Vive-se hoje um momento muito complicado de judicialização excepcional, que leva a que Magistrados (sejam juízes, desembargadores etc) não leiam peças e argumentos, com grande terceirização das tarefas para a serventia, estagiários e assessores que, por vezes, por melhores intenções que tenham, não tem a mesma formação ou experiência.
O ministro Luiz Fux (STF) com enorme propriedade, aponta o que se tem como estado de coisas inconstitucional no que tange à falta de motivação das decisões judiciais (Informativo STF 470). Sobre a jurisprudência deste Pretório Excelso a respeito de possibilidade de discussão de validade de acórdão por falta de motivação, já se manifestou este Areópago (veja-se a esse respeito a notícia divulgada no site do próprio STF):
O Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a existência repercussão geral no tema tratado no Recurso Extraordinário (RE) 719870, em que se discute a validade de acórdão por ausência de fundamentação sobre ponto relevante para a análise de constitucionalidade de norma impugnada por meio de ação direta de inconstitucionalidade estadual.
Isso, com efeito gera um clima de grande apreensão entre os operadores do direito que passam a ter que buscar de modo cada vez mais intenso, acesso direto a magistrados para tentar de modo sucinto passar dados essenciais e diferenciados de suas causas (thema decidendum ou objeto litigioso do processo1) com receio de que se julgue fora do que se pede, que não se perceba que o caso tenha essa nota diferenciada do que se lança em valas comuns de teses e modelos e que não se consiga obter êxito em fazer com que outro leia em grau de revisão.
Profissionais do direito tem vivido clima muito difícil de atuação por conta deste fenômeno – por mais que exista boa vontade de muitos Magistrados a realidade se descortina deste modo, e surge a preocupação com tema do acesso à via recursal excepcional nas instâncias superiores.
Os recursos chamados excepcionais (especial, extraordinário e embargos de divergência) são direcionados aos Tribunais Superiores STF e STJ (em outras Justiças Especializadas pode haver congêneres, como por exemplo o recurso de revista ao TST) não são uma terceira instância de fato - mas apenas admitem discussão de questões de estrito direito (teses jurídicas) que devem ser identificadas.
Para além dos requisitos normais de admissibilidade de um recurso (legitimidade, adequação, interesse, tempestividade, preparo, ausência de fatos impeditivos ou modificativos do direito de recorrer) aqui surge toda uma dialeticidade própria, surgida por conjuntos de normas jurisprudenciais que, de tempos em tempos se agrega à normatização – como ocorreu, ainda recentemente, com a publicação do atual CPC.
A primeira ideia a ser rompida seria no sentido de que esses recursos seriam uma terceira ou quarta instâncias – não são – não se prestam a revisar por revisar o que ficou apontado após o esgotamento do duplo de grau de jurisdição.
Por isso que não se rediscute matéria de fato – isso se estabiliza nas instâncias inferiores e não mais se reavalia em sede de recursos para instâncias superiores que não existem para isso – existem para pacificação de teses jurídicas uniformizando interpretações de normas2.
Pressupõem esgotamento de instância (por exemplo - se um relator julgou de modo unipessoal deve-se interpor agravo interno anterior) - não pode, portanto, discutir fato (por exemplo Sumulas 7 STJ e 279 STF) - não adianta falar que o carro não estava na contramão de direção - mas se pode pedir para revalorar a prova - por exemplo - pode discutir questão de direito em torno do modo como se provou - por exemplo - o recorrente somente confessou que estava na contramão porque era menor e foi torturado e essas provas seriam ilícitas (questão de direito).
Geralmente se admitem tais recursos para discutir negativa de vigência de lei federal (recurso especial - artigo 105 CF) e norma constitucional (artigo 102 CF) e uniformização de entendimento de turmas (embargos de divergência) - mas também pode haver, no caso do recurso especial a uniformização de jurisprudência de Tribunais diversos (ou seja, não adianta discutir divergência dentro do mesmo Tribunal em recurso especial - vide Súmula 13 STJ).
Ademais, não se misturando institutos, para uniformizar jurisprudência dentro de um mesmo Tribunal – quando se tem o que se chama demanda isomórfica (muitas demandas que se organizam em torno de uma questão de fato e de direito3) normalmente a uniformização se dá pelo IRDR – incidente de uniformização de demandas repetitivas (em casos relevantes e sem exigir o caráter isomórfico se tem o IAC – o incidente de assunção de competência) – nada disso tem a ver com o recurso excepcional (recurso especial por exemplo).
Do mesmo modo, partindo da ideia de que cláusulas contratuais pressupõem nova análise de questões de fato não se admite a sua revisão em recurso especial (Súmula 5 STJ) – isso seria revisão de fatos por via transversa (como se estabeleceu o contrato ? Porque se estabeleceu ? Havia hipossuficiente ? De quem foi a iniciativa ? etc).
Do mesmo modo, em recurso extraordinário a ofensa à Constituição Federal deve ser direta e não meramente reflexa - sob pena de não se admitir o recurso - ou seja, em caso de ofensa à legalidade não se pode dizer que se violou o artigo 944 CC porque se fixou indenização indevida - isso seria violação reflexa - o que seria diferente de se impor uma obrigação sem base legal algum - aí sim haveria uma violação direta.
Outro exemplo relevante – como os Tribunais vivem uma febre de imposição de reprimenda de multas por recursos protelatórios, supostamente, não se poderia discutir se a conduta foi ou não praticada (questão de fato) mas se pode apontar tese jurídica (por exemplo – pode-se aplicar litigância de má-fé sem indicar o dolo específico ? Pode-se aplicar litigância de má-fé sem indicar o dano causado pelo ato ? – são situações muito diferentes).
Outro requisito específico que começou a ser construído de modo pretoriano foi a exigência de um pré-questionamento recursal – ou seja, para a compreensão do que seja isso observe-se que tudo aquilo de relevante que um juiz deva deliberar para emitir um provimento (decisão com conteúdo decisório) dentro de um processo receba o nome de ponto processual.
Se ambas as partes concordam em torno daquilo se tem o ponto incontroverso (e sobre ele nem mesmo se admite a produção de provas, por exemplo, como se tem pelo disposto no artigo 374 e seus consectários CPC).
No entanto, do ponto de vista técnico, quando as partes discordam sobre o ponto surge a questão (pode-se defini-la, assim, como ponto controverso ou controvertido) – assim fica explicar pré-questionamento como algo que já tenha sido controvertido anteriormente no processo.
A ideia, portanto, é simples ditas tais observações – eis que basta lembrar que quando se profere a decisão se esgota a atividade do juiz quanto aquela parte da jurisdição – somente se devolvendo o exame da questão ao Poder Judiciário se houver recurso (base da ideia de um efeito devolutivo de um recurso – que se consubstancia na conhecida parêmia latina tanto devoluto quantum appelatum – somente se devolve aquilo que foi objeto de interposição – numa ideia geral).
Pelo óbvio que existem exceções como aquilo que se chama efeitos expansivos objetivos e subjetivos (quando o Tribunal de ofício aumenta a análise de questões sobre objetos e sujeitos em matérias de ordem pública, por exemplo) tal como pontua Nelson Nery Jr.4
Não pode ser surpresa para ninguém, deste modo, que não se possa vir a um tribunal superior e invocar matérias não suscitadas anteriormente (que estariam acobertadas pelo manto da preclusão, por exemplo, ou pelo princípio do deduzido-deduzível) – base da ideia de que se deva ter pré-questionado aquilo que será objeto do recurso raro ou excepcional (especial ou extraordinário de que se cuida neste breve artigo – mais voltado para meus alunos e milhares de ex alunos e para o público acadêmico de um modo geral).
Importante ainda analisar as Súmulas 98 e 211 STJ que garantem o direito de se interpor embargos de declaração para fins de pré-questionamento sem que se sofra condenação por litigância de má-fé - e também resta interessante observar o teor da Súmula 356 STF que assevera que basta o pré-questionamento implícito - se os fundamentos foram analisados nem necessidade de embargos de declaração surgirá.
Na opinião de Fredie Didier e Leonardo Carneiro da Cunha, a postura do STF, em sua Súmula 356 que não exige a expressa manifestação do E. Tribunal intermediário sobre os artigos de lei destacados em recurso é a mais correta, pois não submete o cidadão ao talante do tribunal recorrido, que, com a sua recalcitrância no suprimento da omissão, simplesmente retiraria do recorrente o direito a se valer das vias extraordinárias5.
- Confira a integra do artigo aqui.
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1 Na feliz acepçao utilizada por Kazuo Watanabe em sua obra já clássica sobre este assunto. DA COGNIÇÂO JUDICIAL.
2 Sobre a viabilidade de tais análises, a respeito do tema, as considerações trazidas por Karl Larenz: em seu magistral trabalho sobre metodologia do Direito: A distinção entre questão de facto e de direito perpassa todo o direito processual; o princípio dispositivo pressupõe especialmente esta distinção. O juiz julga sobre a "questão de facto" com base no que é aduzido pelas partes e na produção de prova; a questão de direito decide-a sem depender do que é alegado pelas partes, com base no seu próprio conhecimento do Direito e da lei, que tem de conseguir por si (jura novit curia). Só os factos, isto é, os estados e acontecimentos fácticos, são susceptíveis e carecem de prova; a apreciação jurídica dos factos não é objeto de prova a aduzir por uma das partes, mas tão-só de ponderação e decisão judicial. In LARENZ, KARL. Metodologia da Ciência do Direito. 3 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991.
3 Aqui, obviamente o interesse deixa de ser meramente individual posto que há um grande número de jurisdicionados atingidos e há grande relevância até mesmo para fins de celeridade e economia processuais – o que colaborará para o cumprimento de um tempo razoável de duraçao de processos e uso mais racional de um recurso público esgotável, raro e caro (tempo irrepetível de juízes e serventuários) e da própria máquina judiciária.
4 No clássico Teoria Geral dos Recursos Cíveis.
5 In DIDIER JÚNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. Vol. 3, 11ª ed., Salvador: JusPODIVM, 2013, p. 282.