Migalhas de Peso

Dez, cinco ou três? Qual o prazo aplicável à responsabilidade civil contratual?

Toda perspectiva nova precisa de tempo para se sedimentar ou ser afastada.

9/3/2023

Olá, amigos e amigas do Direito, espero que estejam bem.

Conversaremos sobre questões jurídicas interessantes, algumas polêmicas, técnicas de gestão e inovação, e tudo o mais que faz parte do nosso dia a dia profissional.

E começaremos com um tema que vem provocando saudáveis debates, tanto nos tribunais quanto no meio acadêmico, e que impacta diretamente uma grande quantidade de relações jurídicas: Qual é o prazo prescricional de um ato ilícito cometido no âmbito de um contrato? E se o ilícito tiver sido cometido fora de um contrato, há diferença nesse prazo?

Antes de avançarmos na construção de uma resposta, vamos ao Código Civil:

“Art. 205. A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor.

(...)

Art. 206. Prescreve:

§3o Em três anos:

V - a pretensão de reparação civil;

(...)

§ 5º Em cinco anos:

I - a pretensão de cobrança de dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular;”

Parece bastante simples, não? Pois bem, suponhamos a seguinte situação: Você celebra um contrato, de natureza cível, de compra e venda de um veículo. O Vendedor, porém, perde o carro em uma aposta e não cumpre sua obrigação. Desse modo, você resolve pleitear a resolução do contrato cumulada com perdas e danos.

Nesse caso, seu prazo para ajuizar a ação é de dez, cinco ou três anos?

Explico o meu posicionamento com uma provocação: Ao mencionar “reparação civil” no art. 206, o legislador fez alguma distinção entre responsabilidade contratual e extracontratual?

Entendo que não. Por isso, parece-me sem sentido aplicar o prazo decenal à responsabilidade contratual, e o trienal à responsabilidade extracontratual, quando falamos em reparação de danos.

Há outros doutrinadores que também seguem esta vertente, caso de Gustavo Tepedino, por exemplo. Entre os civilistas, porém, não há consenso.

O STJ enfrentou o tema

Toda perspectiva nova precisa de tempo para se sedimentar ou ser afastada. O STJ, por exemplo, tem entendido que o prazo trienal vale somente para as hipóteses de responsabilidade extracontratual, aplicando à reparação de danos, no âmbito da responsabilidade contratual, o prazo decenal do art. 205, na ausência de prazo específico.

Nas palavras do STJ:

“Quando a norma do art. 206, § 3.º, V, fala em prescrição da pretensão de reparação civil, está cogitando da obrigação que nasce do ilícito stricto sensu. Não se aplica, portanto, às hipóteses de violação do contrato, já que as perdas e danos, em tal conjuntura, se apresentam com função secundária. O regime principal é o do contrato, ao qual deve aderir o dever de indenizar como acessório, cabendo-lhe função própria do plano sancionatório. Enquanto não prescrita a pretensão principal (a referente à obrigação contratual) não pode prescrever a respectiva sanção (a obrigação pelas perdas e danos). Daí que enquanto se puder exigir a prestação contratual (porque não prescrita a respectiva pretensão), subsistirá a exigibilidade do acessório (pretensão ao equivalente econômico e seus acréscimos legais). É, então, a prescrição geral do art. 205, ou outra especial aplicável in concreto, como a quinquenal do art. 206, § 5.º, I, que, em regra, se aplica à pretensão derivada do contrato, seja originária ou subsidiária a pretensão. Esta é a interpretação que prevalece no Direito Italiano (CC, art. 2.947), onde se inspirou o Código brasileiro para criar uma prescrição reduzida para a pretensão de reparação do dano”.

Para o STJ, portanto, o legislador quis diferenciar “reparação civil” de “perdas e danos”, atribuindo à primeira uma autonomia que as últimas não teriam, na medida em que são acessórias a uma obrigação contratual.

Com isso, cria-se uma espécie de cordão umbilical entre o ilícito cometido nos limites do contrato e o dever de indenizar: Enquanto não prescrever a pretensão da reparação relativa à obrigação principal, também não prescreverá a de arcar com perdas e danos.

A matéria foi, inclusive, objeto de decisão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, que, em 15 de maio de 2019, fixou o prazo de dez anos para a prescrição da pretensão de reparação civil baseada no inadimplemento contratual.

Sobre como ler a mente do legislador a partir das características da obrigação

Para entender melhor a questão, a primeira indagação a ser fazer é se as partes têm ou não interesse no cumprimento contratual.

Em caso afirmativo, importante esclarecer, que, não estando o contrato definitivamente inadimplido, ou seja, se as partes ainda estiverem em negociação quanto a valores ou quanto ao conteúdo da prestação, não há falar em ilícito contratual nem em dano; tampouco em obrigação de reparar.

Neste caso vigora, de fato, o prazo de dez anos do art. 205, desde que se trate de obrigação ilíquida, não constante de instrumento público ou particular, por ausência de previsão de prazo prescricional específico.

Já na hipótese de a prestação consistir em valor líquido, formalizado em instrumento público ou particular, vale o prazo de cinco anos do inc. I do §5º do art. 206. Atenção a este detalhe!

Perceba que as distinções que o legislador faz não são aleatórias.

Tanto que, nos dizeres de Gustavo Tepedino, “(...) o Código Civil de 2002 dá especial ênfase à execução específica das obrigações, sendo inteiramente coerente com o sistema atribuir-se prazo quinquenal para seu cumprimento, quando ainda há interesse útil do credor; e reservando-se o prazo trienal para o credor que, uma vez frustrada a possibilidade de cumprimento específico (por perda da utilidade da prestação em decorrência do comportamento moroso do devedor), se encontra apto a promover, imediatamente, a ação de ressarcimento de danos.”

Noutros termos, a depender da complexidade da negociação, o prazo de três anos nem sempre é o bastante para se realizar todos os ajustes necessários. É comum, nesses casos, haver a purga da mora e, ao final, o cumprimento da prestação.

O legislador tinha isso em mente e atribuiu, para tais situações, o prazo prescricional de cinco anos.

Por outro lado, confirmado o inadimplemento, não é do interesse da lei postergar o problema. Daí, cabe ao credor ajuizar a ação em até três anos.

Eis o motivo pelo qual entendemos que o legislador não faz distinção quanto à reparação fundada no inadimplemento do contrato (responsabilidade contratual) daquela fundamentada na reparação dos danos provenientes de infração à lei (responsabilidade extracontratual).

Questão desafio

Agora que ficou mais claro o critério do legislador na definição dos prazos, lanço um desafio: Qual o prazo prescricional na hipótese de ocorrer algum percalço durante a execução do contrato, causando certo desequilíbrio contratual que resulte em valores suplementares a serem pagos por uma parte à outra?

Dica: nosso posicionamento é no sentido de que, se existirem negociações em curso, é do interesse útil do credor que haja o cumprimento específico da obrigação.

Agora ficou mais fácil, não? A partir desse raciocínio, podemos afirmar que, em caso de desequilíbrio contratual, se as tratativas não tiverem sido encerradas, o prazo será de cinco anos, para a cobrança de dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular; se a dívida for ilíquida, aplica-se o prazo genérico de dez anos.

Vejam quantas discussões interessantes surgem a partir de um tema, à primeira vista, simples.

César Fiuza
Doutor em Direito Civil na UFMG. Professor. Advogado. Atuação nos Tribunais Superiores. Parecerista. Autor do livro "Direito Civil Curso Completo", com mais de 100.000 exemplares vendidos no Brasil.

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