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O seguro de responsabilidade civil como mecanismo da operação de transporte rodoviário de cargas

O presente artigo tem por objetivo a análise objeto das alterações promovidas na lei 11.442, de 5 de janeiro de 2007, com foco no estudo do seguro de responsabilidade civil do transportador como mecanismo para a realização da operação de transporte rodoviário de cargas.

7/7/2023

Para estudo do tema objeto das alterações promovidas na lei 11.442, de 5 de janeiro de 2007, ponderamos a adoção de um sistema de referência baseado em duas grandes escolas. Analisar-se-á a matéria sob a perspectiva da normatividade tributária percorrendo o positivismo de Hans Kelsen e o Constructivismo Lógico-Semântico.

Na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, há preocupação com o fechamento operacional do sistema do direito positivo, tendo em vista que as consequências são atreladas à realização das condutas pretendidas pelo legislador em garantia à estabilização e confiança sistêmica e consequente redução da complexidade social. Para ele, o Direito deve ser visto como uma ciência normativa que se pauta na imputação, cindindo a realidade em duas espécies - proposições prescritivas e descritivas -, com uma maneira hierarquizada de raciocinar e fundamentar a validade das normas (válida ou inválida).

Para ele, a interpretação jurídica deve ser autêntica e não-autêntica. E as decisões devem ser fundamentadas a partir do Direito Positivo, porquanto as pessoas se sentem inseguras com a interpretação, tendo em vista a ausência de limites que o intérprete pode alcançar. Hans Kelsen considera irracional o ato de vontade porque o querer não é racional e a racionalização deve ser fixada nos limites do Direito Positivo, cuja linguagem técnica não pode ter vaguidade e ambiguidade. Entende que a liberdade do indivíduo é limitada pela textura da norma, na qual é possível a visualização das eventuais consequências dos seus atos. Hans Kelsen almejava a pureza metodológica do Direito, isto é, deveria ser visto sem ideologias, de forma pura.

Por sua vez, a escola do Constructivismo Lógico-Semântico, do Professor Lourival Vilanova da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, cujos estudos brilhantemente foram prosseguidos pelo Professor Paulo de Barros Carvalho, nos proporcionará uma visão de outros aspectos do Direito Positivo, utilizando-se da Teoria Comunicacional do Direito, porquanto o Direito é um objeto cultural cuja realidade é construída pela linguagem, dentro dos fundamentos da unidade do sistema, no subsistema do Direito para prescrever obrigações, permissões e proibições direcionadas à regulação da conduta humana.

O método adotado por essa escola possibilita que parcelas das comunicações sejam analisadas detidamente, mediante decomposição dos objetos em partes mínimas, permitindo a identificação dos signos por meio da semiótica que é responsável pelo estudo das unidades representativas do discurso, caracterizando-se uma teoria do pensamento como signo, uma vez que não é possível imaginar que existem pensamentos sem signos, bem como pelo fato da Teoria de Conhecimento somente se dar em signos. Tudo ao nosso redor é linguagem. O Direito é texto.

O processo de investigação dos signos por meio do processo semiótico e' dividido em três planos: o sintático que estuda as relações dos signos entre si, isto é, as relações estruturais da norma jurídica e do sistema do Direito; o semântico que possibilita o estudo da realidade que é exprimida pelos signos, os significados atribuídos aos signos positivados no sistema jurídico; e o pragmático nos permite analisar como os utentes da linguagem se comportam em relação aos signos, como utilizam a linguagem jurídica.

Vislumbra-se, assim, que em cada um desses sistemas de referência temos um conjunto de instrumentos teóricos de grande valia que proporcionam uma forma de ver o mundo fenomênico, o que consequentemente implica em resultados analíticos distintos, uma vez que interpretar é fazer perguntas, questionar, revisitar os textos, se reposicionar frente a objetos, construir sentido e produzir texto.

1. DO TRANSPORTE RODOVIÁRIO DE CARGAS

O transporte rodoviário no Brasil é o principal modal utilizado para o deslocamento de bens e pessoas em nosso país, apresentando-se como um elo essencial da cadeia logística uma vez que transportar se trata do ato ou efeito de conduzir pessoas ou coisas no tempo e no espaço, de um determinado local a outro, tratando-se de uma obrigação de deslocamento por meio de condições previamente acordadas entre as partes, mediante remuneração, sendo esse responsável pelo abastecimento de bens ao longo do território nacional.

A realização da prestação de serviços de transporte rodoviário de cargas, por conta de terceiros, mediante remuneração, depende de prévia inscrição do interessado em sua exploração no Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Cargas - RNTR-C da Agência Nacional de Transportes Terrestres - ANTT, sendo regulado pela Resolução ANTT 4.799, de 2015. O Registro Nacional de Transporte Rodoviário de Cargas - RNTR-C1, aponta que atualmente existem 1.267.973 transportadores ativos, sendo que do total de ativos, 957.800 (75,53%) são Transportadores Autônomos de Cargas – TACs, 309.599 (24,42%) são Empresas de Transporte Rodoviário de Cargas – ETCs e 574 (0,05%) Cooperativas de Transporte Rodoviário de Cargas – CTCs.

Percebe-se que o transporte rodoviário de cargas está cada vez mais presente ao longo do território nacional, representando atualmente 60% de todos os transportes realizados internamente em nosso país, por isso é essencial o estabelecimento de condições que garantam o livre exercício da atividade pelos transportadores, bem como o bem-estar e a segurança da sociedade.

Para tanto, foi sancionada pela Presidência da República a lei 11.442, de 05 de janeiro de 2007, publicada no Diário Oficial da União - DOU - em 08 de janeiro de 2007, dispondo sobre o transporte rodoviário de cargas por conta de terceiros, mediante remuneração, para contribuir com a competitividade nacional, a eficiência logística, a efetividade do ordenamento, a regulação, a fiscalização, eficiente e de modo efetivo, dos serviços de transporte rodoviário, o melhoramento do nível dos serviços prestados, o aperfeiçoamento normativo etc., sendo essencial alcançar novos patamares de competitividade no setor de transportes.

2. DA MEDIDA PROVISÓRIA 1.153, DE 2022

Em 29 de dezembro de 2022, foi editada a Medida Provisória 1.153, publicada no Diário Oficial da União – DOU – em 30/12/22, entrando em vigor com força de lei, dispondo sobre a prorrogação da exigência do exame toxicológico periódico, alterando a lei 9.503, de 23 de setembro de 1997, que institui o Código de Trânsito Brasileiro, alterando a lei 11.442, de 5 de janeiro de 2007, quanto ao seguro de cargas, e alterando a lei nº 11.539, de 8 de novembro de 2007, quanto às cessões de Analistas de Infraestrutura e Especialistas em Infraestrutura Sênior.

Releva notar que o subsistema social do Direito além de ter normas para regular condutas, também possui normas que prescrevem a sua criação, isto é, o modo de produção de outras normas. São as regras de estrutura. Hans Kelsen, na obra Teoria Pura do Direito, ao discorrer sobre o fundamento de validade das normas afirma que o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser outra norma, ou seja, o próprio sistema do Direito Positivo proporciona a sua unidade por meio de um processo de fundamentação e derivação, reconhecendo que na Carta Republicana está o fundamento maior de validade, regulando a criação de toda a legislação pertencente ao sistema jurídico.

Desse modo, necessário se faz reconstruir a enunciação por meio dos vestígios deixados no texto legislativo para verificarmos o atendimento dos requisitos plasmados na ordem jurídica, bem como para constatar se o veículo introdutor e a norma introduzida atenderam todos os critérios de pertinencialidade, procedimentais e de validade previstos na ordem jurídica.

Pois bem. O artigo 62 da Carta Republicana prescreve que cabe ao Presidente da República, em caso de relevância e urgência, respeitando-se as matérias vedadas, a adoção de medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional para deliberação de acerca do texto. A Medida Provisória 1.153, de 29 de dezembro 2022, foi editada pelo Presidente da República à época, Jair Messias Bolsonaro, sendo encaminhada ao Congresso Nacional na mesma data. A matéria foi submetida a apreciação pelo Plenário das duas Casas do Congresso Nacional, nos termos prescritos no Ato Conjunto 1, de 2020, das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, instalando-se a Comissão Mista.

Foram apresentadas emendas à Medida Provisória dentro do prazo regimental. A Mesa da Câmara dos Deputados designou o Relator, Deputado Federal Hugo Motta, que proferiu Parecer no Plenário da Câmara dos Deputados, sendo a matéria aprovada e remetida ao Senado Federal. Nessa Casa, foi designado o Relator, Senador Federal Giordano, que proferiu Parecer em Plenário, o qual foi aprovado por unanimidade. A matéria foi remetida a sanção da Presidência da República, sendo sancionada e publicada no Diário Oficial da União – DOU – em 20/06/23.

Ressalta-se que ambas as Casas do Congresso Nacional reconheceram o atendimento dos pressupostos constitucionais de relevância e urgência; da constitucionalidade, juridicidade e boa técnica legislativa; da não implicação financeira ou orçamentária da matéria e suas emendas, em aumento ou diminuição da receita e da despesa pública, não cabendo pronunciamento das Casas quanto à adequação financeira ou orçamentária. Constata-se, portanto, que o veículo introdutor de normas e a norma introduzida no sistema jurídico atenderam plenamente todos os critérios procedimentais, materiais e formais, de pertinencialidade e de validade prescritos na ordem jurídica.

3. DAS ALTERAÇÕES PROMOVIDAS PELA LEI 14.599, DE 2023

Ponderando a complexidade do tema em análise, optamos por realizar o isolamento temático para fixar os critérios de distinção do objeto de estudo dos demais. Isto é, delimitamos o tema às alterações trazidas pela lei nº 14.599, de 2023, ao artigo 13, da lei 11.442, de 2007, para construirmos o sentido do texto dentro de determinado contexto por meio dos planos da linguagem e assim produzirmos o sentido do objeto mediante a compreensão do conjunto de palavras, frases e parágrafos, que repousam graficamente nos documentos legislativos, possibilitando a construção interpretativa para contextualizar as significações obtidas nesse processo gerador de sentido, especialmente por nos referirmos a uma significação obtida a partir dos textos positivados pelo legislador no sistema jurídico.

Logo, necessário se faz explicar os termos e os conceitos, colocando-os em palavras para identificarmos a forma do uso do termo que iremos definir, possibilitando aclarar significados e eliminar ambiguidades e vaguidades. Cabe destacar que toda definição de um termo é composta por definiendum (Transportador Autônomo de Cargas - TAC) e definiens (pessoa física que tenha no transporte rodoviário de cargas a sua atividade profissional).

Para construção do significado do termo que será definido (definiens) são utilizadas palavras para explicar o seu conceito e delimitar o campo de aplicabilidade (definiendum). É assim que atribuímos limites demarcatórios no campo de propagação semântica do termo, o que permite organizar as nossas ideias de maneira lógica e coerente, afastando a sua imprecisão e trazendo credibilidade ao discurso. Já o conceito do termo pode ser definido por denotação e conotação. As definições denotativas (“Caminhoneiro, motorista autônomo, TAC-agregado, freteiro etc.”) são definições abertas que induzem o pensamento do intérprete, porquanto não determinam o conceito, exigindo a definição conotativa do conceito (“Transportador Autônomo de Cargas – TAC: pessoa física que tenha no transporte rodoviário de cargas a sua atividade profissional”).

Percebe-se, assim, que por meio da definição podemos estabelecer os critérios para uso adequado da palavra, reduzindo a ambiguidade e a vagueza do termo, o que nos possibilita a criação de uma classe, autorizando a verificação do critério de pertinência à classe, uma vez que ou temos a característica (uma ou mais) ou não, não havendo uma terceira possibilidade\.

O artigo 1º e 2º da lei 11.442, de 2007, prescreve sobre o transporte rodoviário de cargas por conta de terceiros, mediante remuneração, no território nacional, estabelecendo que se trata de uma atividade econômica de natureza comercial, exercida por pessoa física ou jurídica, e depende de prévia inscrição no RNTRC da ANTT, definindo as seguintes categorias: Transportador Autônomo de Cargas – TAC -, Empresa de Transporte de Cargas – ETC - e Cooperativa de Transporte de Cargas - CTC. O artigo 3º da Resolução 5.982, de 20222, que regulamenta os procedimentos para inscrição e manutenção no Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Cargas - RNTRC, reafirma as categorias definidas no artigo 2º da lei 11.442, de 2007.

Evidentemente a definição prescrita na ordem jurídica serve para deixar claro o seu conteúdo, bem como para colocar limites a sua essência e assim não se confunda com outra. Com efeito, a relação de pertinência entre duas classes, representada por “x ? K”, demonstra que todo objeto “x” que satisfaça os requisitos conotativos da classe “K” a ela pertence. Podemos exemplificar a relação de pertinência por meio da função proposicional que define os critérios, v.g., “x é Transportador Autônomo de Cargas - TAC”, o que faz com que todos os elementos que se enquadrem na extensão do conceito de Transportador Autônomo de Cargas - TAC pertençam a classe “K” e ganhem sua predicação “pessoa física que tenha no transporte rodoviário de cargas a sua atividade profissional”, tornando-se uma proposição (A pessoa física que tenha no transporte rodoviário de cargas a sua atividade profissional é um Transportador Autônomo de Cargas - TAC) que podemos atribuir valoração (verdadeira ou falsa).

Nessa linha de raciocínio, o transporte rodoviário de cargas realizado por pessoa física ou jurídica, efetuado com veículos de sua propriedade ou em sua posse, e que se aplique exclusivamente a cargas para consumo próprio ou distribuição dos produtos por ela produzidos ou comercializados, sem que haja cobrança destacada de frete (art. 2º, XI, da Resolução ANTT 5.982, de 2022), isto é, o Transporte Rodoviário de Carga Própria ou não remunerado, não pertence a classe K (“x ? K”), prescrita na lei 11.442, de 2007, incidindo somente em relação aos Transportador Autônomo de Cargas - TAC -, a Empresa de Transporte Rodoviário de Cargas - ETC - e a Cooperativa de Transporte de Cargas - CTC -, que realizar o transporte rodoviário de cargas por conta de terceiros e mediante remuneração, no território nacional. 

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1 https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiOTczNzdmYzktNzU3NS00NGJkLTk0ZjktNDY2MDV%20kZjQzZmU3IiwidCI6Ijg3YmJlOWRlLWE4OTItNGNkZS1hNDY2LTg4Zjk4MmZiYzQ5MCJ9 

2 Resolução ANTT nº 5.982, de 2022 https://anttlegis.antt.gov.br/action/ActionDatalegis.php?acao=abrirTextoAto&link=S&tipo=RES&numeroAto=00005982&seqAto=000&valorAno=2022&orgao=DG/ANTT/MI&cod_modulo=161&cod_menu=7796

Luiz Otavio Emygdio Pereira Ranalli
Pós-graduando stricto sensu em Direito pela PUC-SP. Pós-graduado lato sensu em Direito Tributário pela PUC-SP. Graduado em Direito. Professor assistente. Advogado.

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