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O término do prazo de vigência e a inexecução do objeto nos contratos de obras públicas

Como proceder nos casos em que o prazo contratual se encontra expirado e não houve a execução total da obra contratada?

3/4/2023

Demanda recorrente no dia a dia das administrações públicas diz respeito ao término do prazo formal estipulado para o contrato de obra sem que tenha havido a conclusão e entrega do objeto. Daí surge uma série de questionamentos que provoca a demora excessiva na tomada de decisão pelo gestor público, tornando o caso suscetível de erros e prejuízos para o erário. 

A dúvida na maioria das vezes tem como pano de fundo questões práticas, como por exemplo, após o prazo expirado do contrato, é possível prorrogá-lo sob o argumento de que contratos por escopo não se encerram pelo mero decurso de prazo? Ou prevalece a rigor o prazo formal estabelecido na cártula de maneira que se deve proceder à nova contratação mediante licitação?

É certo que competia à Administração ter verificado os motivos para o não adimplemento das obrigações nos prazos definidos e, em se tratando de alguma das hipóteses previstas no §1º do art. 57 da Lei nº 8.666/93, prorrogar o prazo de vigência de forma a abranger a sua execução total. Se houver atraso na execução por culpa do contratado e ainda persistir o interesse público no recebimento do empreendimento, então cumpriria estipular um novo prazo, prorrogando a avença, sem prejuízo da aplicação da multa moratória prevista contratualmente.

Pois bem. Para desenvolvermos qualquer proposta de solução às indagações acima é necessário, antes, retomarmos o significado dos contratos ditos por escopo, tal qual são os contratos de obras de engenharia.

Nos contratos ditos de escopo, a Administração contrata a obtenção de um bem determinado, independentemente do tempo que será dispensado para a sua execução. Daí dizer que o contrato de obra é um típico contrato de escopo, pois contrata-se a obra pronta e executada, sem se prender ao tempo nela empregado.

É o caso do contrato de empreitada, regulado pelos artigos 610 a 626 do Código Civil, em que o objeto só se consuma quando entregue e finalizada a obra.

Para Caio Mário da Silva Pereira, a empreitada é o contrato em que uma das partes (empreiteiro) se obriga, sem subordinação ou dependência, a realizar certo trabalho para outro (dono da obra), com material próprio ou por este fornecido, mediante remuneração global ou proporcional ao trabalho executado1.

Nesses casos, ainda que exista um prazo determinado para a sua conclusão, o fator “tempo” passa a ser apenas um parâmetro de acompanhamento e de gestão e fiscalização do contratado, não constituindo a verdadeira substância do contrato.

Nos contratos de execução continuada o prazo é que condiciona o objeto, uma vez que o serviço é prestado enquanto vigente o contrato. Neste caso, o prazo durante o qual o serviço será prestado é a essência do contrato, condicionando a própria prestação do serviço.

Essa distinção levou parte da doutrina a sustentar a tese de que os contratos de escopo não se extinguem pelo mero decurso do prazo formal, subsistindo enquanto não concluído o objeto, pois a conclusão do objeto prevaleceria, tendo o prazo de vigência relevância secundária.

O Tribunal de Contas da União em alguns julgados chegou a se posicionar neste sentido, corroborando o que alguns doutrinadores entendiam sobre o prazo de vigência dos contratos por escopo. Confira trecho do voto proferido no Acórdão 1980/2004 da Primeira Câmara:

33. Nessa linha, a jurisprudência do Tribunal tem-se manifestado no sentido de permitir a retomada ou o prosseguimento de contratos quando sua inexecução é provocada pela Administração, como no presente caso, decorrente da descontinuidade de liberação de recursos orçamentários. Podese aplicar a interpretação de que a contratada adquiriu o direito de executar o objeto pactuado, tendo sido impedida por motivos aos quais não deu causa. Analisando o aspecto da vigência do contrato, deve-se entender que o prazo está vinculado também à conclusão do objeto, e não somente ao decurso do tempo.

 

Outras decisões do Tribunal de Contas da União também registram que a questão formal do prazo de vigência dos contratos deveria ser minimizada em virtude de circunstâncias materiais. É o que sucedeu no Acórdão 732/99 – Plenário, Acórdão 1740/03 -Plenário e Acórdão 606/96 – Plenário. 

Por outro lado, encontramos decisões do mesmo Tribunal evidenciando a ideia de que, ainda que se trate de contratação que visa a entrega de um bem, o prazo de vigência previsto na cártula está ali para ser observado e esse entendimento se adequaria muito mais à sistemática das contratações públicas prescritas na lei 8.666/93.

Os defensores dessa tese alegam que a prorrogação de contrato com prazo vencido não se sustenta na estrutura normativa da Lei 8.666/93, pois violaria três regras básicas dos contratos administrativos: a) a exigência de prévia licitação; b) a obrigatoriedade da forma escrita e; c) a impossibilidade de celebração de contratos com prazo indeterminado.

Segundo referido entendimento, permitir que o prazo de vigência contratual fosse ultrapassado seria o mesmo que permitir a sua duração indeterminada, possibilitando sempre a dilação do prazo - incerta e indefinida - para acompanhar a execução do objeto. Além disso, estar-se-ia diante da transmutação da contratação formal para a verbal, já que a execução das atividades ocorreria sem respaldo contratual.

E por fim, infringir-se-ia a regra constitucional da contratação mediante prévia licitação, pois implicaria na recontratação direta da empresa contratada.

A partir dessa tese identificamos outros julgados do TCU em que se recomendava a não celebração de termo aditivo com prazo vencido ainda que para esses casos de contratos por escopo, devendo prevalecer o prazo que foi formalmente estabelecido:

Acórdão 3863/2011 – Segunda Câmara – Relator José Jorge (Data: 07/06/2011): 

9.7. recomendar à UFRJ que:

(...)

9.8.3. não celebre termo aditivo ao contrato cujo prazo de vigência tenha expirado, por ausência de previsão legal, observando-se o disposto no art. 65 da Lei nº 8.666/93.

No Acórdão 1302/13 – Plenário, no item 9.1.4, encontramos a mesma recomendação, determinando a não celebração de termo aditivo com prazo vencido para contratos de obras públicas.

O meu posicionamento diverge dessa tese mais recente do TCU. A meu ver, o fato de o prazo formal ter se esgotado não importa na extinção do ajuste, o que torna possível a prorrogação retroativa, a continuidade da execução da obra (caso assim queira a Administração Pública) e o correspondente pagamento a título contratual.

Pactuo com o entendimento de que se a contratação é por escopo, de forma que o interesse público só se satisfará com a entrega da obra, o prazo formal do instrumento contratual não pode prevalecer e pôr fim ao ajuste. Isso não anula a validade da cláusula referente ao prazo e nem implica em aceitar contrato com prazo indeterminado. O descumprimento do prazo entabulado ensejará as devidas sanções legais – produzindo, pois, os efeitos esperados - tanto para a Administração quanto para o particular, e o prazo será realinhado de maneira certa e definida para abranger a entrega do bem.

Seguindo o mesmo racional, discordo da afirmação de que prorrogar o prazo de contrato expirado seria desrespeitar à formalidade prescrita na lei. Tal irregularidade seria posteriormente sanada e convalidada por ato da Administração, exatamente em atendimento às normas de formalidade previstas em lei. O termo aditivo não deixaria de existir, seria formalizado a posteriori conferindo à validade e legitimidade necessárias.

Quanto ao último argumento, no sentido de que esse ato administrativo representaria violação à obrigatoriedade de licitar, não o acho bem-sucedido. Se assim o fosse, então toda a renovação de prazo culminaria em uma espécie de violação indireta ao princípio da obrigatoriedade de licitar. 

Em todos os casos em que há a prorrogação, há a opção concomitante de deixar o contrato “morrer” para oferecer o seu objeto a outros concorrentes por meio da licitação. No entanto, a legislação permite a prorrogação da relação contratual entre as mesmas partes, desde que comprovada a vantajosidade da recontratação.

Ademais, se a Administração licitou naquela oportunidade e contratou a execução na íntegra de determinado bem, enquanto esse não for materializado, o contrato não terá atendido ao propósito que impulsionou sua celebração e também o procedimento licitatório que antecedeu ao contrato, não havendo que se falar em necessidade de contratação por novo processo de licitação.

Com a redação da Nova Lei de Licitações, penso eu que o dissenso doutrinário e jurisprudencial sobre o prazo de vigência dos contratos de escopo restou encerrado, fortalecendo-se a tese do contrato de escopo, com a qual sempre coadunei.

Isso porque o artigo 111 cria o instituto da prorrogação automática da vigência dos contratos de escopo, até que o seu objeto seja concluído, como se demonstra a seguir:

Art. 111. Na contratação que previr a conclusão de escopo predefinido, o prazo de vigência será automaticamente prorrogado quando seu objeto não for concluído no período firmado no contrato2.

Tecendo comentários sobre o dispositivo acima, a professora Tatiana Camarão diz:

“O legislador reconhece que de nada adiantará o passar dos dias se o intuito não se concretizar. Por essa razão, o prazo serám automaticamente prorrogado, no caso de contratação com indicação de conclusão de escopo predefinido, ou seja:

 

‘quando o objeto contratual for dotado de precisão quanto ao resultado a ser lançado (por exemplo, a construção de um muro de arrimo contra deslizamentos), o prazo de vigência será considerado automaticamente prorrogado quando o objeto não for concluído no prazo fixado. Os efeitos, entretanto, variam de acordo com a parte culpada. Se a culpa couber ao contratado, será ele constituído em mora e sujeito às sanções administrativas cabíveis, além disso, a Administração pode optar pela extinção do contrato e adotar as medidas adequadas à continuidade da execução (art. 111 e parágrafo único, I e II). Caso a culpa seja da Administração, poderá haver efeitos gravosos para esta, dependendo da ocorrência dos casos previstos no art. 137 do Estatuto’”. (Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei nº 14.133 de 1º de abril de 2021 – Vol.2).

Para concluir, finalizo com a afirmação de que, na minha opinião, a tese da prorrogação dos contratos de escopo com prazo de validade vencido sempre foi a melhor saída para os gestores públicos (não apenas do ponto de vista prático, mas também jurídico), tanto que a nova legislação fez constar de seu texto, expressamente, a prorrogação automática dos contratos de escopo, encerrando as discussões sobre o assunto e permitindo a prorrogação desses contratos,  ainda que com a ocorrência do decurso do prazo.

___________

1 PEREIRA Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. III.

2 De acordo com o artigo 6º, inciso XVII, da Lei 14.133/2021, “serviços não contínuos ou contratos por escopo, são aqueles que impõem ao contratado o dever de realizar a prestação de um serviço específico em período predeterminado, podendo ser prorrogado, desde que justificadamente, pelo prazo necessário à conclusão do objeto”.

Lis Veronica de Souza Moreira
Advogada administrativista no escritório Cunha Pereira & Massara Advogados, pós-graduada em Direito Público e Direito de Empresa pela PUC-Minas.

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