Em dezembro de 2021, foi sancionada a lei 14.273/21 – Lei das Ferrovias –, que pretendeu profundas modificações no regime de exploração de ferrovias no Brasil. Uma das mudanças mais relevantes foi a criação das autorizações para operação ferroviária em regime privado, que passaram a conviver com o tradicional modelo de concessões, operadas em regime público.
O tema foi marcado por divergências e disputas entre executivo e legislativo, sobre o protagonismo das mudanças do setor. O PLS 261/2018, que originou a lei 14.273/21, é de autoria do Ex-Senador José Serra e foi reestruturado sob a relatoria do ex-Senador Jean Prates. Ocorre que estava com a tramitação estagnada até 2021, quando o Governo Federal do Ex-Presidente da República Jair Bolsonaro editou a MP 1.065, com a mesma intenção, de introduzir as autorizações no setor ferroviário.
Ainda na vigência da MP, que só se encerrou em 6 de fevereiro de 2022, foram protocolados pedidos de autorização com base na norma. Contudo, o Congresso Nacional não apreciou a MP e houve acordo político para retomada da tramitação do PLS 261, com a pretensão de, efetivamente, disciplinar um novo Marco Legal, além da introdução das autorizações.
O PL, que deu origem à lei 14.273/21, não foi sancionado em sua integralidade, tendo sido apostos vetos para alinhamento às ambições do Governo Federal para o setor, aproximando a lei à redação da MP. Foram vetados 38 dispositivos, sobre aspectos que ainda são objeto de divergência entre os stakeholders do setor.
O que está em jogo nos vetos?
Dentre os diversos dispositivos vetados, como a competência para a ANTT determinar a destinação de bens relacionados a trecho desativado ou devolvido, destacam-se ainda os que disciplinavam prerrogativas para as concessionárias com o ingresso das autorizações no setor. São aspectos que interessam, especialmente, às operadoras em regime público, por atenuarem as assimetrias entre os modelos de exploração, já que, em regra, as autorizações são mais flexíveis e conferem maior liberdade ao privado.
Destaca-se, em especial, o art. 64, §11º, que disciplinava a adaptação de concessões em autorizações e previa que, caso a conversão de regime não ocorresse, as concessionárias teriam “direito à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro quando provado desequilíbrio decorrente de outorga de autorizações para a prestação de serviços de transporte dentro da sua área de influência".
As razões do veto indicaram que a previsão instituía um “direito aparentemente automático e inequívoco ao concessionário que não estava previsto, o que implicaria a alocação de risco fiscal para a União ao criar a possibilidade de esta arcar com eventual despesa referente ao reequilíbrio”. A preocupação era a de que poderia haver prejuízo ao erário e desincentivar o uso das adaptações, instrumento disciplinado na lei 14.273/21 para atenuar as assimetrias entre concessões e autorizações.
No processo legislativo, a Confederação Nacional do Transporte – CNT e Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários – ANTF apresentam razões para a derrubada do veto. Ambas defendem que o veto impacta negativamente as concessões.
Do ponto de vista das concessionárias, a garantia de que as autorizações não afetarão o seu equilíbrio econômico-financeiro assegura maior segurança jurídica para os investimentos projetados e sobre os contratos em vigor. Com as recentes prorrogações antecipadas assinadas (MRS, Malha Paulista, EFVM e EFC) e novos projetos concedidos, o debate ganha ainda maior relevância.
O chefe do executivo federal, por iniciativa do Ministério da Infraestrutura, atenuou a discussão ao regulamentar a lei. O decreto 11.245/22 disciplinou que a concessionária poderá requerer a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro em razão da outorga de autorização, quando se enquadrar nas hipóteses de adaptação (art. 35). O dispositivo, porém, não menciona a área de influência e remete o reequilíbrio aos “termos dos contratos de concessão”, que não possuem disciplina tão clara sobre o procedimento.
Outro destaque é o art. 67, que previa o direito de preferência, nos 5 primeiros anos de vigência da lei, para as concessionárias em relação a ferrovias autorizadas, também dentro da sua área de influência. O dispositivo estabelecia um período de transição entre os regimes de exploração, contudo, as razões do veto apontaram pela percepção de que a norma, na realidade, produzia indevida reserva de mercado às concessionárias.
Além disso, foram vetados dispositivos que endureciam o regime de exploração privada, como, por exemplo, a previsão de que os contratos de autorização deveriam indicar a capacidade de transporte (art. 29, inc. III) e as condições técnico-operacionais para interconexão e para compartilhamento da infraestrutura ferroviária (art. 29, inc. IV). Em linhas gerais, os vetos apontaram para um menor controle estatal dos pedidos e contratos de autorização.
E agora?
A volta dos que não foram no processo legislativo ocorre com a derrubada dos vetos no Congresso Nacional, por meio de maioria absoluta dos Deputados e Senadores.
A Constituição Federal determina que após a comunicação do veto, o Congresso terá 30 dias para apreciá-lo e até sua votação as pautas conjuntas do Congresso ficarão trancadas. Na prática, porém, os vetos dependem de articulações políticas para sua votação, e o trancamento pode surtir efeito prático apenas se entendido que bloqueia o trâmite de projetos de grande importância, como as leis orçamentárias, também de competência do Congresso, como é o caso da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), cuja não aprovação inviabiliza o recesso parlamentar (art. 57, §2º, da Constituição).
Apesar dos anseios das operadoras em regime público, até agora somente foi votado o dispositivo que estabelecia prazo de 90 dias para a lei entrar em vigor, que foi mantido. A matéria tramita no Veto 67/21 e, em março de 2022, a Agência Infra noticiou que o Congresso não havia formado o consenso necessário para votar as mudanças.
Em 2023, porém, o cenário é diferente. O Congresso Nacional não é mais o mesmo que promulgou a lei 14.273/21 e as pretensões do Governo Federal para as políticas públicas do setor também são diversas.
O Ministério dos Transportes (sucessor temático do Ministério da Infraestrutura para o transporte ferroviário) apresentou, dentre as medidas do Plano de 100 dias, a revisão da Lei das Ferrovias e estruturação do Programa PPP Ferrovias. Embora ainda seja cedo para se compreender quais são os aspectos da lei 14.273/21 que ensejam mudanças, há um possível novo rumo no sentido de fortalecer as concessões, inclusive por meio de parcerias público-privadas, que dependem de forte interação estatal.
Essa potencial virada nas políticas públicas pode significar uma nova compreensão entre os regimes de exploração, o que passa pela análise dos vetos pelo Congresso Nacional. A votação, assim, é um importante instrumento para se avaliar o futuro do setor. Até lá, o modelo implementado pela lei 14.273/21 não está consolidado, especialmente para as concessões. Aguardemos, então, os próximos capítulos.