Migalhas de Peso

Da reclamação constitucional como meio garantidor do cumprimento das ADPFs 706 e 713

Extrai-se que a segurança jurídica prometida a partir do Estado Democrático de Direito é construída, dia após dia, por meio de esforço, de enfrentamento e de dedicação.

27/4/2023

A pandemia de Covid-19 trouxe consigo uma avalanche de ações judiciais de discentes visando a diminuição das mensalidades escolares (tanto no ensino superior, quando no ensino básico/fundamental) em razão da mudança na forma de ensino que, de presencial, passou a ser remoto, mesmo que por circunstância especial e de forma excepcional, conforme imposição dos órgãos competentes.

Não por outro motivo, ou melhor, a bem de evitar decisões conflitantes sobre tema de ordem constitucional proferidas pelos mais diversos órgãos da jurisdição nacional, o Plenário do STF, no julgamento das ADPFs 706 e 713, fixou entendimento no sentido de que são inconstitucionais as sentenças que, unicamente fundamentadas na eclosão da pandemia e na transposição de aulas presenciais para ambientes virtuais, determinem às instituições de ensino superior a concessão de descontos nos contratos educacionais, desconsiderando as peculiaridades dos efeitos da crise para ambas as partes.

Em resumo, o Supremo Tribunal Federal garantiu a liberdade econômica, e impossibilidade de precificação e descontos compulsórios por parte do Poder Judiciário que, sem qualquer critério objetivo, lançava sobre a pandemia de Covid-19 o fundamento exclusivo para acreditar que as Instituições de Ensino estariam se locupletando pela alteração, ainda que excepcional e transitória, do ensino presencial para o remoto.

Inobstante a tanto, ignorando o entendimento do STF, a 27ª Câmara de Direito Privado do e. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (processo 1011498-65.2020.8.26.0361) entendeu por dar provimento ao apelo do aluno, determinando a aplicação de descontos lineares de 30% nas mensalidades do curso superior à que estava matriculado, exclusivamente em decorrência da pandemia da Covid-19. Como que se a pandemia e as mazelas econômicas que trouxe fossem uma exclusividade do aluno, e que a Instituição de Ensino não tivesse sofrido qualquer prejuízo diante do quadro de degradação econômica provocado pelo vírus da Covid-19 em todo o mundo.

Com efeito, diante do acórdão proferido pela 27ª Câmara de Direito Privado do e. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a Instituição de Ensino, representada pela Covac Sociedade de Advogados, entendeu por bem que o caso se moldava a perfeição a lógica proposta pelo instrumento da Reclamação, pois que o acórdão afrontava de forma grosseira as ADPFs 706 e 713.

Como bem se sabe, a Constituição Federal, em seu art. 102, inciso I, alínea “L”, prevê a Reclamação como meio de preservação da competência e autoridade das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em controle concentrado de constitucionalidade. De igual modo, o art. 988 do Código de Processo Civil e o art. 156 do Regimento Interno do STF, e, na mesma linha, o art. 13, da lei 9.882/99 que, por sua vez, trata do cabimento da Reclamação contra a desobediência à decisão proferida em sede de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF).

Tratou-se, portanto, de um exemplo clássico, em que a jurisdição do Estado, oferecida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP) no caso, estaria desafiando diretamente o que o Supremo Tribunal Federal (STF) havia decidido.

Ou seja, em que pese o STF haver fixado o entendimento de que não se pode impor descontos lineares nas mensalidades escolares sob fundamento exclusivo e abstrato na pandemia de Covid-19, porquanto a pandemia haveria atingido também as Instituições de Ensino no aspecto econômico, o TJSP, de forma contrária, proferiu acordão em sentido diametralmente oposto, exatamente no sentido de determinar descontos lineares – na ordem de 30% – em favor dos estudantes, marginalizando a exigência de critérios de verificação das circunstâncias particulares, tanto da Instituição de Ensino quanto do aluno.

O TJ/SP, no caso, ignorou as orientações apontadas nas ADPFs 706 e 713, partindo da premissa de que a crise econômica advinda com a Covid-19 teve o condão de afetar apenas aos alunos, de forma abstrata. Assim, o julgado do TJSP, fazendo as vezes de legislador para pretender estabelecer norma de caráter abstrato, proferiu decisão eivada de inconstitucionalidade, conferindo descontos lineares ao estudante apelante, contrariando o STF e, de outro lado, escancarando as possibilidades de uso do instrumento da Reclamação.

Proposta a Reclamação (58.786), demonstrada a patente a violação do quanto estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal, em decisão de relatoria da Ministra Cármen Lúcia, a maior instância do Poder Judiciário resolveu cassar o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), determinando, de pronto, que outro seja proferido como de direito, observando-se os limites do que definido nas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental 706 e 713.

Como lição, extrai-se que a segurança jurídica prometida a partir do Estado Democrático de Direito é construída, dia após dia, por meio de esforço, de enfrentamento e de dedicação. Espera-se – representando o “realista esperançoso” projetado por Suassuna – que, com precedentes como esse, seja possível a consecução de maior coerência e congruência nos julgados nacionais, a fim de fortalecer os direitos fundamentais como reais instrumentos de proteção dos indivíduos – sejam pessoas físicas ou jurídicas – frente à atuação do Estado.

Thaynná de Oliveira Passos Correia
Advogada da Covac Sociedade de Advogados.

Letícia Santana de Andrade
Advogada da Covac Sociedade de Advogados.

João Paulo de C. Echeverria
Sócio da Covac Sociedade de Advogados.

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