Os escândalos de corrupção entre órgãos públicos e empresas privadas foram determinantes para a “virada de chave" na condução dos negócios pelo mundo. Isso porque o mercado passou a exigir cada vez mais uma conduta moral e íntegra por parte das corporações, sob pena de responsabilização até mesmo pessoal de seus dirigentes. Assim, as companhias começaram a investir em ferramentas capazes de garantir a conformidade quanto às normas que regem as atividades empresariais. Foi nesse contexto de transição moral que o Compliance integrou o mundo dos negócios, tornando-se essencial para o mercado como um todo, inclusive na seara tributária.
A palavra Compliance vem do verbo “to comply”, que significa estar em conformidade, e surgiu na legislação norte-americana no início do século XX. Em sua origem, teve a finalidade de reestruturar e fortalecer o mercado financeiro que havia sido fortemente atingido pela crise de 1929 devido à quebra da bolsa de Nova York. Porém, apenas no início da década de 1970 que o Compliance começou a se difundir pelo mundo, quando vieram à tona grandes escândalos de corrupção como o Lockheed Corporation1 e Watergate2 que evidenciaram o mau uso da máquina política e administrativa para atender fins pessoais3.
No contexto brasileiro, dentre os eventos históricos determinantes para colocar o Compliance no centro das preocupações empresariais, destacam-se dois: (i) a operação lava-jato que trouxe à tona um dos mais notórios esquemas de corrupção da história do país, que culminou em uma série de prisões dos dirigentes de empresas envolvidas; e (ii) a edição da lei 12.846/13, chamada de “Lei Anticorrupção”, que tipificou diversas condutas que ensejam severas consequências às empresas que venham a praticar atos lesivos à administração pública.
Embora inicialmente esse mecanismo tenha se inserido no país em um contexto criminal, diversas outras áreas vislumbraram a necessidade de sua implementação, pois, além de garantir a conformidade normativa, ética e estatutária, o compliance assumiu o espectro estratégico no mundo dos negócios, até mesmo no contexto da tributação brasileira.
Inclusive, no ano de 2021, a KPMG realizou a 5ª edição da pesquisa “Maturidade da Compliance no Brasil”. Esta iniciativa contou com a participação de 55 empresas de diferentes setores e regiões, e teve como objetivo apurar o nível de implementação e desenvolvimento dessa ferramenta no mundo corporativo.
A pesquisa constatou que apenas 2% das empresas entrevistadas não possuem um código de ética e conduta devidamente elaborado e aprovado. Outro dado relevante é que 75% dos executivos seniores reforçam que a cultura de Compliance é essencial para o sucesso da estratégia da empresa e 71% afirmam que revisam e aprovam anualmente o programa de ética Compliance4.
No âmbito fiscal, especificamente, podemos notar que um dos maiores problemas do sistema tributário brasileiro é a sua complexidade. Segundo o IBPT - Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário , são mais de 320.423 normas tributárias vigentes, o que resulta numa média de 46 leis tributárias a cada dia útil5.
Além dessa notória produção normativa, os empresários e contribuintes se deparam com um grande volume de obrigações acessórias, tendo que lidar ainda com diversos precedentes judiciais e administrativos que se encontram sujeitos a constantes mudanças de entendimento6.
Acrescente-se o fato de que a Receita Federal do Brasil possui um dos sistemas mais avançados para realizar o cruzamento de dados dos contribuintes, em tempo real, o seu supercomputador (T-Rex) é capaz de coletar dados de diversas instituições, para que sejam cruzados com a base do MP, PF e Conselho de Controle de Atividades Financeiras7. Estamos diante, portanto, de um verdadeiro “Big Brother Fiscal".
Essas circunstâncias demandam mais atenção das empresas e dos contribuintes no cumprimento das exigências fiscais, já que a complexidade do sistema facilita a ocorrência de erros no processo de lançamento do tributo. Os casos mais comuns envolvem pagamentos excedentes ou insuficientes, e, por vezes, a ausência do recolhimento. Ocorre que essa última conduta, quando praticada de forma contumaz, pode caracterizar crime contra a ordem tributária.
Esse é o entendimento que vem sendo adotado pelo STF. No emblemático julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus 163.334, a corte, por unanimidade, negou a liberdade pleiteada por Robson Schumacher e Vanderleia Silva Ribeiro Schumacher, ocasião em que fixou tese no sentido de que é crime contra a ordem tributária o não recolhimento contumaz de ICMS declarado, sendo aplicável o tipo previsto no art. 2º, inciso II, da lei 8.137/908.
É nesse contexto que a adoção de práticas de Compliance Tributário se torna cada vez mais necessária, pois garante a transparência fiscal por meio da aplicação adequada da legislação tributária, acompanhada do controle efetivo das informações que estão sendo entregues ao Fisco. Assim, reduz-se significativamente a possibilidade de autuações fiscais e a atribuição de responsabilidade aos sócios e representantes das organizações empresariais.
Ademais, a promoção da conformidade tributária pode trazer relevantes benefícios concorrenciais às empresas, como por exemplo a identificação de oportunidades de economia de tributo de forma lícita, a escolha de um regime de tributação mais compatível à organização empresarial e ao objeto social, na melhoria das informações que são repassadas aos gestores e conselhos fiscais para auxiliar na tomada de decisões estratégicas e, não menos importante, na manutenção de uma boa reputação perante o mercado.
Contudo, para que um bom programa de Compliance tributário cumpra com seu objetivo, é necessário o efetivo comprometimento e engajamento da alta administração para que possam ser adotados padrões de ética e de integridade. Além disso, é necessário que sejam implementados mecanismos eficazes de controle e de avaliação de riscos envolvidos na condução dos negócios, de modo que seja possível a manutenção de registros confiáveis sobre as atividades da empresa, com previsão de aplicação de medidas disciplinares em caso de descumprimento9.
Verifica-se, portanto, que em um cenário tributário cada vez mais desafiador e complexo, as empresas têm buscado a implementação de ferramentas que facilitem o controle e aumentem sua transparência junto ao mercado. Dessa forma, a implementação do programa de Compliance direcionado à área tributária é indispensável tanto para a melhoria dos processos internos e consequente redução de passivo oculto tributário, quanto para o aprimoramento da confiabilidade da relação entre Fisco e contribuinte, o que contribui para a legitimidade da cobrança tributária.
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1 WIKIPEDIA. Lockheed Corporation. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Lockheed_Corporation#:~:text=Lockheed%20was%20founded%20in%201926,operational%20from%201912%20to%201920. Acesso em 03/04/2023.
2 SUPER ABRIL. O que foi o escândalo Watergate. Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-foi-o-escandalo-watergate/. Acesso em 03 de abril de 2023.
3 RHED COMPLIANCE. Compliance, Origem e evolução histórica. Disponível em: Compliance, Origem e evolução histórica | Rhed Compliance. Acesso em 03 de abril de 2023.
4 KPMG. Pesquisa Maturidade do Compliance no Brasil, 5ª edição. Disponível em: https://assets.kpmg.com/content/dam/kpmg/br/pdf/2021/07/KPMG-pesquisa-maturidade-compliance-2021.pdf. Acesso em: 07 de fevereiro de 2023.
5 IBPT. Brasil cria, em média, 46 novas regras de tributos a cada dia útil. Disponível em: https://ibpt.com.br/brasil-cria-em-media-46-novas-regras-de-tributos-a-cada-dia-util/. Acesso em 07 de fevereiro de 2023.
6 Correia, Arm e Bernardes, Gab. CONSIDERAÇÕES SOBRE AS PRÁTICAS DE COMPLIANCE TRIBUTÁRIO NO CONTEXTO BRASILEIRO. 1ª edição, Editora D’ Plácido. Luis Gustavo Miranda de Oliveira (Org.)
7 Olhar digital – Os Supercomputadores do Fisco como ferramenta no combate à sonegação. Disponível em: https://olhardigital.com.br/2019/02/17/noticias/os-supercomputadores-do-fisco-como-ferramentas-no-combate-a-sonegacao/ . Acesso em 12 de abril de 2023.
8 STF. Recurso Ordinário em Habeas Corpus 163334. Disponível em: Supremo Tribunal Federal (stf.jus.br). Acesso em 03 de abril de 2023.
9 Correia, Arm e Bernardes, Gab. CONSIDERAÇÕES SOBRE AS PRÁTICAS DE COMPLIANCE TRIBUTÁRIO NO CONTEXTO BRASILEIRO. 1ª edição, Editora D’ Plácido. Luis Gustavo Miranda de Oliveira (Org.)