A falta de regulação quanto ao estelionato da informação, implica atribuir esta função ao Poder Judiciário com a ponderação de valores protegidos pela ordem constitucional.
1 Da criação da internet à ascenção das redes socias
Se o protótipo da internet remonta ao período da Guerra Fria (1946-1991) como uma forma de proteção das comunicações militares dos Estados Unidos da América às espionagens promovidas pela outra superpotência desta época, a União Soviética – URSS, é a partir de 1994 que a estrutura de redes baseada em backbones (espinha dorsal desta rede) populariza-se. Com isso, permitiu-se a qualquer pessoa conectada a um computador ligar-se à rede mundial de computadores. Paulatinamente, a internet provocou transformações variadas na vida em sociedade. Quanto ao modo de comunicar e de comunicar-se, não é demasiado falar que se operou uma verdadeira revolução em comparação ao standard anterior.
Ocorre que esta transformação quanto ao modo de se comunicar, também vem acompanhado de outros fenômenos que, não raro, causam consequências danosas à sociedade. Entre estas, a que causa maiores debates é a disseminação e o rápido alastramento de informações falsas ou não fidedignas com a verdade, informações não oficiais e, até mesmo, oficiais não fidedignas. Além destas, discursos de ódio, muitas vezes restritos a grupos específicos, ganharam corpo e vigor, alastrando-se com força capaz de alcançar espaços majoritários na sociedade.
2 Da livre reprodução de opiniões em redes e as fake news
O cenário em que cada um pode ser uma fonte de informações, tornou-se nebuloso à medida em que a superabundância de informações na rede levou o usuário da internet a selecionar os seus conteúdos de preferência, procurando comunidades de pensamentos semelhantes. Neste contexto, tais agrupamentos afastam-se de uma esfera pública em que possam ser confrontadas com visões contrárias as suas. Timotthy Garton Ash, no livro, Free Speech – Ten Principles for a Connected World, alerta aos perigos decorrentes das pessoas voltarem-se às suas pequenas câmaras de eco, tal qual aqueles representados pelos monopólios políticos e comerciais da mídia tradicional.
À medida que tais grupos – antes mais circunscritos a um determinado território – conseguem ganhar corpo pela facilidade da comunicação, também conseguem reproduzir sem maiores embaraços as suas opiniões pré-estabelecidas, muitas vezes eivadas de preconceitos. E diferentemente do contexto tecnológico anterior, o ambiente virtual, cosmópolis, na definição de Ash, torna-se perfeito para maximizar pensamentos, discursos (de ódio ou não), bem como é campo fértil para disseminar a informação não verdadeira e qualificada com ânimo subjetivo de maliciosidade.
Vale destacar que fake news não é apenas a informação falsa. Ela é mais ampla que este conceito, pois é adicionada a informação inverídica um artifício ou ardil fraudulento com o objetivo de ludibriar o receptor e influenciar o seu comportamento para alcançar uma vantagem específica e indevida. O Ministro do Supremo Tribunal Federal, José Antônio Dias Toffoli, prefere o termo notícia fraudulenta para tratar do termo em questão. Assim, as fake news ou notícias fraudulentas têm por objetivo a conquista de contextos comerciais, sociais, político-eleitorais, afetando áreas muito sensíveis à vida em sociedade.
O problema gerado é que, na realidade atual, ainda não se tem maturidade social para que o usuário da internet não confie cegamente em tudo o que é postado, encaminhado, compartilhado nas redes sociais. Não é regra entre o cidadão comum adotar cautela e prudência na informação que lhe chega enviada pela bolha ou câmara de eco em que se insere. Melhor definindo, não é costume fazer a checagem da informação recebida, sendo mais fácil a aceitação incondicional e a reprodução do conteúdo.
Diante disso, e dos inúmeros danos já produzidos à sociedade, exsurge com força tentativas de contenção do fenômeno ocasionado pelas informações fraudulentas, já que simplesmente proibir juridicamente não é suficiente para evitar a continuidade do fato social em discussão. E nesta tentativa de contenção da informação, entre classificar o que é verdadeiro, simplesmente falso e o qualificado como fraudulento, insere-se o cuidado em não ferir a proteção constitucional à livre manifestação do pensamento e liberdades correlatas (art. 5º, incisos IV e IX, CRFB/1988).
3 Liberdade de expressão e regulação da informação
O problema aqui em discussão, como se abordou em tópico anterior, entrelaça-se com a proteção constitucional à livre manifestação de pensamento, eis que na defesa das informações falsas ou de outros conteúdos aptos à desinformação, a máxima é instantaneamente invocada.
Diante do estremecimento de discursos relacionados aos mais amplos fatos sociais (político-eleitoral, saúde pública, questões sociais, raciais, de gênero, entre outras), as redes sociais merecem trafegar com alguma regulação dos conteúdos publicados pelos usuários das plataformas. Isso por que fake news, intencionalmente produzidas com base em um conteúdo não verdadeiro para rápida propagação em redes, acabam por influir em atos, atitudes e até mesmo nas decisões populares.
Se há consenso quanto à necessidade de encontrar alguma forma de restringir as informações odiosas ou fraudulentas, a celeuma recai quanto ao modelo de regular a informação sem ferir o princípio fundamental em questão.
A filtragem prévia ou moderação de conteúdos pelas próprias redes sociais gera discussões sobre a censura privada e o papel de influência das grandes plataformas de redes sociais poderem moldar a opinião pública àquela de seus detentores. Discute-se que a concentração da regulação nas próprias plataformas, organismos privados que são, pode ferir direitos fundamentais diante da facilidade de abusos pelas detentoras do mercado. Já são relatados graves problemas de transparência no procedimento de moderação pelas próprias redes, de modo que, ampliar as possibilidades delas próprias moderarem, pode ser temerário. Nada obstante, este é o modelo adotado nos Estados Unidos e em grande parte dos países europeus, com regulação mínima dos governos. Cada empresa tem seu próprio código de normas, o qual reflete seus valores.
No âmbito brasileiro, o Marco Civil da Internet, estatuído pela Lei Federal n. 12.965/2014, definiu regras para o uso da internet em território nacional, com a previsão de deveres e responsabilidades das plataformas digitais. Ainda, há tese de repercussão geral admitida pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal em 28/08/2015, RE 662055 no Tema 8371. Até o momento, está pendente de julgamento definitivo pela Corte, sem notícias quanto à sua inclusão em pauta.
Embora transcorridos praticamente 8 (oito) anos desde a admissão da tese, permanece atual, mesmo com o recrudescimento do cenário e o avanço das plataformas de tecnologia da informação em todo este período. Uma eventual definição da tese de repercussão geral poderia servir de paradigma sobre as delimitações do que pode ou não ser removido.
O Poder Executivo Federal editou em 06/09/2021 a Medida Provisória n. 1.068 com significativas alterações no Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14). Este ato normativo, previa um rol de justas causas aptas a permitir a exclusão, suspensão ou bloqueio da postagem do usuário pelas organizações privadas, sem, contudo, mencionar informações maliciosamente falsas, ou mesmo, os discursos de ódio. Restou devolvido pelo Congresso Nacional, diante de inconstitucionalidade formal em sua apresentação por meio de MP e foi reeditado integralmente no Projeto de Lei 3.227/21. Diante da mudança de governo, foi protocolizado em 10/04/2023 pedido de retirada, conforme teor da Mensagem nº 134.
O ano de 2023 está marcado pelas repercussões dos atos do dia 8 de janeiro, em Brasília, por tragédias em escolas brasileiras, entre outros fatos cotidianos, reverberados nas redes sociais com incontáveis conteúdos maliciosos, falsos e alarmistas. Com isto, surgiu o espaço político necessário para ser acolhido o pedido de urgência de votação na Câmara dos Deputados do Projeto de Lei 2.630/2020, conhecido como Lei das Fake News, já aprovado no Senado Federal, que trata do mesmo tema e visa a instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet.
Referido projeto, todavia, recebe críticas dos matizes ideológicos que formam a nova composição da Câmara de Deputados, a indicar uma incerteza quanto à sua aprovação2. Em termos práticos, até uma nova deliberação legislativa restará aos órgãos que compõem o sistema de justiça primar pela estabilidade diante da contínua circulação de conteúdos que refletem um estelionato da informação.
6 Conclusão
A celeuma e o vácuo legislativo sobre tema tão afeto a nossa realidade, implicam ao Poder Judiciário, dotado de imparcialidade e técnicas jurídicas, não a exclusividade do poder decisório para a remoção de conteúdos falsos ou que disseminem discursos de ódio, mas a tutela da liberdade de expressão. Não há ofensa a liberdades fundamentais quando a decisão judicial, na análise de fatos levados ao seu conhecimento, por argumentos substantivos, determina a restrição de determinados conteúdos quando se verifica que extrapolou outros valores igualmente protegidos pela ordem constitucional.
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1 A tese de repercussão geral visa dirimir a seguinte controvérsia: “Definição dos limites da liberdade de expressão em contraposição a outros direitos de igual hierarquia jurídica - como os da inviolabilidade da honra e da imagem - e estabelecimento de parâmetros para identificar hipóteses em que a publicação deve ser proibida e/ou o declarante condenado ao pagamento de danos morais, ou ainda a outras consequências jurídicas”.
2 AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. Lira adia votação do Projeto das Fake News. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/957823-lira-adia-votacao-do-projeto-das-fake-news-acompanhe. Acesso em 03 mai 2023.
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