A pandemia de Covid-19 trouxe consigo uma avalanche de ações judiciais de discentes visando a diminuição das mensalidades escolares (tanto no ensino superior, quando no ensino básico/fundamental) em razão da mudança na forma de ensino que, de presencial, passou a ser remoto, mesmo que por circunstância especial e de forma excepcional, conforme imposição dos órgãos competentes.
Não por outro motivo, ou melhor, a bem de evitar decisões conflitantes sobre tema de ordem constitucional proferidas pelos mais diversos órgãos da jurisdição nacional, o Plenário do STF, no julgamento das ADPFs 706 e 713, fixou entendimento no sentido de que são inconstitucionais as sentenças que, unicamente fundamentadas na eclosão da pandemia e na transposição de aulas presenciais para ambientes virtuais, determinem às instituições de ensino superior a concessão de descontos nos contratos educacionais, desconsiderando as peculiaridades dos efeitos da crise para ambas as partes.
Em resumo, o Supremo Tribunal Federal garantiu a liberdade econômica, e impossibilidade de precificação e descontos compulsórios por parte do Poder Judiciário que, sem qualquer critério objetivo, lançava sobre a pandemia de Covid-19 o fundamento exclusivo para acreditar que as Instituições de Ensino estariam se locupletando pela alteração, ainda que excepcional e transitória, do ensino presencial para o remoto.
Inobstante a tanto, ignorando o entendimento do STF, a 27ª Câmara de Direito Privado do e. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (processo 1011498-65.2020.8.26.0361) entendeu por dar provimento ao apelo do aluno, determinando a aplicação de descontos lineares de 30% nas mensalidades do curso superior à que estava matriculado, exclusivamente em decorrência da pandemia da Covid-19. Como que se a pandemia e as mazelas econômicas que trouxe fossem uma exclusividade do aluno, e que a Instituição de Ensino não tivesse sofrido qualquer prejuízo diante do quadro de degradação econômica provocado pelo vírus da Covid-19 em todo o mundo.
Com efeito, diante do acórdão proferido pela 27ª Câmara de Direito Privado do e. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a Instituição de Ensino, representada pela Covac Sociedade de Advogados, entendeu por bem que o caso se moldava a perfeição a lógica proposta pelo instrumento da Reclamação, pois que o acórdão afrontava de forma grosseira as ADPFs 706 e 713.
Como bem se sabe, a Constituição Federal, em seu art. 102, inciso I, alínea “L”, prevê a Reclamação como meio de preservação da competência e autoridade das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em controle concentrado de constitucionalidade. De igual modo, o art. 988 do Código de Processo Civil e o art. 156 do Regimento Interno do STF, e, na mesma linha, o art. 13, da lei 9.882/99 que, por sua vez, trata do cabimento da Reclamação contra a desobediência à decisão proferida em sede de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF).
Tratou-se, portanto, de um exemplo clássico, em que a jurisdição do Estado, oferecida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP) no caso, estaria desafiando diretamente o que o Supremo Tribunal Federal (STF) havia decidido.
Ou seja, em que pese o STF haver fixado o entendimento de que não se pode impor descontos lineares nas mensalidades escolares sob fundamento exclusivo e abstrato na pandemia de Covid-19, porquanto a pandemia haveria atingido também as Instituições de Ensino no aspecto econômico, o TJSP, de forma contrária, proferiu acordão em sentido diametralmente oposto, exatamente no sentido de determinar descontos lineares – na ordem de 30% – em favor dos estudantes, marginalizando a exigência de critérios de verificação das circunstâncias particulares, tanto da Instituição de Ensino quanto do aluno.
O TJ/SP, no caso, ignorou as orientações apontadas nas ADPFs 706 e 713, partindo da premissa de que a crise econômica advinda com a Covid-19 teve o condão de afetar apenas aos alunos, de forma abstrata. Assim, o julgado do TJSP, fazendo as vezes de legislador para pretender estabelecer norma de caráter abstrato, proferiu decisão eivada de inconstitucionalidade, conferindo descontos lineares ao estudante apelante, contrariando o STF e, de outro lado, escancarando as possibilidades de uso do instrumento da Reclamação.
Proposta a Reclamação (58.786), demonstrada a patente a violação do quanto estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal, em decisão de relatoria da Ministra Cármen Lúcia, a maior instância do Poder Judiciário resolveu cassar o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), determinando, de pronto, que outro seja proferido como de direito, observando-se os limites do que definido nas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental 706 e 713.
Como lição, extrai-se que a segurança jurídica prometida a partir do Estado Democrático de Direito é construída, dia após dia, por meio de esforço, de enfrentamento e de dedicação. Espera-se – representando o “realista esperançoso” projetado por Suassuna – que, com precedentes como esse, seja possível a consecução de maior coerência e congruência nos julgados nacionais, a fim de fortalecer os direitos fundamentais como reais instrumentos de proteção dos indivíduos – sejam pessoas físicas ou jurídicas – frente à atuação do Estado.