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Prêmios arrecadados por representante de seguros não são sujeitos aos efeitos da recuperação judicial

Por atuar como mero intermediário da operação, o representante de seguros não é o titular dos prêmios de seguros, de modo que os valores arrecadados não podem ser utilizados para o fomento de suas atividades ou pagamento de credores.

3/8/2023

Em 16 de maio de 2023, a 4ª turma do STJ, por unanimidade, deu provimento ao Recurso Especial 2.029.240/SP, para reconhecer que os valores de prêmios de seguros, arrecadados por representante de seguros (varejista no setor de eletrodomésticos, no caso concreto), não são sujeitos aos efeitos da recuperação judicial e, por isso, podem ser cobrados pela seguradora.

A pretensão da seguradora era reaver os valores arrecadados pela varejista referente aos prêmios pagos pelos consumidores que adquiriram seguro garantia estendida dos produtos, os quais, por imposição legal, devem ser vertidos às reservas técnicas da entidade regulada, nos termos do decreto-lei 73/66. A varejista, na qualidade de representante de seguros, deixou de fazer o repasse dos valores à seguradora previamente ao pedido de recuperação judicial, em descumprimento ao seu dever contratual e legal, nos moldes do art. 7º, §§1º e 2º, da Resolução CNSP 297/13, vigente à época dos fatos, e art. 14 da Resolução CNSP 431/21.

Em primeira instância, a ação de cobrança foi julgada procedente para reconhecer que esses valores não se qualificavam como créditos sujeitos aos efeitos da recuperação judicial, tratando-se de valores de propriedade da seguradora.

Essa decisão foi reformada pelo TJ/SP, que extinguiu a ação de cobrança, sem resolução do mérito, por entender que a retenção dos prêmios de seguro pela varejista se qualificaria como mero descumprimento de obrigação de pagar, o que ensejou a constituição de um crédito em favor da seguradora. Logo, como o inadimplemento ocorreu antes do pedido de recuperação judicial da varejista, o TJ/SP decidiu que tal crédito estaria sujeito aos efeitos da recuperação judicial.

No STJ, a relatora, Ministra Isabel Gallotti, entendeu que, diferentemente de um depósito bancário, em que a propriedade do dinheiro é transferida à instituição financeira, na representação securitária, os prêmios de seguros não são de propriedade do representante de seguros, pois o pagamento do prêmio é direcionado para a própria seguradora. Atuando como mero intermediário, o representante viabiliza a emissão dos bilhetes, certificados ou apólices de seguro e arrecada os respectivos prêmios dos consumidores, por conta e ordem da seguradora, momento em que se aperfeiçoa o contrato de seguro e é transferida à seguradora a responsabilidade pelo risco.

De fato, a premissa fundamental do contrato de representação de seguros é que o representante figure como mero longa manus da seguradora, de maneira que  deve imediatamente repassar-lhe os valores dos prêmios por ele arrecadados, os quais comporão as suas reservas técnicas, que é destinada a fazer frente aos compromissos e obrigações da seguradora perante os segurados/consumidores1.

Por isso, a arrecadação e posse momentânea dos prêmios pelo representante até que o repasse seja feito à seguradora não o torna titular  dos valores.

Dessa forma, o descumprimento do dever de repasse pela varejista não ensejou a constituição de um crédito em favor da seguradora, visto que os valores arrecadados a título de prêmios de seguros são de propriedade da seguradora e não integram o patrimônio da varejista.

Esse entendimento, contudo, não é pacífico no STJ. Em sentido contrário, no julgamento do Recurso Especial 1.559.595/MG, a 3ª turma, em 10/12/19, salientou que o contrato de representação de seguros é composto por obrigações de mandato e depósito. A relação de mandato está consubstanciada na obrigação do representante de seguros de celebrar contratos de seguros com terceiros e receber destes os prêmios de seguro, tudo em nome da sociedade seguradora, com a obrigação de restituí-los à seguradora, nos termos do art. 670 do Código Civil e art. 7º, §2º, da Resolução CNSP 297/13 então em vigor.

Para a Corte, com a arrecadação dos prêmios de seguro em nome da sociedade seguradora, o representante de seguros assume a posição de depositário desses valores. Em se tratando de depósito de coisa fungível – dinheiro –, aplicam-se as regras de mútuo, nos termos do art. 645 do Código Civil. A consequência legal é a transferência – ainda que provisória – da propriedade dos valores recebidos a título de prêmios ao representante de seguros, em consonância com a regra do art. 587 do Código Civil.

Em outras palavras, conforme o tratamento legal das disposições de mútuo, os bens fungíveis depositados ao representante de seguros, sob o regime de recuperação judicial, passam a integrar efetivamente o seu patrimônio.

Dessa maneira, para a Corte, a sociedade seguradora não tem a propriedade dos valores depositados, mas apenas um crédito em relação ao representante de seguros. Sob essa ótica, para a restituição dos valores arrecadados pelo representante de seguros, a Corte concluiu que a seguradora deverá habilitar o seu crédito na recuperação judicial, para recebê-lo nos termos do plano de recuperação judicial a ser aprovado.

A contraposição entre as decisões no Recurso Especial 1.559.595/MG e no Recurso Especial 2.029.240/SP evidencia que a matéria é controversa e ainda não há um posicionamento firme da Corte Especial sobre a interpretação das obrigações do contrato de representação de seguros e seus impactos num processo de recuperação judicial.

Não obstante, há precedentes do STJ em situações análogas, em que restou decidido que o inadimplemento da obrigação de restituição de bens fungíveis – tal como dinheiro, produtos agropecuários, etc. – de propriedade de terceiros e que foram depositados junto à empresa recuperanda ou falida, não enseja a constituição de crédito, para os fins da lei 11.101/05. Trata-se de valores que não estão sujeitos aos efeitos da recuperação judicial ou de processo de falência.

Para a hipótese de retenção de bens de terceiros por empresa falida, há previsão expressa na lei 11.101/05, em seu art. 85, que “o proprietário de bem arrecadado no processo de falência ou que se encontre em poder do devedor na data da decretação da falência poderá pedir sua restituição”. Nessa mesma linha é o enunciado da Súmula 417 do Supremo Tribunal Federal, segundo o qual “pode ser objeto de restituição, na falência, dinheiro em poder do falido, recebido em nome de outrem, ou do qual, por lei ou contrato, não tivesse ele a disponibilidade”.

Embora não exista previsão legal de que o pedido de restituição do artigo 85 seja aplicável à recuperação judicial, a Corte já vem decidindo que os bens fungíveis de propriedade de terceiros e que se encontram depositados junto à empresa em recuperação judicial não integram o patrimônio da devedora. Com isso, tais bens não podem ser utilizados pelas recuperandas para o seu soerguimento ou pagamento de seus credores; e, principalmente, não se qualificam como créditos sujeitos aos efeitos da recuperação judicial, para os fins do artigo 49, caput, da lei 11.101/05.

Nesse sentido, a recente decisão no Recurso Especial 2.029.240/SP constitui um precedente relevante sobre o tema, pois ratifica o entendimento que já vinha sendo aplicado pelo STJ, no sentido de que bens de terceiros depositados junto à empresa em recuperação judicial não integram o seu patrimônio e, portanto, não estão sujeitos aos efeitos da recuperação judicial.

Embora não tenha força vinculante, o precedente confirma que a dinâmica das operações de representação securitária não deve ser modificada em razão de o representante de seguros se encontrar sob regime de recuperação judicial, devendo-se, nesse contexto, ser preservados os prêmios de seguro arrecadados em benefício das seguradoras e vertidos ao seu patrimônio para constituição de reservas técnicas, em relação às quais os segurados e beneficiários credores de indenização ajustada ou por ajustar possuem privilégio especial, em linha com o art. 86 do decreto-lei 73/66.

No atual contexto econômico-financeiro do país, em que inúmeras empresas se encontram em estado de extremo estresse financeiro, socorrendo-se, cada vez mais, a processos de recuperação judicial, o posicionamento do STJ confere segurança jurídica às relações securitárias e garante às sociedades seguradoras a possibilidade de reivindicar diretamente dos representantes de seguros, que se encontram em recuperação judicial, os prêmios arrecadados, sem a obrigatoriedade de se sujeitarem aos seus efeitos.

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1 Vide, nesse sentido, o art. 1º da CNSP 431/21:

Art. 1º Disciplinar as operações das sociedades seguradoras por meio de seus representantes de seguros.

§ 1º Considera-se representante de seguros, para efeito desta Resolução, a pessoa jurídica que assumir a obrigação de promover, ofertar ou distribuir produtos de seguros, em caráter não eventual e sem vínculos de dependência, à conta e em nome de sociedade seguradora, sem prejuízo de realização de outras atividades.

§ 2º O representante de seguros é um agente autorizado da sociedade seguradora, não possui poderes de representação dos segurados e é considerado intermediário dos produtos da sociedade seguradora.

Renata Oliveira
Sócia de Machado Meyer Advogados e especialista em reestruturação e recuperação de créditos e empresas, na prevenção e resolução de conflitos perante o Poder Judiciário, órgãos públicos e Centros de Arbitragem nacionais e internacionais.

Cássio Gama Amaral
Sócio da área de Seguros do Machado Meyer Advogados.

Carolina Mascarenhas
Advogada da área de Reestruturação e Insolvência do Machado Meyer Advogados.

Leticia Aureliano Florentino
Advogada da área de Reestruturação e Insolvência do Machado Meyer Advogados.

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