“Para que serve a utopia?”. Conta-nos o escritor Eduardo Galeano que recebeu essa indagação de estudantes quando visitou uma universidade na Cartagena das Índias na Colômbia, junto com seu amigo de diretor de cinema, Fernando Birri. Relata Galeano que Birri respondeu:
a utopia está no horizonte. Eu sei muito bem que nunca a alcançarei. Se eu caminho 10 passos, ela se afasta 10 passos. Quanto mais eu buscá-la, menos eu a encontrarei porque ela vai se afastando à medida que eu me aproximo. Pois a utopia serve para isso, para caminhar.
Enxergamos nessa passagem diversas reflexões. Uma delas está relacionada com nossos anseios como seres humanos e com nossas atuações profissionais. Estamos, nessa quadra histórica, como procuradora do município de Salvador/BA e como procurador do município do Recife/PE e, como servidores públicos que somos, acreditamos na força da Constituição Federal (com os desafios práticos que ela possui) para, tanto quanto possível e com a conjugação de outros fatores, mudar a realidade. Creditamos no serviço público o instrumento por excelência de concretização de direitos fundamentais e de avanços sociais. Partilhamos nesse aspecto do entendimento de Virgílio Afonso da Silva:
Embora seja verdade que textos constitucionais não mudam sozinhos a realidade de um país, é também verdade que leis promulgadas e políticas públicas implementadas com base na Constituição de 1988 vêm criando condições para diminuir desigualdades em algumas áreas1.
A implementação de todos os comandos da Carta de 1988 ao ponto de efetivar todos os direitos e a garantias individuais e os direitos sociais seja – e é – por ora uma utopia. Talvez seja uma utopia durante ainda incalculáveis anos dado o atual estágio evolutivo da humanidade. Talvez nem seja possível a referida implementação em sua inteireza. Talvez...Talvez...Talvez...
A despeito disso, parece-nos em igual medida que uma maior efetivação, mesmo que incompleta, dos direitos fundamentais passa necessariamente pelo respeito e aplicação da Constituição Federal no mundo dos fatos, ainda que ela se distancie 10 passos – “Se eu caminho 10 passos, ela se afasta 10 passos”. A cada concretização de parcela ou de dimensão dos direitos fundamentais um dos pilares da República se implementa.
A Carta Constitucional, por analogia, está no horizonte e serve, portanto, para nos ajudar enquanto humanidade e sociedade a caminhar, a caminhar na direção dos objetivos fundamentais do Brasil (art. 3º da CF/1988): construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
E nessa caminhada uma das instituições que atua “para a preservação dos direitos fundamentais e do Estado de Direito” (RE 663.696 – Tese 510 STF) é a Advocacia Pública, função essencial à Justiça que no mês de março comemora o seu dia. A lei federal 12.636/12, de autoria do até então deputado federal Arnaldo Faria de Sá e sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, instituiu 07 de março como o Dia Nacional da Advocacia Pública.
A Advocacia Pública é uma instituição permanente de Estado e é uma das mais antigas do Brasil2, tem um papel decisivo na formação do Estado, na consolidação da democracia e na promoção dos direitos fundamentais.
Em recente artigo, o advogado-geral da União Jorge Messias pontuou alguns desafios atuais a serem enfrentados pela AGU, mencionando, dentre outros, a defesa do Estado Democrático de Direito, sendo criada para tanto a procuradoria nacional de Defesa da Democracia3. E, visando obter subsídios e contribuições para a elaboração da regulamentação da cita procuradoria, foi instituído, por meio da Portaria Normativa AGU n.º 81, de 19 de janeiro de 2023, um Grupo de Trabalho.
Para nós que integramos a Advocacia Pública Municipal é motivo de satisfação observar que compõem o referido Grupo de Trabalho três procuradores municipais: Ademar Borges de Sousa Filho (procurador do município de Belo Horizonte/MG); Juraci Lopes Mourão Filho (procurador do município de Fortaleza/CE); e Martonio Mont' Alverne Barreto Lima (procurador do município de Fortaleza/CE).
Em uma primeira apequenada análise do texto constitucional pode parecer estranha a defesa da democracia à Advocacia Pública. No entanto, a par de um exame vertical da Constituição de 1988 e observando a separação das funções estatais, cada Poder e órgãos autônomos respeitando as suas respectivas áreas de atuação e limites, a inferência que se impõe é: cabe sim - como dever - à Advocacia Pública a preservação do Estado Democrático de Direito.
A Advocacia Pública é uma função essencial à Justiça e como tal o seu lugar se encontra exatamente na promoção dos direitos fundamentais e na consolidação do Estado de Direito. Não há democracia sem a preservação dos direitos fundamentais. Não há democracia sem a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana. A dignidade da pessoa é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso III, da CF/1988). É a dignidade da pessoa humana o núcleo central dos direitos fundamentais, que no dizer de Gustavo Binenbojm “O ponto de partida da Constituição brasileira de 1988 é, todavia, a proteção da dignidade humana, em torno da qual erige o edifício normativo dos direitos fundamentais”4.
Se a Advocacia Pública atua para a concretização dos direitos fundamentais; se a Advocacia Pública atua para a promoção da dignidade da pessoa humana; e utilizando das palavras de Eduardo Ramalho Rabenhorst “Se existe algum fundamento último para a democracia, ele não pode ser outra coisa senão o próprio reconhecimento da dignidade humana”5; é dizer e onde se conclui: a Advocacia Pública atua para a defesa do Estado Democrático de Direito.
Não por acaso, a justificação da citada Lei Federal 12.636/12 assim expressa:
Trata-se de uma das mais nobres funções públicas conferidas ao serviço público nacional, posto lhe incumbir a defesa dos valores e interesses do Estado Democrático de Direito vigente em nosso país, conferindo concretude aos direitos e liberdades fundamentais estabelecidos em nossa Constituição Federal, à viabilidade das políticas públicas do Estado brasileiro e à estabilidade jurídica das ações governamentais.
Assim, convictos que Advocacia Pública continuará a prestar indiscutíveis e relevantes serviços ao Estado Democrático Brasileiro, seja nos municípios e nos estados, seja na União, sempre guiada tendo no horizonte a Constituição Federal, parabenizamos todos nós advogados e advogadas públicas pelo Dia Nacional da Advocacia Pública.
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1 SILVA, Virgílio Afonso da. Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2021, p. 132.
2 Dia Nacional da Advocacia Pública: celebração e reflexão
3 AGU 30 anos: uma instituição democrática indispensável ao Brasil
4 BINENBOJM, Gustavo. Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o direito administrativo. In: SARMENTO, Daniel (coord.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 162.
5 RABENHORST, Eduardo Ramalho. Dignidade humana e moralidade democrática. Brasília: Brasília Jurídica, 2001, p. 48.