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A descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal

Para se evitar a discricionaridade judicial e o impacto discriminatório na população mais vulnerável - pobres e negros – alvo preferencial das forças de segurança pública, é imprescindível a criação de parâmetros objetivos para distinção do porte de drogas para o consumo pessoal e o tráfico.

1/6/2023

O Supremo Tribunal Federal retomará, nesta quinta-feira (1/6),  importante julgamento,  com repercussão geral, sobre uso de drogas para consumo pessoal. Está em pauta o Tema 506: “a compatibilidade, ou não, do artigo 28 da lei 11.343/06, que tipifica o porte de drogas para consumo pessoal, com os princípios constitucionais da intimidade e da vida privada”.

Em primeiro lugar, é necessário destacar que o debate que será travado na Suprema Corte diz respeito exclusivamente à descriminalização – deixar de tipificar como crime – do porte de drogas para consumo pessoal.

A discussão difere do conceito de despenalização – expressão tecnicamente questionável – já ocorrida com a Lei Federal 11.343/06, que substituiu a pena privativa de liberdade cominada ao porte de drogas para consumo pessoal por outras medidas sancionatórias mais brandas. Da mesma forma, não há que confundir a questão com a legalização, em que o fato passaria a ser permitido e regulado por legislação específica.

O presente julgamento parte de caso concreto e tem como origem o Recurso Extraordinário 635.659, interposto pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, em face de decisão condenatória de Turma Recursal, que concluiu pela constitucionalidade da incriminação do porte de drogas para consumo pessoal envolvendo uma pessoa que detinha três gramas de maconha.

Em linhas gerais, a alegação no recurso extraordinário interposto pela Defensoria Pública é de que tal posicionamento violaria direito individual à intimidade e vida privada, ambos previstos no artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal.

Diante desse cenário, no final de 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de repercussão geral do tema, a fim de avaliar a (in)compatibilidade da criminalização do porte de drogas para consumo pessoal com os dispositivos constitucionais vigentes.

Em seu parecer, a Procuradoria Geral da República se manifestou pelo desprovimento do recurso, sob o argumento de que o bem jurídico tutelado seria a saúde pública, a qual “fica exposta a perigo pelo porte da droga proibida, independentemente do uso ou da quantidade apreendida”. Logo, infere que com a propagação do vício no meio social, o uso não afetaria somente o usuário em particular, mas também a sociedade como um todo.

Em suma, os argumentos afetos à criminalização do porte de drogas para uso pessoal se baseiam em três pontos principais: (i) proteção da saúde do usuário; (ii) inibição do tráfico de drogas, na medida em que a demanda dos usuários, em tese, seria menor com a criminalização; (iii) propensão do usuário de drogas à prática de outros crimes.

Dentro desse contexto, importante considerar que os pressupostos utilizados para a criminalização encontram obstáculo na Constituição Federal.

Importantes entidades da sociedade civil foram admitidas como amicus curiae, com a finalidade de defender a descriminalização do porte para consumo pessoal. Além da violação à dignidade da pessoa humana, também argumentam que a criminalização violaria o direito à intimidade, à vida privada e o princípio da lesividade penal.

Em primeiro lugar, há que se notar que o consumo de drogas por um sujeito não afetaria terceiros, ou seja, a posse de drogas para consumo próprio não lesaria a saúde pública como um todo, apenas a si mesmo.

Partindo dessa premissa de preservação do espaço de autonomia e intimidade do indivíduo, estariam sendo protegidos os pilares da dignidade humana, a capacidade de autodeterminação e sua pluralidade, no que toca à tolerância da sociedade aos mais distintos estilos de vida, ideologias e preferências pessoais e morais.

Além disso, o argumento de incriminação do usuário com a finalidade de inibir o tráfico de drogas deve ser analisado com muitas restrições, na medida em que seria ilegítimo restringir a liberdade de um indivíduo (usuário) para combater a conduta de outras pessoas (traficante), o que pode caracterizar forma transversa de legitimar a responsabilidade objetiva.

Em outras palavras, o usuário de drogas estaria sendo responsabilizado por um comportamento doloso de outra pessoa – tráfico – a que ele não possui qualquer controle, o que gera uma situação de violação frontal ao princípio da culpabilidade.

Da mesma forma, alegar que a criminalização do porte de drogas para consumo pessoal seria necessária para a proteção da segurança pública, sob a presunção que o usuário de drogas estaria propenso a prática de outros delitos, recai na mesma situação de violação ao princípio da culpabilidade.

Mais que isso, sob enfoque constitucional, a utilização desse argumento pode ferir o princípio da igualdade, na medida em que o uso de outras substâncias que causam dependência e alteração psíquica – como o álcool – não são criminalizadas no ordenamento jurídico nacional.

Dentro do contexto argumentativo apresentado, o julgamento teve início no ano de 2015, oportunidade em que três ministros do Supremo Tribunal Federal já se posicionaram. O julgamento foi suspenso por pedido de vista.

Em seu voto, o ministro Gilmar Mendes se manifestou pelo provimento do recurso, a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas e absolvido o acusado, por atipicidade da conduta, dentre outras determinações.

O entendimento do ministro foi de que “a criminalização do porte de drogas para uso pessoal afigura-se excessivamente agressiva à privacidade e à intimidade. Está-se a desrespeitar a decisão da pessoa de colocar em risco a própria saúde”.

Por sua vez, o ministro Edson Fachin também se manifestou no sentido da declaração de inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas. Contudo, limitou o seu entendimento apenas para a maconha, objeto material em pauta no caso concreto.

Ao final, o ministro Luís Roberto Barroso também se posicionou pela declaração de inconstitucionalidade. Em seu voto, o ministro foi além: sugeriu parâmetro para diferenciar o que seria consumo próprio e o que seria tráfico – 25 (vinte e cinco) gramas de maconha ou plantação de até seis plantas fêmeas da espécie.

Há que se ressaltar o entendimento do ministro de que “por ausência de lesividade a bem jurídico alheio, por inadequação, discutível necessidade e, sobretudo, pelo custo imenso em troca de benefícios irrelevantes, a criminalização não é a forma mais razoável e proporcional de se lidar com o problema”, conforme anotações realizadas para seu voto oral.

O tema em debate é complexo e possui evidente relevância para a preservação dos preceitos constitucionais de dignidade da pessoa humana, privacidade, intimidade, lesividade e autonomia do indivíduo, que devem ser observados em um contexto sistemático.

Com relação à política de drogas, a experiência internacional de descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal, em países como Portugal, se mostrou mais adequada e eficaz. Nesse sentido, políticas públicas de saúde, tratamento e educação se mostram mais eficazes que uma posição paternalista do Estado na criminalização de condutas que não oferecem lesão a terceiros.

Contudo, o Supremo Tribunal Federal não deve se limitar à declaração da inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas.

Para se evitar a discricionaridade judicial e o impacto discriminatório na população mais vulnerável - pobres e negros – alvo preferencial das forças de segurança pública, é imprescindível a criação de parâmetros objetivos para distinção do porte de drogas para o consumo pessoal e o tráfico.

Caso contrário, sem a delimitação de critérios objetivos, o impacto prático de eventual descriminalização poderá ter efeito nefasto para a população mais vulnerável, na medida em que – para se evitar alegada impunidade em um Estado conservador e policialesco - usuários de drogas poderiam ser, indevidamente, abordados e presos pelas forças de segurança pública como traficantes, o que tornaria a situação dos presídios ainda pior.

Leonardo Magalhães Avelar
Sócio Fundador do Avelar Advogados. Membro do Observatório do Direito Penal. Pós-graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra e em Direito Penal Econômico pela FGV.

Daniela Halperin
Advogada Criminalista no Avelar Advogados.

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