Neste artigo de opinião, sem o rigor de um texto científico, irei expor três pontos da lei 14.133/21, a Nova lei de Licitações e Contratos (NLLC), aos quais podemos aplicar a máxima “dura lex sed lex: é dura a lei, mas é a lei”.
Tratam-se, respectivamente, da previsão de que o agente de contratação seja agente com vínculo permanente, da obrigatoriedade da elaboração do estudo técnico preliminar (ETP) para todas as licitações e da não permissão de adesão à ata de registro de preços municipal (“carona”).
No que tange à previsão de que o agente de contratação seja agente com vínculo permanente, temos que partir de uma análise geral à específica. O Art. 7º da NLLC estabelece requisitos gerais aos agentes públicos que labutam em licitações e contratos, em todas as etapas de licitação ou contratação. Dentre eles, a exigência de que “sejam, preferencialmente, servidor efetivo ou empregado público dos quadros permanentes da Administração Pública”.
Trata-se de regra geral aplicável, por exemplo, aos membros da equipe de planejamento, da equipe de apoio, da comissão de contratação, ao gestor e fiscal de contrato, ao membro do controle interno e ao parecerista. É, como visto, uma preferência, não uma obrigatoriedade.
Não obstante, entendo que, mesmo sendo uma preferência, o administrador, ao afastá-la, deve motivar. Explico: na minha concepção, sempre que o legislador trouxer uma preferência legalmente instituída e o administrador não a seguir, deve fundamentar as razões de fato e de direito que o levaram a se afastar da primazia legal. Simples: uma exposição circunstanciada do porquê não está empregando servidores efetivos ou empregados dos quadros permanentes. Tenha em mente: a motivação dos atos administrativos sempre trará segurança jurídica ao gestor.
Por sua vez, alguns dispositivos ao longo da NLLC afastam a flexibilidade da regra geral e trazem exceções, a exemplo do art. 8º, do art. 32, § 1º, inciso XI, e do art. 37, § 1º, inciso I (o art. 158 também, mas não tratarei dele aqui). Nessas situações, o legislador não estabeleceu uma preferência, mas uma obrigatoriedade de emprego de agentes públicos com vínculo permanente com a Administração. São, portanto, dispositivos especiais que se afastam da generalidade contida no art. 7º.
A primeira hipótese especial é a do agente de contratação. Na NLLC, as licitações serão, ordinariamente, conduzidas monocraticamente por um agente, auxiliado por uma equipe de apoio. Na sua definição, o legislador já instituiu, no art. 6º, inciso LX, que se trata de “pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento do certame até a homologação”.
A mesma intenção restritiva ao exercício dessa função essencial é vista no art. 8º da NLLC, o qual, de modo redundante, reforça a opção do legislador geral, ao estabelecer que “a licitação será conduzida por agente de contratação, pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento do certame até a homologação”.
Entendo que esse requisito específico é extensível ao pregoeiro, uma vez que não constitui função diferente, mas designação (nomenclatura). Isso é perceptível no § 5º do mesmo art. 8º: “em licitação na modalidade pregão, o agente responsável pela condução do certame será designado pregoeiro”. Sendo didático, assim como o leiloeiro conduz o leilão, o padeiro é responsável pela confecção do pão, o açougueiro pelo corte da carne, o “pregoeiro” é o condutor do pregão. Os requisitos são os mesmos do agente de contratação (gerais, do art. 7º, e específico do caput do art. 8º).
Esse requisito específico não é aplicável, como regra geral, à comissão de contratação, como se depreende do § 2º, do art. 8º, o qual prevê que “em licitação que envolva bens ou serviços especiais, desde que observados os requisitos estabelecidos no art. 7º desta lei, o agente de contratação poderá ser substituído por comissão de contratação formada por, no mínimo, 3 (três) membros”.
Para os membros dessa comissão, como regra, basta o preenchimento dos requisitos gerais do art. 7º, ou seja, a preferência pelo vínculo permanente. Como dito, trata-se de uma regra geral, pois, para o diálogo competitivo, mais uma vez, o legislador excepcionou, uma vez que o art. 32, § 1º, inciso XI, determina que a licitação, nesta modalidade, seja conduzida “por comissão de contratação composta de pelo menos 3 (três) servidores efetivos ou empregados públicos pertencentes aos quadros permanentes da Administração, admitida a contratação de profissionais para assessoramento técnico da comissão”.
De igual singularidade, quando o administrador optar pelo critério de julgamento melhor técnica ou conteúdo artístico e empregar agentes públicos à banca julgadora, esta deverá ser composta por agentes com vínculo permanente, conforme previsão expressa no art. 37, § 1º, inciso I. Trata-se de excepcionalidades aos requisitos gerais, ou seja, exceções pontuais e pensadas pelo legislador geral.
Um aspecto que tem gerado discussão, principalmente em torno do art. 8º, relaciona-se ao caráter dessa norma. Trata-se de norma geral, aplicável a todos os Entes federativos, ou norma específica à União? Até que ponto o legislador da União pode tratar dessa matéria sem invadir a competência legislativa dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
À análise do assunto, é imperioso compreender que o legislador da NLLC partiu de uma interpretação ampliativa do conceito de “norma geral”. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 22, estabelece que é competência privativa da União legislar sobre “normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios”.
A lei 8.666/93 era caracterizada por constituir um conjunto de normas predominantemente procedimentais, ou seja, mecanizadas, em grande parte relacionadas diretamente aos procedimentos licitatórios e contratuais em si, da espécie “agente público: abra o envelope... devolva o envelope”. A lei 14.133/21, por outro turno, ultrapassa esse paradigma (meramente procedimental) e apresenta uma nova concepção de “norma geral”, com muitos dispositivos relacionados à governança pública, transparência, como, por exemplo, a instituição de linhas de defesa, aspectos procedimentais nos Tribunais de Contas quando este estiver analisando matéria afeta às licitações e contratações, restrição à aquisição de bens de luxo, critérios a serem observados à invalidação (até judicial) de um contrato administrativo, dentre outros.
É necessário ter a concepção de que, na NLLC, o legislador compreendeu como “norma geral” vários aspectos relacionados à conjuntura de licitações e contratos, dentre eles os requisitos aos agentes que atuarão na condução. Dito de outro modo: o legislador não tratou como norma geral só aquelas relacionadas aos procedimentos licitatórios e contratuais (“a obra”), mas tudo aquilo, com licitações e contratos, relacionado (“o conjunto da obra”).
Sobre isso, embora o Poder Judiciário possa ter entendimento futuro divergente, entendo que a União em nada invadiu a esfera de competência legislativa dos demais Entes federativos. Tal qual o legislador da NLLC, adoto o entendimento ampliativo de norma geral, no sentido de que esta abrange o conjunto da obra, no qual estão inseridos os requisitos para quem lida com a matéria.
Partindo dessa premissa, uma leitura do art. 8º (e não uma interpretação) poderia levar a uma concepção de que se trata de dispositivo aplicado especificamente à União. A meu ver e com todo o respeito a quem pensa diferente, inclusive amigos queridos que nos trazem o tema a debate na mesa do almoço de domingo, tal posição não se sustenta. Explico: o art. 8º não se encontra “boiando” sozinho em um oceano. Não! Diferente da leitura de uma lei, para a interpretação, seguimos métodos hermenêuticos, dentre eles o sistemático.
Por uma interpretação sistemática da NLLC, verifica-se que se trata de norma geral, pela simples aplicação sistemática do art. 176, inciso I, o qual determina que os Municípios com até 20.000 habitantes terão o prazo de 6 anos (dois já passaram), contado da data de publicação da lei 14.133/21, para o cumprimento dos requisitos estabelecidos no art. 7º e no caput do art. 8º.
Como podemos dizer, diante da clareza contida no art. 176, que o caput do art. 8º é aplicável exclusivamente à União? A discussão sobre a constitucionalidade ou não do requisito trazido pelo art. 8º deve ser objeto de debate em um outro momento, pela via judicial adequada, pelo Poder Judiciário (seja por ocasião do controle difuso, seja concentrado). Como dito, sob minha concepção, nada há de inconstitucional.
Embora seja uma opção dura do legislador geral, é necessário que haja deferência a ela e que se busque a compreensão de suas razões. Quis ele profissionalizar a área, dando estabilidade ao exercício das funções essenciais à lei (diante da instabilidade ocasionadas às livres nomeações e exonerações comuns aos cargos de vínculo precário).
É comum uma renovação significativa de quadros com vínculo precário, por ocasião da mudança dos mandatários, o que ocasiona (em maior ou menor nível) a descontinuidade da atividade, além de constantes gastos públicos com nova qualificação a estes agentes.
Tanto é assim que o legislador da NLLC estabeleceu, no art. 173, que “os tribunais de contas deverão, por meio de suas escolas de contas, promover eventos de capacitação para os servidores efetivos e empregados públicos designados para o desempenho das funções essenciais à execução desta lei, incluídos cursos presenciais e a distância, redes de aprendizagem, seminários e congressos sobre contratações públicas”.
Dentre as razões, é possível vislumbrar também a intenção de conferir segurança funcional ao agente de contratação. Se este é responsável por “tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento do certame até a homologação”, como se vislumbra no já citado art. 6º, inciso LX, e sendo a área de licitações e contratos relativamente sensível, pensou ele em conferir maior autonomia a esse agente, o que se vislumbra com maior efetividade nos cargos com vínculo permanente em detrimento aos cargos com vínculo precário.
Veja-se que, a curto prazo, os Entes federativos necessitarão de 01 (um!) agente com vínculo permanente para o exercício das atribuições do agente de contratação. Se o órgão ou entidade chegar ao nível de não ter um único agente com vínculo permanente capaz de exercer essas atribuições, a vida administrativa da Unidade Gestora está comprometida. É imperioso realizar, urgentemente, uma apuração das circunstâncias que levaram a essa situação, inclusive com o levantamento de eventuais condutas omissivas.
Ainda no que tange à criação de cargos com vínculo precário, é necessário compreender a interpretação constitucional atribuída pelo STF, ao julgar o RE nº 1041210, ocasião em que o tribunal consolidou sua jurisprudência, inclusive em sede de repercussão geral, fixando os seguintes requisitos cumulativos:
- A criação de cargos em comissão somente se justifica para o exercício de funções de direção, chefia e assessoramento, não se prestando ao desempenho de atividades burocráticas, técnicas ou operacionais;
- tal criação deve pressupor a necessária relação de confiança entre a autoridade nomeante e o servidor nomeado;
- o número de cargos comissionados criados deve guardar proporcionalidade com a necessidade que eles visam suprir e com o número de servidores ocupantes de cargos efetivos no ente federativo que os criar; e
- as atribuições dos cargos em comissão devem estar descritas, de forma clara e objetiva, na própria lei que os instituir.
À luz da lei 14.133/21, as atribuições legais do agente de contratação não se relacionam ao exercício de funções de chefia, direção e assessoramento, havendo, portanto, vedação constitucional a que esse agente possua vínculo precário, exercendo cargo exclusivamente de livre nomeação e exoneração, uma vez que não estariam preenchidos os requisitos da alínea “a” da tese fixada. O STF é o intérprete final da Constituição.
O segundo ponto da lei 14.133/21 em que o legislador foi duro com o administrador, que pode até ser objeto de crítica (deste autor mesmo), mas que constitui norma posta, é a obrigatoriedade à elaboração do Estudo Técnico Preliminar (ETP) nos processos de licitação (contratação direta, não!).
A NLLC, em seu art. 18, inciso I, estabelece que, na fase preparatória da licitação, deve ser realizada a descrição da necessidade da contratação, fundamentada em estudo técnico preliminar, que caracterize o interesse público envolvido. Não há, no texto legal, exceção.
Conforme determinação do § 1º desse artigo, o ETP deverá evidenciar o problema a ser resolvido e a sua melhor solução, de modo a permitir a avaliação da viabilidade técnica e econômica da contratação, e conterá os seguintes elementos:
- descrição da necessidade da contratação, considerado o problema a ser resolvido sob a perspectiva do interesse público;
- demonstração da previsão da contratação no plano de contratações anual, sempre que elaborado, de modo a indicar o seu alinhamento com o planejamento da Administração;
- requisitos da contratação;
- estimativas das quantidades para a contratação, acompanhadas das memórias de cálculo e dos documentos que lhes dão suporte, que considerem interdependências com outras contratações, de modo a possibilitar economia de escala;
- levantamento de mercado, que consiste na análise das alternativas possíveis, e justificativa técnica e econômica da escolha do tipo de solução a contratar;
- estimativa do valor da contratação, acompanhada dos preços unitários referenciais, das memórias de cálculo e dos documentos que lhe dão suporte, que poderão constar de anexo classificado, se a Administração optar por preservar o seu sigilo até a conclusão da licitação;
- descrição da solução como um todo, inclusive das exigências relacionadas à manutenção e à assistência técnica, quando for o caso;
- justificativas para o parcelamento ou não da contratação;
- demonstrativo dos resultados pretendidos em termos de economicidade e de melhor aproveitamento dos recursos humanos, materiais e financeiros disponíveis;
- providências a serem adotadas pela Administração previamente à celebração do contrato, inclusive quanto à capacitação de servidores ou de empregados para fiscalização e gestão contratual;
- contratações correlatas e/ou interdependentes;
- descrição de possíveis impactos ambientais e respectivas medidas mitigadoras, incluídos requisitos de baixo consumo de energia e de outros recursos, bem como logística reversa para desfazimento e reciclagem de bens e refugos, quando aplicável;
- posicionamento conclusivo sobre a adequação da contratação para o atendimento da necessidade a que se destina.
O legislador foi duro com o Administrador. Ele não previu hipótese, às licitações, de dispensa do ETP. Na melhor das hipóteses, o § 2º do art. 18, dispensou alguns de seus elementos, prevendo, entretanto, a obrigatoriedade de, no mínimo, os itens I, IV, VI, VIII e XIII, e, quando não contemplar os demais, a necessidade de demonstração justificada da sua dispensa.
A obrigatoriedade do instrumento preparatório é reforçada no § 3º do art. 18, o qual prevê que, “em se tratando de ETP para contratação de obras e serviços comuns de engenharia, se demonstrada a inexistência de prejuízo à aferição dos padrões de desempenho e qualidade almejados, a especificação do objeto poderá ser realizada apenas em termo de referência ou em projeto básico, dispensada a elaboração de projetos”. A dispensa é para a elaboração dos projetos, não do ETP.
Muitas vezes, o administrador já pode ter se perguntado: qual a necessidade de um estudo técnico à aquisição de copo descartável, por exemplo? Qual a tecnicidade presente neste objeto? A grande questão é: há uma necessidade! Qual? Beber água! A solução mais adequada é o copo descartável? Existem vários aspectos, dentre eles os econômicos e ambientais, que poderão conduzir a uma solução diferente, como a aquisição de garrafas individuais, incluídas no patrimônio do Ente e distribuídas individualmente a cada servidor. Qual instrumento poderá concluir que a aquisição de garrafas é mais adequada que a de copos descartáveis? O Estudo Técnico Preliminar!
Para os processos de contratação direta (dispensa e inexigibilidade de licitação), a elaboração do ETP não é obrigatória em todos os casos. A meu ver, por duas razões: primeiro que o caput do art. 18 é específico à “fase preparatória do processo licitatório”. Na contratação direta, não estamos diante de um “processo licitatório”. A própria lei 14.133/21 faz diferenciação e esta é notória ao se comparar o caput do art. 18 com o do art. 72, o qual estabelece que “O processo de contratação direta, que compreende os casos de inexigibilidade e de dispensa de licitação, deverá ser instruído com os seguintes documentos:”
Segundo, pelo emprego da locução adverbial “se for o caso”, na redação legislativa do inciso I desse art. 72, o qual prevê a instrução do processo com “documento de formalização de demanda e, se for o caso, estudo técnico preliminar, análise de riscos, termo de referência, projeto básico ou projeto executivo”.
Veja-se que, ao estabelecer a condicionante após o documento de formalização da demanda (DFD) e antes do estudo técnico preliminar, o legislador tornou obrigatório o primeiro, em todos os casos de contratação direta, e dispensáveis os demais. A análise da necessidade deve ser casuística e cada Ente federativo poderá regulamentar as hipóteses de elaboração ou não na contratação direta (no âmbito federal, as hipóteses facultativas e dispensadas são elencadas no art. 14 da IN SEGES 58/22).
Passando à análise do terceiro ponto em que a NLLC é dura com o administrador, vislumbro a vedação à “carona municipal”, ou seja, a adesão à ata de registro de preços entre Municípios.
Já publiquei aqui, no Migalhas, a importância do Sistema de Registro de Preços Interfederativo (SRPI) à racionalização e implementação da NLLC pelos Municípios. Trata-se de uma ferramenta cooperativa que ajudará na otimização das atividades licitatórias e contratuais, a qual possuirá um Ente federativo gerenciador e outros como participantes. Com isso, mediante planejamento e coordenação, os Entes federativos poderão dividir atribuições, de modo que cada Município, por exemplo, fique responsável por gerenciar determinado SRPI (como material de expediente, material de limpeza, gêneros alimentícios, medicamentos) estabelecendo uma espécie de escala ou rodízio na divisão das tarefas.
A possibilidade da realização do SRPI encontra previsão no art. 86, da NLLC, o qual prevê que o “órgão ou entidade gerenciadora deverá, na fase preparatória do processo licitatório, para fins de registro de preços, realizar procedimento público de intenção de registro de preços para, nos termos de regulamento, possibilitar, pelo prazo mínimo de 8 (oito) dias úteis, a participação de outros órgãos ou entidades na respectiva ata e determinar a estimativa total de quantidades da contratação”.
Assim, o município "gerenciador" divulgará sua "Intenção de Registro de Preços - IRP", para que outros possam ingressar no SRPI como "participantes", passando suas demandas para serem incluídas na licitação promovida pelo primeiro. Obviamente que a melhor operacionalização do SRPI se dará entre municípios vizinhos, principalmente para obter melhores preços (ainda que a NLLC, no art. 82, inciso III, alínea "a", tenha previsto a possibilidade de cotação de preços diferentes em virtude de entrega ou execução do objeto em lugares diferentes) e facilitar a coordenação.
No que tange ao SRP, entendo que o legislador geral poderia ter sido mais "generoso" com os municípios, permitindo a utilização da "carona" entre eles, mas vedou expressamente a "carona horizontal" no art. 86, § 3º, ao prever que, “[...] caso não participem da licitação desde o início, poderão aderir, como não participantes, à ata de registro de preços de órgão ou entidade gerenciadora federal, estadual ou distrital”.
O silêncio do legislador, na parte in fini desse parágrafo, não foi mero esquecimento, foi intencional e, para o administrador, o silêncio, na maior parte das vezes, se torna proibição expressa. Isso se torna claro, ao se analisar a integralidade do dispositivo, senão vejamos: “§ 3º A faculdade conferida pelo § 2º deste artigo estará limitada a órgãos e entidades da Administração Pública federal, estadual, distrital e municipal que, na condição de não participantes, desejarem aderir à ata de registro de preços de órgão ou entidade gerenciadora federal, estadual ou distrital”. Na primeira parte inaugural do dispositivo, o legislador expôs expressamente quem pode “pegar carona”. Na parte final, ele apresenta expressamente “em quem pode ser pega a carona”.
O silêncio do legislador à municipalidade na parte in fini não pode ser menosprezado. Ele constitui uma vedação expressa, que possui base no berço do direito administrativo brasileiro. Nós, administrativistas, não podemos menosprezar nossas origens. Sobre isso, os Franceses, ainda em 1791, já nos ensinaram que um dos pilares do Estado de Direito é o princípio da legalidade. Por este, a administração está adstrita ao que a lei determina ou autoriza.
No citado § 3º, estamos diante de uma excepcionalidade permissiva (uma das funções dos parágrafos na redação legislativa). A autorização legal, nesse caso, deve ser interpretada pelo texto explícito. Assim, veja-se que o legislador autorizou expressamente a carona municipal em atas federais, estaduais e distritais, ponto. Esta é a autorização expressa. Diferentemente do particular (que pode fazer tudo o que a lei não proíbe, ou seja, atua livremente no silêncio normativo), a Administração age nos limites da autorização legal expressa.
Não obstante eu entenda que, nem sempre a Administração poderá agir por simplesmente haver autorização legal, se sua ação vier a infringir outros princípios da administração pública em determinado caso concreto, como a moralidade administrativa, assim como nem sempre poderá deixar de agir no silêncio legal, sob pena de cometer omissão constitucional, essa máxima não se aplica ao dispositivo em análise.
Aqui, o administrador não poderá agir, pois o legislador deu primazia à necessidade de que os municípios utilizem o SRPI na condição de “participantes”. Uma das razões é a possibilidade da proliferação da prática conhecida como “venda de atas”. Situação em que determinada licitante vence a licitação em determinado município, “coloca a ata debaixo do braço” e sai oferecendo seu objeto a todos os municípios, o que traz detrimento ao próprio princípio da licitação.
Assim, destaco dois pontos importantes que podem mitigar a escolha dura feita pelo legislador: primeiro, que o SRPI não fica adstrito aos municípios, havendo a possibilidade, por exemplo, de que seja gerenciado pelo Estado, tendo como participantes inúmeros de seus municípios; segundo, que, embora haja a vedação de um município aderir à ata de outro (carona horizontal), há a possibilidade de aderir à ata gerenciada por órgão ou entidade federal, distrital ou estadual (carona vertical), o que, indubitavelmente, auxiliará na racionalização procedimental.
Em sede conclusiva, para não cansar o leitor, trago as seguintes reflexões: é dura a lei, mas é a lei (dura lex sed lex)! É necessário se adaptar às imposições do legislador, por mais difíceis e inaceitáveis que pareçam ser. Em caso de discordância, existem os meios adequados de insurgência, como a busca por alteração legislativa, através dos Poderes políticos da União ou até o reconhecimento de inconstitucionalidades pontuais através do controle difuso ou concentrado.
Para o leitor, expresso que tenho o conhecimento de entendimentos recentes de alguns Tribunais de Contas dos Entes estaduais que estão compreendendo, a meu ver contra legem, pela possibilidade de emprego de agentes de contratação com vínculo precário, bem como pela viabilidade da carona horizontal entre Municípios.
Por fim, sobre o terceiro ponto abordado, a possibilidade de “carona municipal”, informo ao leitor que já é objeto de emenda apresentada à Câmara dos Deputados, para apreciação por ocasião da aprovação ou não da Medida Provisória 1.167, de 31 de março de 2021, que deu sobrevida à quase falecida lei 8.666/93.
Sobre os dois primeiros pontos trabalhados (requisito específico para o agente de contratação e a obrigatoriedade do ETP), não houve apresentação de emenda. É possível que haja a apresentação de emenda pelas bancadas, no momento de apreciação da MP. Seria a oportunidade de levar à discussão do legislador ambas as temáticas.
Encerro este artigo afirmando que a NLLC não possui um único intérprete, tampouco uma única interpretação, sendo papel da doutrina trazer à baila discussões e divergências como as abordadas neste artigo, de modo a colaborar com a aplicação atual da lei 14.133/21, bem como alterações futuras.