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Da livre contratação dos trabalhadores portuários nas atividades de capatazia

Na atual conjuntura geopolítica, o transporte aquaviário de cargas assumiu um papel preponderante para o fortalecimento das economias mundiais. Nesse contexto, a modernização dos portos, em todos os seus aspectos, passou a ser encarada como assunto prioritário pelos agentes públicos e pela sociedade organizada.

7/5/2007


Da livre contratação dos trabalhadores portuários nas atividades de capatazia

Bruno Monteiro Costa*

Na atual conjuntura geopolítica, o transporte aquaviário de cargas assumiu um papel preponderante para o fortalecimento das economias mundiais. Nesse contexto, a modernização dos portos, em todos os seus aspectos, passou a ser encarada como assunto prioritário pelos agentes públicos e pela sociedade organizada.

Com efeito, a modernização dos portos não se resumiu à utilização de equipamentos mais sofisticados que propiciavam maior agilidade e efetividade no embarque e desembarque de cargas. Políticas públicas de desenvolvimento das áreas portuárias foram implementadas, incentivos fiscais concedidos e a legislação específica que regulamenta o setor foi adequada à nova situação.

Nesse contexto, o anacrônico regime jurídico que regia as relações trabalhistas entre os trabalhadores e os agentes de navegação até então existente ruiu. À época, diante da sazonalidade que caracterizava a atividade portuária, os trabalhadores não mantinham vínculo de emprego diretamente com os agentes, mas, ao revés, apenas prestavam serviços na modalidade de avulsos.

O ordenamento jurídico de então outorgava aos sindicatos dos trabalhadores o monopólio no que se refere à escalação daqueles que iriam ser alocados em cada operação. Portanto, os sindicatos profissionais detinham prerrogativa exclusiva de determinar o quantitativo e a composição das equipes de trabalhadores que iriam formar uma determinada turma.

O sincrético modelo ocasionou diversas situações insustentáveis: escalação de trabalhadores sem qualquer critério objetivo, inchaço das equipes, apadrinhamento indevido de trabalhadores, nepotismo, encarecimento da mão-de-obra, portos ineficazes e caros. Enfim, o sistema degenerou numa introversão coorporativa em que os interesses dos trabalhadores entraram em colisão com os da sociedade, que exigia mudanças capazes de tornar os nossos portos competitivos.

Diante da pressão social e representando uma ruptura quanto ao modelo anterior, foi promulgada a Lei 8.630/93 (clique aqui), conhecida como Lei de Modernização dos Portos, que: a) acabou com o monopólio dos sindicatos no que se refere à escalação dos trabalhadores; b) possibilitou que os trabalhadores pudessem ser contratados com vínculo empregatício, desde que por prazo indeterminado; c) criou a figura do Órgão Gestor de Mão-de-Obra, pessoa jurídica sem fins lucrativos formada pelos operadores portuários com objetivo explícito de administrar o fornecimento de mão-de-obra portuária; d) concedeu aos trabalhadores uma questionável reserva de mercado, ao estabelecer que apenas os que fossem registrados no Órgão Gestor poderiam desempenhar atividades consideradas como portuárias (exceto no que tange às atividades de capatazia, consoante demonstrar-se-á a seguir).

Dentre os diversos dispositivos legais constantes da nova lei, destaca-se o artigo 26 que possibilitou expressamente a contratação de trabalhadores portuários com vínculo empregatício, desde que respeitada a reserva concedida àqueles registrados, in litteris:

Art. 26. O trabalho portuário de capatazia, estiva, conferência de carga, bloco e vigilância de embarcações, nos portos organizados, será realizado por trabalhadores portuários com vínculo empregatício a prazo indeterminado e por trabalhadores portuários avulsos.

Parágrafo único. A contratação de trabalhadores portuários de estiva, conferência de carga, conserto de carga e vigilância de embarcações com vínculo empregatício a prazo indeterminado será feita, exclusivamente, dentre os trabalhadores avulsos registrados.

Parece imperativo que o legislador diferenciou duas espécies distintas de trabalhadores portuários, quais sejam: os avulsos e os contratados diretamente pelo operador portuário, tendo vínculo empregatício por prazo indeterminado. Assim, diante da interpretação teleológica da Lei de Modernização dos Portos, emerge que o operador poderá conduzir sua atividade econômica de três formas distintas: a) utilizando apenas trabalhadores avulsos em regime rodiziário; b) requisitando parte dos trabalhadores avulsos ao OGMO e utilizando mão-de-obra contratada para às demais atividades; c) utilizando, exclusivamente, os trabalhadores contratados com vínculo empregatício dentre os registrados no Órgão Gestor.

A inovação trazida pela lei, como não poderia deixar de ser, suscitou diversas e calorosas discussões jurídicas. Dentre essas, nesta oportunidade, destaca-se a celeuma criada em torno da possibilidade de contratação de trabalhadores não registrados no OGMO para as atividades de capatazia (atividade de movimentação de mercadorias nas instalações de uso público, compreendendo o recebimento, conferência, transporte interno, abertura de volumes para conferência aduaneira, manipulação, arrumação, e entrega, bem como o carregamento e descarga de embarcações, quando efetuados por aparelhamento portuário; -definição constante do inciso I, do § 3º, do artigo 57, da Lei 8.630/93).

A polêmica, que se arrastou durante anos, poderá ser enfrentada pelo Tribunal Superior do Trabalho em face do Dissídio Coletivo de natureza jurídica instaurado pela Federação Nacional dos Operadores Portuários (FENOP) em detrimento de algumas federações nacionais de trabalhadores portuários (processo 17461-2006-000-00-00-5). A entidade econômica pretende obter um pronunciamento específico acerca da possibilidade de livre contratação de trabalhadores não registrados no OGMO para as atividades de capatazia, perdurando a reserva de mercado para as demais atividades taxativamente descritas pelo § 3º, do artigo 57, da Lei de Modernização dos Portos. Por sua vez, as diveras federações de trabalhadores portuários defendem que a reserva de mercado também seria alargada às atividades de capatazia.

Posta a questão, entendemos que, de fato, o legislador não contemplou os trabalhadores da capatazia com a reserva de mercado outorgada aos demais trabalhadores portuários.

O já citado parágrafo único, do artigo 26, da Lei 8.630/93 foi claro ao restringir a contratação com vínculo empregatício aos trabalhadores registrados no OGMO apenas para as atividades de estiva, conferência de carga, conserto de carga e vigilância de embarcações. A capatazia, de forma proposital, não foi contemplada pelo legislador.

A simples análise literal do artigo 26 já seria suficiente para embasar a conclusão ora defendida, porquanto, de acordo com a melhor hermenêutica, não há palavras desnecessárias nem excesso na lei.

No entanto, a redação do dispositivo legal respeitou as diferenciações históricas existentes entre a atividade de capatazia e as demais. Fazendo-se uma digressão histórica, percebe-se que o regime jurídico ao qual submetiam-se os trabalhadores que laboravam a bordo (estivadores, trabalhadores de bloco, conferentes etc) era diferente daquele que regia os que prestavam serviços em terra (capatazia).

Enquanto os estivadores e os trabalhadores de bloco (que trabalhavam a bordo) eram requisitados pelos agentes aos sindicatos de suas categorias, prestando serviço na qualidade de trabalhadores avulsos, os da capatazia eram empregados da extinta estatal Companhia Docas.

Tal diferenciação fática também motivou o legislador a permitir a livre contratação de trabalhadores não registrados no OGMO para o desempenho das atividades de capatazia.

Por fim, não há como se defender interpretações extensivas em favor de uma anacrônica reserva de mercado que privilegia uma minoria de trabalhadores em detrimento de toda coletividade e em afronta direta aos princípios da liberdade do trabalho (Art. 5º, XIII) e da livre concorrência (Art. 170) ambos da Carta Política de 1988.

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* Advogado do escritório Martorelli e Gouveia Advogados









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