Um dos principais desafios que temos vivido, em matéria de comunicação, em razão da hiper conectividade e da velocidade com a qual as informações circulam, está em filtrar o que realmente importa e, especialmente, aquilo que é verdade. A capacidade de sopesar as narrativas e encontrar um ponto de equilíbrio está escorregando entre os dedos das mãos da sociedade, que passa a ser contaminada por uma doença assintomática e de proporções até então desconhecidas.
No centro das recentes atenções está o PL 2.630/20, conhecido como o “PL das Fake News”. Seguindo o fluxo atual, essa iniciativa legislativa tem despertado posições binárias, apaixonadas e com pouco, ou nenhum, aprofundamento. Afinal, o tempo urge e o superficial prevalece!
Cumpre, porém, jogar luz na discussão, assumindo aqui o desafio de tentar moderar visões e mostrar possíveis avanços que a eventual regulamentação do assunto poderia trazer, sem prejuízo de aperfeiçoamentos e correções no texto em si, sempre possíveis e desejáveis.
Não podemos perder de vista que, tanto as redes sociais, como os serviços de mensageria privada, assim classificados na proposta legislativa, inicialmente concebiam a ideia de serviços destinados a estabelecer relações eminentemente interpessoais. As pessoas compartilhavam ideias ou se comunicavam com os seus contatos próximos (ou, seguidores), admitindo até que os conteúdos e a relação poderiam ser extrapolados para terceiros, mas tudo isso de forma restrita e natural. Agora, bem diferente, a forma e o alcance viraram serviços comerciais, remunerados e geridos por big techs e infinitos big datas. Essas plataformas transmudaram-se para ferramentas de marketing e de comunicação, a um só tempo.
O fato é que a comunicação digital virou um novo arsenal nuclear e, via de resultado, uma responsabilidade enorme exsurge. Esse binômio, do poderio e da responsabilidade, se não for bem equacionado, pode levar ao comprometimento de questões basilares para um convívio social seguro e democrático.
Os últimos fatos históricos vividos na última década como eleições, guerras, pandemia, entre outros, foram, definitivamente, movidos, no mínimo, pela força da comunicação digital.
Vamos parar e refletir. Não há liberdade de expressão e de pensamento quando estamos sob uma avalanche de informações, sem, muitas vezes, percebermos que estamos recebendo inúmeros estímulos diários para ingressar no chamado efeito manada. Não há liberdade também quando estamos numa conversa privada e há captura das informações. E o mais contraditório, não há qualquer liberdade quando postamos algo e sequer a nossa rede de contatos visualiza, porque os algoritmos prestigiam as propagandas e as mensagens impulsionadas.
Dito de outra forma, não mais comunicamos o que queremos ou recebemos o que desejamos. Os algoritmos, as plataformas e as monetizações decidem, bem ou mal, o alcance de cada postagem e, pior, de cada informação.
Portanto, com muita generosidade, no máximo temos uma pseudoliberdade. Todos estamos com falso sentimento de livre arbítrio, quando, na verdade, estamos sob uma forte influência e controle.
Tal distinção não é trivial. No campo jurídico um dos dilemas mais difíceis é justamente a separação entre o exercício de um direito e o abuso dele. Aqui, há uma semelhança, porque parece que ninguém nega a importância da liberdade de expressão, mas também precisamos evitar os excessos, a falta de controle do Estado ou mesmo a irresponsabilidade do agente privado que explora o serviço ou mesmo dos seus usuários. Essa realidade não tem aderência num Estado Democrático de Direito.
Feito esse introito, o primeiro ponto a se esclarecer sobre a iniciativa legislativa é que ela tramita no Congresso há, aproximadamente, 3 (três) anos. Aprovada pelo Senado, atualmente encontra-se sob a apreciação da Câmara dos Deputados.
Nesse quesito, não se trata de um privilégio do Brasil, porque vários países vêm avançando e disciplinando a exploração e o uso das redes sociais e serviços de mensagem. Tampouco trata-se da primeira iniciativa do Brasil na busca da adequada regulamentação do uso da internet. Tem-se o Marco Civil da Internet (MCI) e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), sem olvidar o Código de Defesa do Consumidor (CDC), titular de princípios e regras que, se levadas a efeito, já coibiriam diversas das práticas inerentes às redes sociais e dos serviços de mensageria privada. Ocorre que, os mecanismos disponíveis parecem ser insuficientes para cobrir a nova realidade, demandando a atualização da legislação.
Um segundo ponto que merece ser desmistificado é que, em mais de uma passagem, o texto proposto deixa claro que o seu objetivo não é realizar qualquer censura. Ao revés, a proposta se autodenomina “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet” (art. 1º) e tem como princípios taxativos (i) o fortalecimento do processo democrático, e (ii) a defesa da liberdade de expressão e o impedimento da censura no ambiente online (art. 4º).
A parte restritiva da proposta limita-se a vedar contas inautênticas e automatizadas, não identificadas como tal, nas redes sociais. E, no que toca aos serviços de mensageria privada, estabelece que estes editem políticas para manter a natureza interpessoal das plataformas, limitando a reprodução em série de mensagens para múltiplos usuários.
Em alguma medida, vale ressaltar, tais providências vêm sendo realizadas pelas empresas gestoras desses serviços, de modo que não deveria atrair espécie o fato de o Poder Público querer avançar na normatização.
Outra curiosidade é a proposição que prevê que os provedores devem assegurar o acesso à informação e à liberdade de expressão de seus usuários, disponibilizando mecanismos de recurso e devido processo. Ou seja, neste particular, percebe-se que o legislador, longe de querer censurar, pretende evitar que a censura seja realizada pelas gestoras dos serviços, fato bem desconhecido pelo atual senso comum.
Por fim, também chama a atenção que a proposta legislativa determina que os provedores devem assegurar que os conteúdos impulsionados e publicitários sejam identificados como tal. É dizer, mais uma garantia para os usuários, evitando induções e falta de transparência.
Finalizamos esse texto com o sentimento de que a crítica a determinados trechos do texto legal, ou mesmo a algum interesse menos nobre que recaia sobre ele, não deveria retirar a conveniência e a oportunidade de avançarmos na regulamentação de atividade tão vital e universal nos tempos de hoje. A omissão ou a letargia, definitivamente, são piores. Desconhecemos um só pai ou mãe que não se preocupe com o que os seus filhos consomem através das telinhas. Logo, o mínimo que devemos fazer é buscar aclarar a discussão, impedir usos abusivos e maléficos, e afastar os mitos das verdades.
O que faz o leito do rio seguir são os dois lados, as duas bordas, as extremidades, porém, ambas orientam no mesmo objetivo. Que as informações sejam assim, independentemente de corrente ou lado, que transmitam a verdade e, sobretudo, possam ser construtivas às pessoas e à sociedade. E assim, com sentimento construtivo, aguardamos os próximos passos legislativos do tema no Congresso Nacional.