O Direito Penal, que tem como uma de suas funções principais a de controle social, regulamenta o poder punitivo do Estado e impõe sanções penais a condutas tidas como crimes ou contravenções penais, devendo sua aplicação estar em conformidade com os ditames legais e constitucionais.
Sob tal égide, apenas em casos de maior gravidade e quando outros âmbitos, sejam eles jurídicos ou não, falharem no deslinde de determinada problemática, é que far-se-á necessária a utilização do Direito Penal para sanar a controvérsia.
Esta perspectiva baseia-se na ideia de um Direito Penal Mínimo, o qual visa o fortalecimento de diversos direitos e garantias fundamentais, expressos em nossa Constituição Federal, gerando uma minimização das arbitrariedades e violências, bem como uma maximização da liberdade.
No entanto, o pensamento humano é pendular e, por isso, a alternância de vieses políticos e ideológicos é, até certo ponto, esperada.
O progressivo aumento da criminalidade nas ruas e repetidos escândalos de corrupção de grande repercussão midiática fez soerguer movimentos punitivistas que alargam inadequadamente a finalidade do direito penal, contaminando, inclusive, parte judicatura.
Com isso, princípios de relevantíssima estatura constitucional como o contraditório e ampla defesa, paulatinamente, ao longo dos últimos anos, cederam lugar a processos penais politicamente contaminado por anacrônicos anseios de linchamento.
Entretanto, mais recentemente, é perceptível o movimento de retorno do processo penal às bases democráticas, a demonstrar uma reaproximação entre o direito de o estado punir e o dever de oferecer ao acusado todas as garantias conferidas pelo ordenamento jurídico, tratando-o como sujeito de direitos, e não mero objeto do processo.
Movimento que não teve início apenas nos ritos processuais de primeiro grau, mas principalmente nos Tribunais, no STJ e STF.
O próprio TJ/SP, em sua 10ª câmara de Direito Criminal, ao julgar uma apelação, absolveu um indivíduo pela prática de crime de desobediência, por empreender fuga ao perceber que seria abordado pela polícia. Para isso, o acórdão traz um precedente do próprio tribunal, fundamentando que “a fuga à voz de prisão não tipifica, pois é instinto de liberdade e não vontade de desobedecer” (TJSP, mv - RJTJSP 71/317; TACrSP, RT 555/374)”, o que demonstra uma vertente garantista, uma postura que deveria ser adotada por todos os tribunais.
No âmbito dos Tribunais Superiores, o STFe o quanto STF também caminham para uma evolução interpretativa do Direito Penal. No que tange a nossa Corte Suprema, merece destaque um Habeas Corpus, de relatoria do Ministro Nunes Marques, da 2ª turma STF, em que foi concedida ordem para revogação da prisão preventiva decretada contra um sujeito que foi preso com 49,64 gramas de maconha, reconhecendo que a prisão preventiva não caberia ao caso supracitado, visto que “(...) pequena quantidade de droga apreendida nos presentes autos (49,64g de maconha em porção única) não é fundamento apto, por si só, a evidenciar a gravidade concreta da conduta, possibilitando, desse modo, a substituição da prisão preventiva por medidas alternativas(...)”, o que evidencia o caráter excepcional da segregação cautelar.
Quanto ao Superior Tribunal de Justiça , o Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, da 5ª turma, concedeu a ordem em Habeas Corpus para revogar a prisão preventiva de um sujeito acusado pelo crime de tráfico de drogas. Em sua fundamentação, o julgador asseverou que “(...) não se mostra suficiente para a segregação cautelar in casu as ponderações do Magistrado singular a respeito da gravidade abstrata do crime, bem como quanto aos seus efeitos nefastos para a sociedade, porquanto não foi apontado qualquer elemento relativo ao caso em exame que embase a necessidade de excepcional medida constritiva, o que se afigura inadmissível (...)”. Neste diapasão, observa-se uma clara percepção de que a gravidade em abstrato do crime jamais pode ser fundamento para prisões processuais, sendo um considerável avanço garantista frente a concepções retrógradas e autoritárias.
O mesmo Ministro, em maio deste ano, concedeu Habeas Corpus para determinar que o Tribunal Regional Federal da 5ª Região aprecie outro HC lá impetrado, assentando que “o tribunal local não pode deixar de analisar existência de ilegalidade apenas com base no fato de o HC ser sucedâneo de revisão criminal.”
Além do supracitado julgado, outra clara demonstração de readequação do Direito Penal ocorreu na sessão de 21 de março de 2023, da 6ª Turma do STJ, em que o Ministro Rogério Schietti tratou do teor da Súmula 231 do STJ, a qual preceitua que “A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal”.
Implementou-se proposta de afetação à Terceira Seção acerca de 3 recursos especiais que postulavam a fixação de pena abaixo do mínimo legal. Segundo o Ministro, tal proibição expressa na súmula foi baseada em jurisprudências da década de 90 e já houve diversos avanços na doutrina e em diversos institutos jurídicos durante esse tempo, o que gerou a necessidade de uma reavaliação desse entendimento.
Seguindo a redemocratização assertiva das Cortes Superiores, o Ministro Joel Ilan Paciornik, da 5ª turma de Direito Penal do STJ, ao proferir voto no Habeas Corpus nº HC 777.395/SC, determinou o trancamento de ação penal por ter o juiz determinado, de ofício, o aditamento da denúncia. A ordem foi concedida ex officio porque o Ministro reconhecera o constrangimento ilegal.
O Processo Penal brasileiro é estruturado e amparado no sistema acusatório, que delimita efetivamente os sujeitos processuais, recaindo sobre cada qual sua efetiva atribuição, como acusação, defesa e julgador por todo o rito processual. Durante toda a persecução penal o juiz não pode substituir qualquer das partes, sob pena de perder sua imparcialidade.
O art. 384 do Código de Processo Penal traz expressa autorização para o aditamento da denúncia, porém não pode, nem cabe ao sujeito processual – julgador – proceder com a determinação de ofício, pois tal ato viola, entre outras garantias constitucionais, a do correto Contraditório, da Ampla Defesa e da Imparcialidade do Magistrado.
O Ministro advertiu sobre a impossibilidade de o magistrado determiná-lo sem ser provocado: “não há previsão, seja do ponto de vista legal, seja pela ótica principiológica, para que tal aditamento ou correção seja determinado de ofício pelo julgador, no momento em que identifica a inépcia da peça acusatória. Tal providência configura clara ofensa aos princípios acusatório, da inércia e da imparcialidade do julgador”.
Tais decisões demonstram um giro na observância das regras do jogo, que recolocam jus puniendi e devido processo legal em seus standards originários. Não podemos nos esquecer de que nossa legislação penal e processual penal foram implementadas durante o Estado Novo, num regime de exceção, sob a égide da denominada “Constituição polaca”, que legitimava o uso autoritário do poder punitivo.
Basta ler, na Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, elogios de Francisco Campos, Ministro da Justiça de Getúlio Vargas, às leis da Itália fascista, nas quais expressamente se inspirou.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, a “Constituição Cidadã”, todo conjunto de normas penais e processuais penais devem ser reinterpretadas, sem ignorar que, posteriormente, o Brasil aderiu à Convenção Americana de Direitos Humanos.
Neste panorama, ainda é necessário superar grandes desventuras para a efetiva sobrelevação desse sistema penal retrógrado e punitivista em nosso país. Entretanto, nas palavras de J.W. Goethe:
“A democracia não corre, mas chega segura ao objetivo”. Assim, mesmo que a passos a curtos, o Direito pátrio, sobretudo, no âmbito das Ciências Criminais, voltou a ser delineado para uma vertente mais democrática e garantista, algo que irá favorecer não apenas as instituições públicas e privadas, mas também a sociedade como um todo.Afinal, o Direito Penal é, antes de tudo, civilizatório e, por isso, quaisquer formas de desvirtuamento do processo redundará em exercício da arbitrariedade e indevido uso da força, em detrimento de um sistema lógico, justo e democrático. É preciso dar um basta na aplicação do Direito Penal como único instrumento para resolução de conflitos, devendo representar, na filosofia jurídica, nas funções da pena criminal, tanto na teoria quanto na prática, efetivamente, a última ratio."