O modelo de organização do Estado brasileiro adotado pela Constituição Federal de 1988 concedeu autonomia aos entes federais, aperfeiçoando o chamado federalismo cooperativo1 2, e reforçando a repartição de competências entre a União, Estados, Municípios e o Distrito Federal, prevista nos artigos 22, 23 e 24.
Com relação aos agentes públicos, essa forma de Estado viabilizou que cada ente elabore as normas relativas ao regime jurídico dos servidores públicos, outorgando a competência para Administração Pública impor modelos de comportamento a seus agentes e na hipótese de infrações aos deveres e obrigações previstas, instaurarem processo administrativo disciplinar, podendo resultar em sanção administrativa.
A competência delegada à Administração Pública permite que cada órgão administrativo, de qualquer um dos poderes republicanos, estabeleça as regras de seus processos administrativos disciplinares, desde as normas de comportamento a serem seguidas por seus agentes, até as sanções aplicáveis por prática de condutas irregulares, inclusive admite que sejam criados ritos processuais e procedimentos diferentes em cada órgão disciplinar.
Ao mesmo tempo que a autonomia conferida à Administração Pública representa avanço no federalismo cooperativo adotado pela Constituição Federal de 1988, dificulta a análise judicial das irregularidades processuais cometidas pelas instituições no decorrer dos processos administrativos disciplinares. Isso porque, em razão da discricionaridade da administração pública, que concretiza o regime republicano, o controle judicial no processo administrativo disciplinar somente é cabível para examinar a regularidade do procedimento e a legalidade do ato, à luz dos princípios que regem a administração pública, não podendo ser realizada nenhuma incursão no mérito administrativo, conforme jurisprudência consolidada (STJ, MS 20.348/DF).
Nesse contexto, a ampla autonomia permite que a mesma conduta praticada por servidores públicos ocupantes da mesma carreira, porém vinculados a ente federal distinto, possa ser enquadrada em tipos legais diferentes e, consequentemente, ocasione sanções administrativas diversas.
Temos como exemplo a possibilidade do servidor púbico do Estado de São Paulo ser penalizado com demissão na hipótese de “procedimento irregular de natureza grave” (artigo 256, inciso II, da Lei Estadual 10.261/68), tipo legal este que não está previsto aos agentes públicos da União (Lei Federal 8.112/90). Cabe ressaltar que no caso do Estado de São Paulo, sequer há tipificado qual conduta praticada pelo agente público caracterizaria “procedimento irregular de natureza grave”. Seria referente a adoção de procedimentos formais contrários aos legalmente estipulados, ou estaria relacionado a comportamentos irregulares?
Em uma situação hipotética em que um servidor público federal recuse fé a documento público, poderá ser apenado com advertência, nos termos do artigo 129, da Lei Federal 8.112/90, ao passo que, o servidor público do Estado de São Paulo que tenha praticado a mesma conduta, poderá ser apenado com demissão, haja vista que não há no texto normativo estadual (Lei Estadual 10.261/68) a previsão de sanção por tal conduta, de forma que poderá ser enquadrada como “procedimento irregular de natureza grave”, ensejando pena mais severa ao agente público.
Esse cenário dificulta que o Poder Judiciário exerça o controle judicial sobre os processos administrativos disciplinares, uma vez que, na hipótese trazida, para análise da legalidade do ato à luz do princípio da proporcionalidade, é necessário apurar os atos praticados pelo agente público, o que atentaria a discricionaridade da administração pública conferida pelo regime republicano.
Como forma de viabilizar o controle judicial nos processos administrativos disciplinares, sem que haja violação à separação dos poderes, tampouco restrição ao federalismo cooperativo, caberia atribuir o mesmo entendimento jurídico conferido pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de inconstitucionalidade 6019, de Relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, que invalidou o dispositivo da Lei do Estado de São Paulo n° 10.177/98, que regula o processo administrativo no âmbito da administração pública paulista, pois estabelecia o prazo de dez anos para anulação de atos administrativos declarados inválidos pela administração pública estadual, contrariando a Lei Federal 9.784/99, que prevê o prazo de cinco anos para referida anulação, sendo certo que a lei paulista deve observar os parâmetros mínimos previstos na esfera federal para exercício de sua competência legislativa.
Ou seja, a existência de lei federal que regulamenta o processo administrativo disciplinar deve ser entendida como norma geral que traça os parâmetros mínimos a serem seguidos pelos demais entes federais ao exercerem seu direito regulamentar, fato este que não atenta o federalismo cooperativo, ou a repartição de competências, conforme bem refere Gilberto Bervocini3, de modo que o parágrafo único do artigo 23 da Constituição Federal prevê a edição de lei complementar fixando normas para a cooperação entre os entes da Federação, de igual forma o artigo 24, § 1º, da Constituição Federal prevê a competência da União em estabelecer as normais gerais quando no âmbito da legislação concorrente.
Portanto, ainda que a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal possam legislar acerca do regime jurídico dos agentes públicos e, consequentemente, a respeito do processo administrativo disciplinar, tal autonomia não pode ser irrestrita, cabendo observar os limites e diretrizes fixados pela União sobre a matéria, sobretudo para unificar as condutas consideradas atípicas e as penas a serem aplicadas, viabilizando, inclusive, que o Poder Judiciário exerça o controle judicial sem interferir na discricionaridade da administração pública.
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1 SARLET, Ingo Wolfgang, MARINONI, Luiz Guilherme, MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 9ª ed. São Paulo, Saraiva, 2020, p. 934.
2 “O modelo federativo constitucionalmente adotado não autoriza a hierarquização das vontades dos entes políticos, nem permite transposição unilateral das atribuições constitucionais de um ente federado a outro, porquanto a autonomia insculpida no art. 18 da Constituição Federal é corolário da ideia de forma federativa de Estado; sem ela, existirá mera descentralização administrativa, sem a correspondente multiplicação de centros de poder que perfaz uma real federação.” (ADI nº 3.499/ES, Rel. Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 30/08/2019)
3 BERVOCINI, Gilberto. Dilemas do estado federal brasileiro, p. 56.