Quando ocupei o honroso cargo de Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, autorizado pelo art. 128 §5º da CF/1988, exerci a iniciativa de enviar à Assembleia Legislativa o projeto de Lei Orgânica do Ministério Público, elaborado com o auxílio de meus assessores e com consulta à classe.1
Nesse projeto, alguns princípios gerais foram adotados: todos os atos monocráticos de membros do Ministério Público seriam sujeitos a recurso; o Colégio de Procuradores seria o órgão deliberativo a respeito dos temas institucionais e o Conselho Superior dos temas referentes à vida funcional dos membros da Instituição (e atribuições legais previstas em outras leis); para assegurar a inamovibilidade, limitou-se muito as designações para cargos fixos e as meras funções da época foram alocadas a cargos então criados; buscou-se estabelecer um sistema de checks and balances: maior responsabilidade, maior sujeição ao Direito Administrativo Sancionador.2
Pois bem. O projeto converteu-se na lei complementar 734, de 26 de novembro de 1993 – a Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo.
Neste artigo quero me referir à uma especial atribuição que fora dada ao Procurador-Geral, no art. 129, verbis:
Art. 129. Além de outras previstas em normas constitucionais ou legais, são atribuições processuais do Procurador-Geral de Justiça:
V — Promover o inquérito civil e a ação civil pública para a defesa do patrimônio público e social, bem como da probidade e legalidade administrativas, quando a responsabilidade for decorrente de ato praticado, em razão de suas funções, por:
a) Secretário de Estado;
b) Membro da Diretoria ou do Conselho de Administração de entidade da Administração Indireta do Estado;
c) Deputado Estadual;
d) Membro do Ministério Público;
e) Membro do Poder Judiciário;
f) Conselheiro do Tribunal de Contas.
A razão de ser dessa norma é a possibilidade de haver a destituição do PGJ em caso de abuso de poder, conduta incompatível ou grave omissão nos deveres do cargo (art. 13 da Lei Orgânica). Ele é o único membro da instituição que pode ser destituído de seu cargo.
Ora, qualquer outro membro do Ministério Público que promovesse ação civil pública contra um Secretário de Estado, por exemplo, agindo com evidente abuso de poder ou por mera motivação político-partidária, não perderia o cargo e dificilmente sofreria punição administrativa, conquanto seu comportamento viesse a comprometer a dignidade pública daquele réu. A eventual punição administrativa – como disse, se viesse a ser aplicada – era desproporcional ao prejuízo causado ao patrimônio moral e político do acusado – e essa circunstância nos preocupava.3
A solução que encontramos foi dar a titularidade do inquérito civil e da ação civil pública ao Chefe da Instituição, sempre que envolvesse algum dos agentes políticos referidos no dispositivo citado, pois, se ele não agisse corretamente, poderia ser cassado.
Ainda de se lembrar que, em caso de arquivamento, a pessoa juridicamente interessada tinha o direito de recorrer dessa decisão ao Colégio de Procuradores, como previsto no art. 117 da Lei Orgânica.
Contudo, a oposição política interna, a pretexto de que a regra feria a constituição, por disciplinar matéria processual, da exclusiva atribuição da União, representou pela inconstitucionalidade da norma ao PGR.4
A ação foi interposta, com pedido liminar de suspensão da eficácia das normas havidas por inconstitucionais (ADI 1.285-1/SP).
O Relator da matéria foi o Ministro Moreira Alves e era Presidente o Ministro Celso de Mello.
Deferiu-se a liminar para suspender a eficácia da expressão “e a ação civil pública” do inciso V do. 116 da Lei Orgânica, em 25 de outubro de 1995:5
“Pedido liminar deferido em parte, para suspender a eficácia “ex tunc” e até o julgamento final desta ação, das expressões “e a ação civil pública” contida no inciso V do art. 116 da lei Complementar no 734, de 26 de novembro de 1993, do Estado de São Paulo” (decisão tomada contra voto do Ministro Marco Aurélio).
Portanto, a expressão “e a ação civil Pública” foi suspensa desde a entrada em vigor da LC 734/93, isto é, desde 26 de novembro de 1993.
Trinta anos depois, o art. 129, inciso V da Lei Orgânica entra vigor, porque em fevereiro deste ano de 2023, o STF decidiu a questão para julgar a norma constitucional (e reincluir a expressão e a ação civil pública) e revogar a liminar. Foi Relator o Ministro Luís Roberto Barroso, cujo voto foi unanimemente acolhido, inclusive com declaração de voto vencedor do Ministro Alexandre de Morais.
Entendeu, o Relator, com apoio na jurisprudência do STF, que a disciplina legal do inquérito civil não se inclui no âmbito do Direito Processual Civil, a atrair a competência privativa da União. Trata-se fase pré-processual de natureza procedimental, cuja disciplina é de competência legislativa concorrente dos Estados e da União, nos termos do art. 24, XI CF/1988”. Mais adiante, acrescenta: “a simples menção à ação civil pública não faz com que a natureza da norma seja processual. O dispositivo apenas distribui atribuições internas aos membros da instituição. Trata-se de norma organizacional, matéria reservada à lei complementar estadual, nos termos do art. 128 §5º da Constituição. O pedido de declaração de inconstitucionalidade, portanto, não deve prosperar”.
Também, segundo o ilustre Relator, a norma não ofende a independência funcional do MP: “O art. 127, § 1º da CF/1988 estabelece o princípio da independência funcional como atributo da instituição do MP, e não de cada um de seus membros em particular” – e acrescenta: “É certo que, no exercício de suas atividades, os membros do MP ostentam independência funcional por representarem e presentarem a instituição. No entanto, não seria lógico opor a independência funcional do membro do MP à independência funcional da própria instituição a que pertence”.
Em 2020, publiquei o livro intitulado “Revisitando uma História Sem fim: o Ministério Público em Tempos de Crise”6 no qual apontei caminhos que, a meu ver, poderiam levar a Instituição a vencer a crise.
Um deles foi a necessidade de fortalecer o PGJ, “dotando-o de efetivos poderes em sua área de atuação e não apenas nas suas atividades administrativas. Nesse sentido, o Ministério Público deveria lutar para que a liminar concedida na ADI 1.285/SP fosse cassada. Somente quem pode ser destituído do cargo deve poder processar os agentes políticos, para que se estabeleça um verdadeiro sistema de pesos e contrapesos”.7
Com um pequeno atraso de trinta anos, voltamos ao passado para tornar eficaz uma lei que, desde seu nascimento, estava correta.8
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1 O projeto também foi assinado pelo então Governador Fleury, que fora membro ilustre da Instituição.
2 A concepção de o Direito Administrativo Sancionador era, então, deveras incipiente, mas seus princípios já existiam e eram bem conhecidos.
3 A independência funcional sempre foi a defesa, nesses casos. Um conceito, aliás, que merece maiores aprofundamentos.
4 Mas, em verdade, buscou disseminar a ideia de que nossa iniciativa feria a independência funcional dos promotores, subtraindo-lhes importante atribuição. E disso fez uma bandeira política interna. Os jornais da época divulgaram essa ideia em linhas garrafais.
5 Como dito anteriormente, neste artigo enfoco apenas a questão de direito envolvendo o art. 129 da Lei Orgânica.
6 Editora Contracorrente.
7 Obra citada, p. 78/79.
8 O efeito modular conferido pelo Relator torna válidos os atos praticados na vigência da liminar, agora derrubada.