicidade”.

Acerca da amplitude desse princípio, na arbitragem que envolve pessoa jurídica pública, entende-se não ser absoluto, “podendo ser relativizado, quando em antinomia com outras normas constitucionais, de igual hierarquia”. (Schmidt, 2016, 1052). Portanto, não estão cobertos pelo manto da publicidade, por exemplo, as informações cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, postulado Constitucional (art. 5.º, inciso XXXIII da Constituição Federal).

Na esfera infraconstitucional, a flexibilização encontra-se, nomeadamente, em âmbito Federal no Decreto n. 10.025/2019, o qual estipula a exceção ao princípio da publicidade no artigo 3.º, inciso IV, assentando que “as informac¸o~es sobre o processo de arbitragem sera~o pu'blicas, ressalvadas aquelas necessa'rias a` preservac¸a~o de segredo industrial ou comercial e aquelas consideradas sigilosas pela legislac¸a~o brasileira7. De forma idêntica, o decreto 59.963/20 que regulamenta a arbitragem no município de São Paulo expressa no artigo 16, nos mesmos termos, o afastamento a exceção ao princípio8.

Em referência ao conteúdo que poderá ser revelado do procedimento arbitral, em que esteja envolvido um ente da Administração Pública, observa-se que os Decretos acima se restringem a indicar amplamente que “as informações sobre o processo de arbitragem serão públicas”, questiona-se quais seriam essas informações.

Antes de responder a esta indagação, relembramos que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade9, a publicidade no Poder Judiciário é exercida amplamente. Evidentemente, haverá situações em que a publicidade poderá ser restrita, qualificado como segredo de justiça, para a defesa da intimidade e a proteção de informações sigilosas10.

Por outro lado, na arbitragem comercial a regra geral é a confidencialidade do procedimento arbitral, que apesar de não se encontrar expressamente prevista na LArb, poderá decorrer por vontade das partes, por determinação legal, regulamento da Câmara Arbitral ou pelos árbitros.

Em suma, no Poder Judiciário os atos processuais e as audiências são públicas, ou seja, acessíveis ao público. No ambiente arbitral o procedimento em regra é restrito as partes e aos árbitros, ademais a LArb impõe aos árbitros o dever de discrição11. Já na arbitragem com o Poder Público é norma cogente o dever de observar o princípio da publicidade “um dos princípios estruturantes da atividade da Administração Pública (art.37, caput, da CF/1988), é também interesse público primário que o Poder Público não pode deixar de perseguir”. (SOARES, Tamírames, 2016, p.48).

Feitas essas considerações, entende-se que a delimitação das informações que devem ser objeto de divulgação na arbitragem administrativa dependerá, a priori, da “identificação da natureza do ato ou a prevalência do interesse que ele representa, para que se decida sobre a exclusão de qualquer possibilidade de ser acobertado pela confidencialidade”. (NETO, 2016, p.144).

Nesse sentido, a “Administração Pública deve revelar o que for necessário para assegurar a prestação de contas de órgãos de controle e dar transparência à sociedade a determinado litígio relevante”. (MARTINS, 2018, p.445). A título de exemplo, a publicitação poderá recair no conteúdo de documentos que não apresentem riscos aos interesses privados sem, contudo, infringir o interesse público da transparência dos atos da Administração. 

Relativamente à promoção da publicidade, o Enunciado 4 da I Jornada de Prevenc¸a~o e Soluc¸a~o Extrajudicial de Liti'gios do Conselho da Justic¸a Federal, orienta que caberá à Administração Pública, nos termos da lei de acesso à informação (lei 12. 527/11) viabilizar a publicidade prevista no art. 2o, § 3.º, da LArb, ademais, essa regra poderá ser “mitigada nos casos de sigilo previstos em lei, a jui'zo do a'rbitro”12

Em 2021, na II Jornada de Prevenc¸a~o e Soluc¸a~o Extrajudicial de Litígios, aprovou-se a complementação da regra acima, Enunciado 89, trazendo a orientação de que “cabe a` parte interessada apontar as informações ou documentos que entende sigilosos, indicando o respetivo fundamento legal que restringe a sua publicidade”13.

Conclusão

A arbitragem nasce no ambiente comercial e a adoção desse meio alternativo de resolução de disputas em outros ramos do direito, como no Direito Público, requer a inclusão de algumas especificidades, tal como a mitigação da confidencialidade, tão valorizada na arbitragem entre pessoas jurídicas de direito privado.

Essa modulação ocorreu em 2015 na LArb em que houve a inclusão de algumas especificações a serem observadas pela Administração Pública quando, de forma voluntária, adotar a arbitragem como meio para solucionar os seus conflitos. Dentre elas, encontra-se o princípio constitucional da publicidade que visa promover a transparência e da accountability dos atos realizados pelos órgãos públicos. 

No entanto, o legislador não detalhou as informações que devem ser objeto de divulgação, o que tem sido feito pela doutrina, jurisprudência e pelo conselho da Justiça Federal que aprovou na I e II Jornada de Prevenção e Soluc¸a~o Extrajudicial de Liti'gios importantes balizas orientadoras, Enunciados n. 4 e n. 8, no sentido de indicar que a publicidade poderá ser mitigada e que caberá a` Administração Pública a sua promoção.

Portanto, esse princípio não é absoluto, ou seja, para a sua observância não significa que o Poder Público deva tornar público todas as informações inerentes ao procedimento arbitral, o afastamento desse princípio ocorre, por exemplo, quando o sigilo das informações seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.

Além disso, a definição do conteúdo do procedimento arbitral a ser divulgado dependerá da análise, em cada caso em concreto, da essência do ato ou do interesse predominante que ele representa, de modo a determinar a exclusão de qualquer hipótese de ser mantido em sigilo informações essenciais para garantir a prestação de contas aos órgãos de controle e para proporcionar transparência à sociedade.

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1 A respeito da natureza jurídica da arbitragem existem três teorias: 1) teoria privatista ou contratualista, defendida por Chiovenda, entende que a arbitragem é tão somente um negócio jurídico contratual; 2) teoria publicista ou jurisdicionalista atribuem aos árbitros a natureza de verdadeiros juízes que exercem função jurisdicional ao decidir o litígio mediante uma decisão vinculativa e obrigatória; 3) teoria mista ou intermediária agrega os fundamentos das duas primeiras, ou seja, mesmo pautada na autonomia das partes e no negócio jurídico a arbitragem bebe da água dos sistemas jurídicos existentes não podendo desenvolver alheia às normas legais. Cahali acrescenta no seu livro “Curso de Arbitragem” a existência de uma quarta teoria, sendo ela relevante para a arbitragem internacional, porque identifica “na arbitragem um sistema de solução de conflitos totalmente desvinculado de qualquer sistema jurídico existente (...) verifica-se o extremo do princípio da autonomia privada, enquanto, diante da liberdade de contratar, as partes subtraem a arbitragem de outros ordenamentos, tratando-a como soberana”. CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem: mediação: conciliação: Tribunal multiportas, 7 ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2018, p.135. O legislador brasileiro adotou a teoria da jurisdição na Lei de Arbitragem, no artigo 31, determinando que a sentença arbitral produz os mesmos efeitos de uma decisão judicial. CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei n.9.307/96, 3 ed. São Paulo: Atlas, 2009, p.26.

2 E' adjudicatório, uma vez que é designado a terceiro ou terceiros a decisão do litígio, sendo esta vinculativa às partes, constituindo caso julgado com força executiva, isto é, a arbitragem, apesar de não ser judicial, aproxima-se do sistema tradicional, sendo jurisdicional nos seus efeitos. GOUVEIA, Mariana França. Curso de resolução alternativa de litígios, 3 ed. Coimbra: Almedina, 2021, p.119. 

3 Ibidem, p.119.

4 Esse princípio encontra-se estampado no caput do artigo 37 da Constituição Federal. Constituição Federal. BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 20 de jul. 2023.

5 É correta a escolha do legislador, porque a “noção de equidade é extremamente aberta, o que acaba por subverter a lógica de previsibilidade que deve marcar o ordenamento jurídico”. MARRARA, Thiago; PINTO, João Otávio Torelli. Arbitragem e Administração Pública — considerações sobre proposta de alteração da legislação. Revista de Direito Público da Economia – RDPE. Belo Horizonte. 2014, p.233. Disponível em: https://www.academia.edu/44967541/Arbitragem_e_Administração_Pública_Considerações_sobre_propostas_de_alteração_da_legislação >. Acesso em 15 de jul. 2023.

6 “O princípio da legalidade significa que só podem os entes administrativos fazer aquilo que a lei autoriza ou determina”. Por isso que “se a Administração Pública está obrigada a atuar nos limites do direito posto, é natural que eventuais conflitos em que se envolva sejam dirimidos com base no direito aplicável”. SCHMIDT, Gustavo da Rocha — A arbitragem nos conflitos envolvendo a Administração Pública: uma proposta de regulamentação. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2016, p. 49. Dissertação, mestrado. Disponível em: http://hdl.handle.net/10438/16218>. Acesso em 15 de jul. 2023.

7 BRASIL, Decreto n.o 10.025, de 20 de setembro de 2019. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D10025.htm>. Acesso em 12 de jul. 2023.

8 BRASIL, Decreto n.o 59.963, de 07 de dezembro de 2020. Disponível em: https://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/decreto-59963-de-7-de-dezembro-de-2020. Acesso em 18 de jul. 2023.

9 Conforme artigo 93. IX da Constituição Federal. BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 20 de jul. 2023.

10 Conforme artigo 189 do Código de Processo Civil. BRASIL. Código de Processo Civil. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em 20 de jul. 2023.

11 Artigo 13, § 6 da LArb. BRASIL, Lei n.º 9.307, de 23 de setembro de 1996. Dispõe sobre a arbitragem. Disponível em: . Acesso em 21 de jul. 2023.

12 BRASIL. I Jornada Prevenção e solução extrajudicial de litígios: Enunciados Aprovados. Brasília: Enunciados Aprovados, Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, Brasília. Disponível em: < https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/885>. Acesso em 21 de jul. 2023.

13 BRASIL. II Jornada Prevenção e solução extrajudicial de litígios: Enunciados Aprovados. Brasília: Enunciados Aprovados, Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, Brasília. Disponível em: < https://www.irib.org.br/app/webroot/files/downloads/files/Enunciados%20Justificativas%20aprovados-VF.pdf>. Acesso em 21 de jul. 2023.

Aline Manfrin
Advogada, mestranda em Direito Público pela Nova School of Law, Lisboa, Portugal. Pós-graduada em Direito Processual, Trabalho e Previdenciário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

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