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A influência do programa de compliance no contexto da tributação brasileira

A palavra compliance vem do verbo “to comply”, que significa estar em conformidade, e surgiu na legislação norte-americana no início do século XX.

17/4/2023

Os escândalos de corrupção entre órgãos públicos e empresas privadas foram determinantes para a “virada de chave" na condução dos negócios pelo mundo. Isso porque o mercado passou a exigir cada vez mais uma conduta moral e íntegra por parte das corporações, sob pena de responsabilização até mesmo pessoal de seus dirigentes. Assim, as companhias começaram a investir em ferramentas capazes de garantir a conformidade quanto às normas que regem as atividades empresariais. Foi nesse contexto de transição moral que o Compliance integrou o mundo dos negócios, tornando-se essencial para o mercado como um todo, inclusive na seara tributária.

A palavra Compliance vem do verbo “to comply”, que significa estar em conformidade, e surgiu na legislação norte-americana no início do século XX. Em sua origem, teve a finalidade de reestruturar e fortalecer o mercado financeiro que havia sido fortemente atingido pela crise de 1929 devido à quebra da bolsa de Nova York. Porém, apenas no início da década de 1970 que o Compliance começou a se difundir pelo mundo, quando vieram à tona grandes escândalos de corrupção como o Lockheed Corporation1  e Watergate2 que evidenciaram o mau uso da máquina política e administrativa para atender fins pessoais3.

No contexto brasileiro, dentre os eventos históricos determinantes para colocar o Compliance no centro das preocupações empresariais, destacam-se dois: (i) a operação lava-jato que trouxe à tona um dos mais notórios esquemas de corrupção da história do país, que culminou em uma série de prisões dos dirigentes de empresas envolvidas; e (ii) a edição da lei 12.846/13, chamada de “Lei Anticorrupção”, que tipificou diversas condutas que ensejam severas consequências às empresas que venham a praticar atos lesivos à administração pública.

Embora inicialmente esse mecanismo tenha se inserido no país em um contexto criminal, diversas outras áreas vislumbraram a necessidade de sua implementação, pois, além de garantir a conformidade normativa, ética e estatutária, o compliance assumiu o espectro estratégico no mundo dos negócios, até mesmo no contexto da tributação brasileira.

Inclusive, no ano de 2021, a KPMG realizou a 5ª edição da pesquisa “Maturidade da Compliance no Brasil”. Esta iniciativa contou com a participação de 55 empresas de diferentes setores e regiões, e teve como objetivo apurar o nível de implementação e desenvolvimento dessa ferramenta no mundo corporativo.

A pesquisa constatou que apenas 2% das empresas entrevistadas não possuem um código de ética e conduta devidamente elaborado e aprovado. Outro dado relevante é que 75% dos executivos seniores reforçam que a cultura de Compliance é essencial para o sucesso da estratégia da empresa e 71% afirmam que revisam e aprovam anualmente o programa de ética Compliance4.

No âmbito fiscal, especificamente, podemos notar que um dos maiores problemas do sistema tributário brasileiro é a sua complexidade. Segundo o IBPT - Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário , são mais de 320.423 normas tributárias vigentes, o que resulta numa média de 46 leis tributárias a cada dia útil5.

Além dessa notória produção normativa, os empresários e contribuintes se deparam com um grande volume de obrigações acessórias, tendo que lidar ainda com diversos precedentes judiciais e administrativos que se encontram sujeitos a constantes mudanças de entendimento6.

Acrescente-se o fato de que a Receita Federal do Brasil possui um dos sistemas mais avançados para realizar o cruzamento de dados dos contribuintes, em tempo real, o seu supercomputador (T-Rex) é capaz de coletar dados de diversas instituições, para que sejam cruzados com a base do MP, PF e Conselho de Controle de Atividades Financeiras7. Estamos diante, portanto, de um verdadeiro “Big Brother Fiscal".

Essas circunstâncias demandam mais atenção das empresas e dos contribuintes no cumprimento das exigências fiscais, já que a complexidade do sistema facilita a ocorrência de erros no processo de lançamento do tributo. Os casos mais comuns envolvem pagamentos excedentes ou insuficientes, e, por vezes, a ausência do recolhimento. Ocorre que essa última conduta, quando praticada de forma contumaz, pode caracterizar crime contra a ordem tributária.

Esse é o entendimento que vem sendo adotado pelo STF. No emblemático julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus 163.334, a corte, por unanimidade, negou a liberdade pleiteada por Robson Schumacher e Vanderleia Silva Ribeiro Schumacher, ocasião em que fixou tese no sentido de que é crime contra a ordem tributária o não recolhimento contumaz de ICMS declarado, sendo aplicável o tipo previsto no art. 2º, inciso II, da lei 8.137/908.

É nesse contexto que a adoção de práticas de Compliance Tributário se torna cada vez mais necessária, pois garante a transparência fiscal por meio da aplicação adequada da legislação tributária, acompanhada do controle efetivo das informações que estão sendo entregues ao Fisco. Assim, reduz-se significativamente a possibilidade de autuações fiscais e a atribuição de responsabilidade aos sócios e representantes das organizações empresariais.

Ademais, a promoção da conformidade tributária pode trazer relevantes benefícios concorrenciais às empresas, como por exemplo a identificação de oportunidades de economia de tributo de forma lícita, a escolha de um regime de tributação mais compatível à organização empresarial e ao objeto social, na melhoria das informações que são repassadas aos gestores e conselhos fiscais para auxiliar na tomada de decisões estratégicas e, não menos importante, na manutenção de uma boa reputação perante o mercado.

Contudo, para que um bom programa de Compliance tributário cumpra com seu objetivo, é necessário o efetivo comprometimento e engajamento da alta administração para que possam ser adotados padrões de ética e de integridade. Além disso, é necessário que sejam implementados mecanismos eficazes de controle e de avaliação de riscos envolvidos na condução dos negócios, de modo que seja possível a manutenção de registros confiáveis sobre as atividades da empresa, com previsão de aplicação de medidas disciplinares em caso de descumprimento9.

Verifica-se, portanto, que em um cenário tributário cada vez mais desafiador e complexo, as empresas têm buscado a implementação de ferramentas que facilitem o controle e aumentem sua transparência junto ao mercado. Dessa forma, a implementação do programa de Compliance direcionado à área tributária é indispensável tanto para a melhoria dos processos internos e consequente redução de passivo oculto tributário, quanto para o aprimoramento da confiabilidade da relação entre Fisco e contribuinte, o que contribui para a legitimidade da cobrança tributária.

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1 WIKIPEDIA. Lockheed Corporation. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Lockheed_Corporation#:~:text=Lockheed%20was%20founded%20in%201926,operational%20from%201912%20to%201920. Acesso em 03/04/2023.

2 SUPER ABRIL. O que foi o escândalo Watergate. Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-foi-o-escandalo-watergate/. Acesso em 03 de abril de 2023.

3 RHED COMPLIANCE. Compliance, Origem e evolução histórica. Disponível em: Compliance, Origem e evolução histórica | Rhed Compliance. Acesso em 03 de abril de 2023.

4 KPMG. Pesquisa Maturidade do Compliance no Brasil, 5ª edição. Disponível em: https://assets.kpmg.com/content/dam/kpmg/br/pdf/2021/07/KPMG-pesquisa-maturidade-compliance-2021.pdf. Acesso em: 07 de fevereiro de 2023.

5 IBPT. Brasil cria, em média, 46 novas regras de tributos a cada dia útil. Disponível em: https://ibpt.com.br/brasil-cria-em-media-46-novas-regras-de-tributos-a-cada-dia-util/. Acesso em 07 de fevereiro de 2023.

6 Correia, Arm e Bernardes, Gab. CONSIDERAÇÕES SOBRE AS PRÁTICAS DE COMPLIANCE TRIBUTÁRIO NO CONTEXTO BRASILEIRO. 1ª edição, Editora D’ Plácido. Luis Gustavo Miranda de Oliveira (Org.)

7 Olhar digital – Os Supercomputadores do Fisco como ferramenta no combate à sonegação. Disponível em: https://olhardigital.com.br/2019/02/17/noticias/os-supercomputadores-do-fisco-como-ferramentas-no-combate-a-sonegacao/ . Acesso em 12 de abril de 2023.

8 STF. Recurso Ordinário em Habeas Corpus 163334. Disponível em: Supremo Tribunal Federal (stf.jus.br). Acesso em 03 de abril de 2023.

9 Correia, Arm e Bernardes, Gab. CONSIDERAÇÕES SOBRE AS PRÁTICAS DE COMPLIANCE TRIBUTÁRIO NO CONTEXTO BRASILEIRO. 1ª edição, Editora D’ Plácido. Luis Gustavo Miranda de Oliveira (Org.)

Henrique Perlatto Moura
Advogado no escritório Ayres Ribeiro Advogados. Doutorando em Direito Tributário na UFMG. Mestre em Direito pela FDMC. Especialista em Direito Tributário pelo instituto IED e IBET.

Ana Luisa Santos Lopes
Estagiária tributarista no escritório Ayres Ribeiro. Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos.

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