A atuação dos órgãos de controle sobre a aplicação de verbas públicas federais destinadas aos demais entes federados voltou a ser tema de debate jurisprudencial no Supremo Tribunal Federal.
Com efeito, é recente o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.791, que teve por objeto o artigo 11 da Lei 9.424/1996 e artigos 25, caput, e 26, III, da Lei 11.494/2007 e versava sobre os limites de atuação dos Tribunais de Contas em relação à fiscalização das verbas distribuídas pelos fundos constitucionais de educação pública (FUNDEF e FUNDEB).
O fundamento para buscar a declaração de inconstitucionalidade dos aludidos dispositivos residia na constatação de que os recursos transferidos pela União por intermédio dos fundos constitucionais de educação pública (FUNDEF e FUNDEB), inclusive aqueles repassados a título de ‘complementação’ para que ‘o valor por aluno’ alcance o ‘mínimo definido nacionalmente’, seriam recebidos pelos Estados, Distrito Federal e Municípios por força de imposição constitucional, como rendas que lhes são próprias, sendo irrecusáveis, razão pela qual lhes são distribuídas independentemente de aceitação expressa ou tácita.
Sendo assim, imputavam a existência de ofensa à autonomia federativa por afastar a competência dos demais órgãos de controle das outras esferas da federação.
Por sua vez, como fundamento para a rejeição da declaração de inconstitucionalidade, argumentou-se que, em havendo recursos públicos federais envolvidos, e apesar de transferidos obrigatoriamente pela União, a fiscalização desses recursos cabe ao Tribunal de Contas da União, não em razão do inciso VI do art. 71 da Constituição Federal, mas com fundamento no parágrafo único do art. 70, e no inciso II do art. 71 da Constituição Federal.
Ademais, inexistiria ofensa à autonomia federativa a atuação fiscalizatória do TCU, uma vez que, as leis de regência permitem um modelo de controle típico do federalismo cooperativo, em que se evitam atuações sobrepostas ou eventuais riscos de apenações que possam vir a constituir bis in idem.
No dia 5/9/22, a ação foi julgada improcedente, entendendo o STF, por unanimidade, ser “competência do TCU fiscalizar a aplicação de verbas originárias da União por parte dos demais entes da Federação”.
Sobre o tema, também vale ressaltar que o Pleno do STF, na Sessão Virtual de 11 a 18/3/22, concluiu o julgamento da ADPF 528/DF de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes. No referido julgamento, já transitado em julgado, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a competência do TCU para fiscalizar a aplicação de verbas originárias da União, referente ao montante destinado a complementar o valor mínimo por aluno definido nacionalmente, por parte dos demais entes da Federação.
Na mesma ocasião, o Tribunal afastou a subvinculação estabelecida no art. 22 da lei 11.494/07 aos valores de complementação do Fundef/Fundeb pagos pela União aos Estados e aos Municípios por força de condenação judicial, e “vedou o pagamento de honorários advocatícios contratuais com recursos alocados no FUNDEF/FUNDEB, ressalvado o pagamento de honorários advocatícios contratuais valendo-se da verba correspondente aos juros de mora incidentes sobre o valor do precatório devido pela União em ações propostas em favor dos Estados e dos Municípios”.
Sendo assim, é importante apontar as premissas que fundamentaram o julgamento da ADIn 5.791 e da ADPF 528/DF, especialmente quanto à classificação do controle realizado e suas implicações aos ordenadores de despesa dos demais entes federativos.
O Fundef era, nos termos do revogado art. 1° e parágrafos da Lei 9.424/96, um fundo contábil, cujos recursos são provenientes do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS, do Fundo de Participação dos Estados - FPE, do Fundo de Participação dos Municípios – FPM, do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI e de recursos transferidos, em moeda, pela União aos Estados, Distrito Federal e Municípios, a título de compensação financeira pela perda de receitas decorrentes da desoneração das exportações, nos termos da Lei Complementar 87/96 e de outras que vierem a ser instituídas.
Atualmente, com o advento da Lei 14.113/2020, que instituiu e regulamentou o Fundeb, de natureza contábil, nos termos do art. 212-A da Constituição Federal, observa-se que o referido fundo é constituído de 20% das receitas provenientes de impostos dos Estados e do Distrito Federal (ITCD, ICMS e IPVA), do produto da arrecadação do imposto extraordinário que a União instituir (art. 154, I), do produto de arrecadação pertencentes aos Municípios (50% do ITR sobre imóveis em seus territórios; 50% do IPVA sobre veículos licenciados em seus territórios; e 25% do ICMS), do produto de arrecadação do IR e do IPI (49%).
A União, como já visto, ainda complementará os recursos do fundo em percentual equivalente a, no mínimo, 23% do total dos recursos, conforme disposição constante do art. 212-A, IV e V, da CF.
Como se vê, os valores repassados a título de complementação, decorrentes da incumbência supratranscrita, são fruto de receitas da União. Cabe ressaltar que a União não é mero arrecadador e repassador de recursos. Com efeito, dentro dos quadros do federalismo brasileiro, compete concorrentemente à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar sobre a “educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação” (art. 24, IX; grifei), limitando-se a primeira a editar normas gerais sobre o tema (art. 24, XII, § 1°). Além disso, constitui competência comum a todos eles e também aos Municípios “proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação” (art. 23, V; grifei).
Em que pese a titularidade da União sob as verbas repassadas, nenhum dos entes federativos, sejam eles Estados e Municípios, quando houver complementação de recursos federais, pode ser alijado do processo de fiscalização e acompanhamento da aplicação dos recursos dos fundos constitucionais de educação pública. Reforçando tal premissa, cabe ressaltar que o revogado art. 5° da Lei 9.424/1996 previa que “os registros contábeis e os demonstrativos gerenciais, mensais e atualizados, relativos aos recursos repassados, ou recebidos, à conta do Fundo a que se refere o art. 1º, ficarão, permanentemente, à disposição dos conselhos responsáveis pelo acompanhamento e fiscalização, no âmbito do Estado, do Distrito Federal ou do Município, e dos órgãos federais, estaduais e municipais de controle interno e externo”.
Nesse sentido, cabe apontar que o controle sob tais verbas observará as determinações constitucionais de submissão ao controle interno e externo.
No que tange ao controle interno federal das verbas repassadas pela União a título de complementação, cabe apontar a titularidade é da Controladoria Geral da União (CGU), órgão com natureza e status ministerial que centraliza o controle interno da Administração Pública Federal no Brasil, tendo sua competência definida no art. 51 da lei federal 13.844/2019. Sobre o tema, cabe ressaltar que “a CGU pode fiscalizar a aplicação de verbas federais onde quer que elas estejam sendo aplicadas, mesmo que em outro ente federado às quais foram destinadas. Ressalte-se que, nesses casos, a fiscalização exercida pela CGU é interna, pois feita exclusivamente sobre verbas provenientes do orçamento do Executivo”. [RMS 25.943, rel. min. Ricardo Lewandowski, j. 24-11-2010, P, DJE de 2-3-2011.]
Por sua vez, independente de o recurso repassado estar a disposição de ente federativo distinto da União, a jurisprudência pátria já sedimentou a competência do TCU para o controle externo, uma vez que não é a natureza do ente envolvido na relação que permite, ou não, a incidência da fiscalização da Corte de Contas, mas sim a origem dos recursos envolvidos, conforme dispõe o art. 71, II, da Constituição Federal.” [MS 24.379/DF]
Com efeito, o fundamento legal para tal premissa reside na Lei 8.443/1992, que prevê ainda que o TCU, o qual “tem jurisdição própria e privativa, em todo o território nacional, sobre as pessoas e matérias sujeitas à sua competência” (art. 4°), pode analisar as contas de “qualquer pessoa física, órgão ou entidade a que se refere o inciso I do art. 1° desta Lei, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária” (art. 5°, I).
Dessa maneira, vale ressaltar que a origem dos recursos é determinante para o adequado estabelecimento da competência fiscalizatória, de maneira que, caso se faça necessária a complementação da União, o TCU atuará, sem prejuízo da atuação do respectivo Tribunal de Contas estadual, já que o fundo é composto por recursos estaduais e municipais.
Diversas são as implicações que essas premissas podem gerar aos ordenadores de despesas dos demais entes federativos beneficiados com o repasse de verbas dos fundos constitucionais de educação pública. Listamos alguns julgados que sobrelevam a relevância do tema, especialmente voltados aos gestores municipais que podem ser responsabilizados pelos órgãos de controle federais, confiram alguns exemplos que serão esmiuçados futuramente em outros artigos:
a) O secretário municipal de educação, por ser o gestor do sistema de educação da unidade da federação, pode ser responsabilizado pelo TCU por irregularidades ocorridas no cadastramento de dados do censo escolar que levem à majoração indevida de repasses de recursos do FNDE, uma vez que é obrigado a zelar pela veracidade das informações prestadas pelas escolas (art. 2º, § 1º, do Decreto 6.425/2008; art. 4º, inciso II, alínea d, da Portaria MEC 316/2007 e art. 2º da Portaria Inep 235/2011) .
b) Em caso de débito ou omissão na prestação de contas relacionado com o Programa Dinheiro Direto na Escola - PDDE, o prefeito é responsável por seu ressarcimento, mesmo quando os recursos são transferidos diretamente às escolas. (TCU. ACÓRDÃO 8198/2019-Segunda Câmara. DATA DA SESSÃO 10/09/2019)
c) Configura desvio de finalidade a utilização de recursos do Fundeb para pagamento de salários a servidores da área educacional cedidos para outros órgãos da Administração, uma vez que tais recursos devem ser usados apenas em ações de manutenção e desenvolvimento do ensino para a educação básica pública (arts. 21 e 23 da Lei 11.494/2007), cabendo ao ente federado beneficiário da aplicação irregular efetuar o ressarcimento do débito correspondente. (TCU - RELATÓRIO DE LEVANTAMENTO (RL): 03399520176, Relator: WALTON ALENCAR RODRIGUES, Data de Julgamento: 19/02/2020, Plenário)