Migalhas de Peso

Consignado dos servidores: Redução ou endividamento?

Até que ponto a busca pela justiça social seria alcançada pela defesa dos interesses do mercado em desfavor da preocupação com o superendividamento dos servidores?

21/6/2023

A advocacia em benefício de servidores públicos muitas vezes nos coloca frente a circunstâncias paradoxais. A mais recente delas diz respeito à alteração da lei 14.509, de dezembro de 2022, que foi editada ainda no governo Bolsonaro e que trouxe a previsão de aumento da margem consignável para 45% da remuneração dos servidores públicos em atividade ou aposentados.

A margem consignável é o montante que os servidores públicos poderão comprometer de sua remuneração para a tomada de empréstimos junto aos bancos e instituições financeiras. Ou seja, a referida lei permitiu que quase metade da remuneração possa vir a ser objeto de garantia para a obtenção de empréstimos, com desconto mensal da dívida em folha.

Necessário refletir que esse tipo de circunstância evidencia um problema muitas vezes oculto: o superendividamento dos servidores públicos brasileiros.

A possibilidade de os servidores poderem comprometer grande parte de sua remuneração ou aposentadoria pelos empréstimos da margem consignável pode gerar a falsa sensação de maior composição orçamentária dessas famílias, que disporiam de um crédito garantido na praça. Porém, tal artimanha foi utilizada para não se promover a negociação de reposições inflacionárias e o reajuste das remunerações dos servidores, congeladas até o último reajuste aplicado pelo Governo Lula.

Mas há uma peculiaridade importante da lei 14.509/22: dos 45% de margem consignável, o Governo Bolsonaro previu que 5% fossem designados exclusivamente para amortização de despesas contraídas por meio de cartão de crédito ou para a utilização com a finalidade de saque por meio de cartão de crédito. Ou seja, o servidor poderia utilizar 5% de sua margem consignável para quitar dívidas de cartão de crédito ou para sacar valores das operadoras de cartão.

A despeito da lei falar sobre essa modalidade de maneira mais lacônica, a utilização da margem de 5% para crédito ou saque não seria fomentada, a priori, para uso em cartões de crédito convencionais, que possuem taxas de juros altíssimas, de até 800% ao ano, tanto para inadimplemento quanto para saque. A ideia foi no sentido de criar a modalidade de cartão de crédito consignado, que contaria com benefício de isenção de anuidade e taxa de juros de cerca de 20% ao ano.

Para além do cartão de crédito consignado, a lei encaminhada pelo Congresso ao ex-presidente Bolsonaro previa também a figura do cartão de benefício consignado. Porém, ao analisar a lei, o governo Bolsonaro vetou o inciso que previa a destinação de outros 5% da margem consignável para a amortização de despesas contraídas por meio de cartão consignado de benefício ou para a utilização com a finalidade de saque por meio de cartão consignado de benefício.

Segundo informações do próprio Governo Federal, “O cartão de ‘crédito consignado de benefício’ é uma modalidade de cartão de crédito com desconto em contracheque e benefícios vinculados obrigatoriamente, como descontos em estabelecimentos específicos, seguros, etc.”. Ou seja, trata-se de uma facilidade, de um cartão de benefício destinado para a compra ou saque dentro da margem consignável. Os juros desse tipo de cartão são limitados pelo governo e se diferenciam bastante dos juros praticados pelo mercado financeiro.

Quando há o veto presidencial a um trecho de lei, como foi feito pelo Governo Bolsonaro com relação ao cartão de benefício consignado, necessário que o Congresso Nacional reaprecie a matéria.

Na análise parlamentar, o veto presidencial foi derrubado e, com isso, a legislação reincorporou a previsão do cartão de benefício consignado. Ou seja, além do cartão de crédito consignado com margem de 5%, passou a existir também o cartão de benefício consignado, com margem de 5%.

Em virtude dessa circunstância, a seguinte realidade se apresentou: no governo Bolsonaro, a margem consignável dos servidores públicos era de 45%, destinando-se 5% para a amortização de despesas contraídas por meio de cartão de crédito ou para finalidade de saque por cartão de crédito (cartão de crédito consignado). Na prática, os servidores poderiam garantir 40% de suas remunerações com empréstimos.

Já em 2023, o Congresso Nacional analisou o veto do ex-presidente Bolsonaro e o derrubou, fazendo com que 5% da margem consignável fosse destinada ao cartão de benefício consignável. Assim, a margem consignável passou a ser de 35%, destinando-se 5% para o cartão de crédito consignado e outros 5% para o cartão de benefício consignado.

Por óbvio, após a apreciação do veto, o governo Lula não poderia deixar de promulgar a reinclusão do inciso na lei, que tratou do cartão de benefício consignado. Mas aqui surgiu um potencial problema: aqueles servidores que se utilizaram da margem consignável de 40% para empréstimos ainda no governo anterior deveriam realizar a renegociação da margem consignável para os atuais 35%? Não. O governo do Presidente Lula garantiu que os empréstimos já realizados se utilizando dos 100% dos antigos 40% da margem consignável serão mantidos até o final do pagamento, enquanto os novos empréstimos deverão obedecer a lei, limitando-se a 35% da remuneração.

De todo, o que é preciso refletir é se a defesa de uma maior margem consignável para empréstimos dos servidores seria a defesa de um direito dos servidores públicos. As financeiras de empréstimo consignado são grandes propulsoras de uma alta incidência de juros no mercado brasileiro, funcionam como verdadeiras captadoras de empréstimos, além de se utilizarem muitas vezes de uma atuação incisiva e predadora para vender seus produtos de empréstimo ou vender os próprios dados dos servidores.

Até que ponto a busca pela justiça social seria alcançada pela defesa dos interesses do mercado em desfavor da preocupação com o superendividamento dos servidores? O paradoxo que em tese se apresenta é desmistificado pela compreensão de que o principal objetivo deva ser sempre a busca por salários mais dignos, que reflitam as perdas inflacionárias acumuladas ao longo dos anos, além da garantia de melhores condições de trabalho e de aposentadoria.

Leandro Madureira Silva
Advogado de Direito Público e Previdenciário e sócio do escritório Mauro Menezes & Advogados.

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