A recém publicada lei 14.597/23, denominada Lei Geral do Esporte, dentre diversas outras disposições relevantes para a regulação e fomento da prática desportiva em todos os seus níveis, trouxe em seu bojo significativa modificação em relação aos crimes contra a propriedade intelectual, especificamente no que tange àqueles praticados contra as chamadas Organizações Esportivas.
Embora não se visualize no texto legal uma definição precisa acerca de Organizações Esportivas, é possível depreender que sejam Organizações de qualquer natureza jurídica ou forma de estruturação, autônomas quanto à normatização interna, para realizar a autorregulação, o autogoverno e a autoadministração.
Nesse passo, trata-se, claramente, de pessoas jurídicas constituídas e, portanto, identificadas perante a sociedade e o mercado consumidor por suas denominações sociais, marcas, insígnias, distintivos, além de outros ativos imateriais, tais como seus hinos e mascotes.
Partindo-se dessa premissa, é certo que se inserem nesse contexto as Confederações, Federações, Associações e Clubes voltados à prática desportiva, a nível profissional ou não.
A cultura brasileira relacionada ao esporte, por mais sucesso, reconhecimento e adeptos que outras modalidades venham alcançando, está muito centralizada no futebol. Sabe-se que está arraigada no brasileiro a paixão, muitas vezes irrefreada, por determinado clube. As torcidas, em todas as regiões do País, congregam milhões de pessoas.
Justamente por essa abrangência gigantesca, os mais variados artigos identificados pelas marcas, emblemas, símbolos, trechos de hinos e “escudos” de clubes de futebol, assim como da Seleção Brasileira, são extremamente cobiçados por ávidos consumidores de todos os níveis socioeconômicos e, por isso, são extremamente vendáveis.
A receita obtida com a venda não apenas das camisas, mas da mais variada gama de artigos, fabricados sob a égide de contratos de licenciamento, compõe grande parcela do faturamento dos clubes e confederações.
Ocorre que, justamente por serem produtos altamente desejados por todas as camadas da população, todos os artigos identificados pelas marcas das agremiações são vastamente falsificados, nas mais variadas escalas, desde oficinas de fundo de quintal, até verdadeiras fábricas, dotadas de linha de produção e grande quadro de funcionários, exclusivamente voltadas à contrafação de uniformes, bandeiras e diversos outros produtos.
O impacto negativo da pirataria no faturamento dos clubes chegou a estarrecedores 9 (nove) bilhões de reais, conforme detalhado estudo[1] realizado pelo IPEC (Inteligência em Pesquisa e Consultoria), encomendado pela ÁPICE (Associação pela Indústria e Comércio Esportivo), entidade formada por grandes empresas do setor de produtos esportivos do mundo. Estima-se que 37% das camisas de times de futebol comercializadas no País sejam falsificadas.
Para se ter uma ideia, o estudo apontou que foram comercializadas mais de 150 milhões de peças falsificadas. Só com artigos de futebol o prejuízo foi de R$ 2 bilhões em 2020, segundo levantamento do Fórum Nacional contra a Pirataria e Ilegalidade (FNCP).
Frente a esse cenário lamentável, surge, com a promulgação da lei 14.597/23, uma modificação legislativa aplicável, especificamente às Organizações Esportivas, bastante interessante e que pode, ao menos mitigar, as perdas causadas pela pirataria ao segmento esportivo, notadamente às Confederações e Clubes: o aumento da pena e a modificação na titularidade da ação penal no que toca aos crimes contra a propriedade intelectual, cometidos contra aquelas entidades.
Embora também muito relevante no aspecto dos licenciamentos e comercialização dos grandes eventos esportivos, a tipificação da prática do marketing de emboscada como crime, na mesma seção do diploma legal que versa contra os crimes contra a propriedade intelectual, não será objeto desta sucinta análise.
A seção III da lei que trata dos crimes contra a propriedade intelectual de Organizações Esportivas assim prevê:
Utilização indevida de símbolos oficiais
Art. 168. Reproduzir, imitar, falsificar ou modificar indevidamente quaisquer sinais visivelmente distintivos, emblemas, marcas, logomarcas, mascotes, lemas, hinos e qualquer outro símbolo de titularidade de organização esportiva:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.
Art. 169. Importar, exportar, vender, distribuir, oferecer ou expor à venda, ocultar ou manter em estoque quaisquer sinais visivelmente distintivos, emblemas, marcas, logomarcas, mascotes, lemas, hinos e qualquer outro símbolo de titularidade de organização esportiva ou produtos resultantes de sua reprodução, imitação, falsificação ou modificação não autorizadas para fins comerciais ou de publicidade:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
(...)
Art. 172. Nos crimes previstos nesta Seção, somente se procede mediante representação da organização esportiva titular dos direitos violados, com exceção do crime previsto no art. 169 desta lei, em que a ação é pública incondicionada.
Comparando-se o texto acima transcrito com o que estabelece a lei 9.279/96, a Lei da Propriedade Industrial, no capítulo que trata especificamente dos crimes e que era utilizado pelas Organizações Esportivas como base legal para repressão, a pena passou de um a três de detenção ou multa, para dois a quatro de reclusão e multa.
Com esse aumento de punição, o crime contra propriedade intelectual que tenha como vítima uma Organização Esportiva, não mais se enquadra como de menor potencial ofensivo e, portanto, afasta a aplicação da lei 9.099/95.
Dessa forma, a possibilidade de aplicação do benefício de transação penal, a priori, estaria afastada e o autor do crime teria que enfrentar a persecução criminal comum, sendo que eventual condenação à pena de reclusão, passaria a constar de sua certidão de antecedentes criminais, gerando, inclusive, efeitos civis.
Mesmo tendo em vista que com o aumento de pena e considerada a natureza do crime contra a propriedade intelectual, possa ser proposto pelo Ministério Público o acordo de não persecução penal, instituído pela lei 13.964/19, é certo que o autor do crime não terá mais a certeza de que o risco de sua atividade consiste apenas no perdimento da mercadoria apreendida, já que, usualmente, os termos de referido acordo não são tão brandos quanto a transação penal; posto que pressupõem a representação por advogado, bem como a confissão da prática enquadrada, além de prever a reparação por danos morais e materiais e a suspensão da prescrição.
Ademais, em caso de descumprimento da avença homologada, poderá ser oferecida a denúncia mediante rescisão do termo, o que poderá, inclusive, ser motivo de afastamento de suspensão condicional do processo, caso assim entenda o Ministério Público.
O fato da ação penal passar a ser pública incondicionada também representa considerável avanço no combate à violação de propriedade intelectual, ao menos em relação às Organizações Esportivas, prescindindo do moroso processamento das queixas-crime, inerentes às ações penais privadas, ainda mais aquelas voltadas aos crimes contra as marcas que preveem a necessidade de perícia técnica oficial homologada e procuração específica, peculiaridades que não raramente redundam na prescrição, muitas vezes sem que o autor do fato sequer tenha sido intimado a apresentar defesa.
Espera-se que a aplicação das novas previsões legais, mesmo que restritas aos crimes contra propriedade intelectual das Organizações Esportivas, represente efetivo desestímulo aos contrafatores, não apenas pelo viés de diminuir o prejuízo que acarretam aos titulares dos direitos violados, mas também no sentido de minar a indústria da pirataria, extremamente nociva à economia e à sociedade, já que utilizada pelas organizações criminosas para lavagem de capitais e financiamento de crimes muito mais gravosos.
No mesmo sentido, na hipótese da nova lei representar efetiva diminuição na ocorrência do crime para cuja pena fora modificada, existirá um novo e concreto motivo para que finalmente seja votado pela Câmara dos Deputados o PL 333/99 que objetiva a majoração das penas previstas nos arts., 189, 194 e 195 da Lei da Propriedade Industrial ora vigente, para de um a quatro anos de detenção ou multa, sem qualquer restrição à natureza jurídica do titular do direito violado, beneficiando assim, ainda que tardiamente, todos os setores da economia formal.
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1 https://www.apicebrasil.org.br/apice-lanca-estudo-sobre-o-consumo-de-produtos-esportivos-piratas-no-brasil