Migalhas de Peso

Além dos pecados - Acidentes e doenças do trabalho

O presente texto foi escrito após participação em Congresso do ISMA.

4/7/2023

A canção It’s a sin, do Pet Shop Boys, dupla da Inglaterra, década de oitenta, salienta conceitos, pensamentos e tormentos incrustados em nossa cultura. O pecado, a culpa, o erro e a condenação nos fazem olhar para o passado, com escassos passos adiante.1

As compreensões do direito que temos não são “nascidas” após a Idade Média. Foram, ali, “renascidas”. Desde Roma, busca-se reparar o mal e repor o status quo ante. Muitas e crescentes vezes, se percebe que é inviável, o que supera as possibilidades destas linhas.

A reparação das lesões, injustas, deve ser integral. Recorde-se o brilhante estudo de Paulo de Tarso Sanseverino, conosco fisicamente até 8 de abril de 2023. O sempre Ministro do Superior do Tribunal de Justiça, assinala a evolução do tema na Itália, França, Alemanha e Brasil2

Os danos materiais devem ser reparados em sua integralidade, repete-se. Os danos morais devem ser compensados, acrescenta-se. Aqui, neste segundo subtema, já se tem algo novo, construído mais recentemente, após a Idade Média e, por óbvio, após o direito conhecido em Roma. No Brasil, por exemplo, a aceitação deste avanço não foi tranquila nestes cem anos, demorando o consenso. Registra-se, sobre este subtema, novo, com menos de um século, a recente aula do Desembargador José Acir Lessa Giordani, Escola da Magistratura do Rio de Janeiro.3

Nos dias atuais, dano “existencial” é a pesquisa de Flaviana Rampazzo.4 Dano “social” é a pesquisa de Yuri Fisberg. Este autor, integrante do Ministério Público de São Paulo, lembra o Enunciado 456 da V Jornada de Direito Civil e percebeu que “A problemática da função da responsabilidade civil extrapola a análise intrínseca do instituto; constitui verdadeira reflexão filosófica sobre o papel do Direito”.5

As paredes e atribuições dos setores de Recursos Humanos, dos Departamentos Médicos e afins internos às empresas já são insuficientes para enfrentar os temas das doenças e acidentes de trabalho. As dificuldades e obstáculos são maiores.

As contribuições da estatística passaram a ser necessárias. O conceito de Ntep – nexo técnico epidemiológico foi inserido na lei 8.213, artigo 21-A. Para tanto, foi relevante a contribuição de Paulo Rogério Albuquerque de Oliveira.6

O cruzamento dos dados de previdência pública é viável, a partir da verificação de CNAE – classificação nacional de atividades econômicas e de CID – classificação internacional de doenças.

Estamos diante de contribuição do Brasil, todavia, com utilização de aprendizados internacionais. Existe a letra “i” em CID – código internacional de doenças e em CIF – classificação internacional de funcionalidades.

A configuração de “epidemia” ou seja grande incidência de doenças e acidentes é fato relevante. Muito mais do que mera presunção. É um fato a ser considerado no exame dos casos concretos. Por certo, é aceitável a prova específica de que a doença ou acidente ocorreu por fato diverso.

O direito processual sobre prova, mais antigo, por vezes, é insuficiente para a assimilação do que se apontou no parágrafo anterior. A verificação de “epidemia” através da configuração do Ntep não é mera presunção. É, sim, constatação de um fato, outro, geral, a ser considerado no exame de cada caso.

Aceitam-se, por óbvio, debates específicos, outros, que inclusive, eventualmente, possam apontar causas diversas para a ausência de saúde. Oportuno, lembrar que a instrução probatória haverá de respeitar suas regras e limites razoáveis. O documento que está na última gaveta da empresa é muito menos “privado” do que a intimidade da vida pessoal e familiar do ex-trabalhador.

O mencionado artigo 21-A, inserido na lei 8.213, foi declarado constitucional, sim. Esta foi a decisão do Supremo Tribunal Federal, em abril de 2.020, na Adin – ação direta de inconstitucionalidade 3.931, sendo Relatora a Ministra Carmen Lucia Antunes Rocha.7

O vergonhoso fenômeno das subnotificações haverá de ser superado. Lembra-se e questiona-se sobre a oportunidade do direito penal. Por ora, Ney Fayet Junior salienta que “Todavia, as medidas penais aditivas — que foram, aqui, apenas recenseadas — não sugerem significativo aumento de eficácia preventiva ou de equilibrada retribuição — tampouco se enquadram como ‘novas soluções’ ou ‘novos equilíbrios’, com o que se deve, ainda uma vez, por ora, preservar o sentido da utilização do direito penal como ultima ratio, id est, o último recurso a ser utilizado na ausência de outros menos lesivos”.8

Antoine Garapon percebeu as dificuldades e limites do Judiciário na sociedade atual. Este Juiz na França, assinalou que estamos diante do “último palco de uma sociedade sem projetos”.9

Alain Supiot, igualmente, na França, exatamente no nosso tema, assinalou que:

“En la relación de trabajo, y a diferencia del empresário, el trabajador no arriesga su patrimônio, arriesga su piel. Y, em primer lugar, el derecho del trabajo surgió para salvar esta última, es decir, para imponer uma seguridade em el trabajo. La seguridade física de las personas es um principio fundamentl del estado de derecho, es decir, de una sociedade “civilizada””.10

Alain Supiot, na nota de rodapé, junto ao parágrafo antes transcrito, chega a lembrar Freud, em sua obra sobre o mal-estar, entre nós. Apesar das variações das diversas edições, certamente, refere-se ao parágrafo:

“A vida humana em comum só se torna possível quando se reúne uma maioria mais forte do que qualquer indivíduo isolado e que permanece unida contra todos os indivíduos isolados. O poder dessa comunidade é então estabelecido como ‘direito’, em oposição ao poder do indivíduo, condenado como ‘força bruta’. A substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da civilização. Sua essência reside no fato de os membros da comunidade se restringirem em suas possibilidades de satisfação, ao passo que o indivíduo desconhece tais restrições. A primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo. ...sacrifício de seus instintos”.11

O direito, provavelmente, nem sempre esteve tão associado às proibições. José Eduardo de Resende Chaves Júnior fala de um momento bem inicial, que denomina de “direito nômade”.12

O direito haverá de servir para superarmos a violência, na busca da paz, no dizer de Sebastião Geraldo de Oliveira, Desembargador no Tribunal Regional do Trabalho, de Minas Gerais.13

Maria Celina Bodin de Moraes salienta que “a responsabilidade civil também mudou. ...passando da atenção exclusiva para com o ato ilícito para preocupação com o dano injusto, ou injustificado. Enquanto, no início do Século XX, se não se encontrava um culpado, cabia à própria vítima suportar os prejuízos”.14

Na Justiça do Trabalho do Rio Grande do Sul, existe a significativa experiência de duas Varas do Trabalho especializadas em acidentes e doenças do trabalho. São a 30ª VT de Porto Alegre e a 6ª de Caxias do Sul. No segundo grau, por duas ocasiões, chegou-se a examinar a possibilidade de uma Turma especializada no tema.

No tema dos acidentes e doenças do trabalho se pode muito avançar, com as ideias de prevenção, precaução e, até mesmo, do direito promocional. As sanções premiais tem sido bem mais frequentes, no direito ambiental, por exemplo. Estes novos passos são apontados, também, por Norberto Bobbio.15

A criação do SUS – sistema único de saúde tem sido objeto de estudo por muitos. Ana Paula Oriola de Raeffray assinalou a verdadeira reconstrução da relação da sociedade com o Estado e expressou que “a vida é tão curta, a arte demora tanto a aprender, a oportunidade vai logo embora, a experiência engana e o julgamento é difícil”.16

O presente texto foi escrito após participação em Congresso do ISMA, organização de Ana Maria Rossi, junho 2023, Porto Alegre, junto com Sebastião de Oliveira, Desembargador no Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais, Jorge Boucinhas, advogado em São Paulo e Márcio Lima do Amaral, Juiz do Trabalho e Presidente da AMATRA, do Rio Grande do Sul.17

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1 Pet Shop Boys, It's a sin, com tradução em legendas, 

https://www.youtube.com/watch?v=zNzpMNr-mqo

2 Paulo de Tarso Sanseverino, “Princípio da Reparação Integral, a indenização no Código Civil”, São Paulo: Saraiva, 2010.

3 Emerj, especialmente, momentos 4min e 13min15 de

https://www.youtube.com/watch?v=6OLxb6l7VvA

4 Flaviana Rampazzo, “Responsabilidade Civil por dano existencial”, Porto Alegre: Livraria Editora do Advogado, 2009.

5 Yuri Fisberg, “Dano Social reparação, aspectos processuais e destinação”, São Paulo: Almedina, 2021, p 50.

6 Inicialmente, o registro da coletânea “Saúde e trabalho no Brasil: Uma revolução silenciosa”, organizada por Jorge Machado, Lucia Soratto e Wanderley Codo, Editora Vozes, 2010. Existem, após, livros do próprio Paulo Rogério Albuquerque de Oliveira,

https://www.amazon.com.br/Livros-Paulo-Rog%C3%A9rio-Albuquerque-de-Oliveira/s?rh=n%3A6740748011%2Cp_27%3APaulo+Rog%C3%A9rio+Albuquerque+de+Oliveira

7 Adin 3.931 com Acórdão disponível em 

https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2541930

8 Ney Fayet Junior, "Dos acidentes de trabalho - (sociedade de) risco, proteção dos trabalhadores e direito criminal", Porto Alegre: Editora Aspas, 2020, 4ª edição, pg 359.

9 Antoine Garapon, “O Juiz e a Democracia”, Rio de Janeiro: Revan, 1922, p 174. O autor participa de Revista Jurídica, disponível em

https://esprit.presse.fr/article/antoine-garapon/un-moment-d-exception-42716

10 Alain Supiot, “Crítica del Derecho del Trabajo”, Madrid: Ministerio de Trabajo, 1996, p 90.

11 Sigmund Freud, “O Mal-estar na Civilização”, Rio de Janeiro: Imago, 1997, p 49. Igualmente, ao final do capítulo três, disponível em 

https://bibliotecasocialvirtual.files.wordpress.com/2010/06/freud-o-mal-estar-na-cultura.pdf

12 José Eduardo de Resende Chaves Junior, “El derecho nómada : un paso hacia el derecho colectivo del trabajo desde el "rizoma" y la "multitud" disponível em

https://e-archivo.uc3m.es/handle/10016/3075

O Desembargador José Eduardo de Resende Chaves Junior, também, esteve em abertura de sessão no TRT, RS, 

https://www.youtube.com/watch?v=uLU7L5O4-NE

13 Sebastião Geraldo de Oliveira, em abertura de sessão no TRT RS, tratando da Lei 13.185, sobre bullying,

https://www.youtube.com/watch?v=FLm0Us9D29g&t=128s

14 Maria Celina Bodin de Moraes, “Na medida de pessoa humana – estudos de direito civil constitucional”, Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p 428.

15 Norberto Bobbio, in “Análise Funcional do Direito – tendências e problemas”, disponível em

https://www.studocu.com/pt-br/document/universidade-federal-da-bahia/teoria-do-direito-i/1-bobbio-norberto-a-funcao-promocional-do-direito/58980644

16 Ana Paula Oriola de Raeffray, “Direito da Saúde – de acordo com a Constituição Federal”, São Paulo: Quartier Latin, 2005, p 9.

17 Congresso ISMA, International Stress Management Association no Brasil, 2023,

Ricardo Carvalho Fraga
Desembargador do Trabalho - TRT/RS

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