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A súmula 381 do STJ em confronto com a defesa dos consumidores

Ao prever que, “nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas”, a súmula 381 do STJ fragiliza a tutela dos consumidores.

7/3/2023

Em 2009, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça aprovou a edição da Súmula 381, segundo a qual “nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas”. Essa súmula sobreveio após a consolidação do entendimento por ela veiculado em 2008, no julgamento, pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, do Recurso Especial 1.061.530/RS1, representativo do Tema Repetitivo 36 da Corte Superior. Ocorre que esse entendimento vai de encontro com a tutela especial que é conferida aos consumidores pelo ordenamento jurídico brasileiro, pelo que deve ser superado ou, no mínimo, revisado.

Primeiramente, é preciso destacar a incidência do Código de Defesa do Consumidor aos contratos firmados por instituições bancárias e financeiras. Essa incidência é, por si só, imediatamente extraível do artigo 3º, § 2º do Código de Defesa do Consumidor, que elenca, como exemplos de atividades remuneratórias oferecidas no mercado de consumo e enquadráveis no conceito de serviço, aquelas de natureza bancária e financeira.

Paralelamente, em 2004, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça aprovou a edição da Súmula 297, segundo a qual “o Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras”, sendo que a constitucionalidade desse entendimento foi confirmada em 2006 pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 25912.

Cumpre atentar que, não obstante o Código de Defesa do Consumidor seja uma lei ordinária e sem hierarquia normativa em relação às demais leis ordinárias, possui uma densidade axiológica diferenciada, já que sua edição decorreu diretamente de um comando contido expressamente no artigo 5º, inciso XXXII da Constituição Federal e no artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Além desse comando ao Poder Legislativo que resultou na edição do Código Consumerista, a Constituição Federal também trouxe outras normas expressas de tutela especial dos consumidores: (1) no artigo 24, inciso VIII, ao prever as matérias de legislação concorrente entre a União, os Estados e o Distrito Federal, elencou a responsabilidade por dano ao consumidor; (2) no artigo 150, § 5º, dispôs que “a lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços”; (3) no artigo 170, inciso V, alçou a defesa do consumidor ao patamar de princípio condicionante da ordem econômica.

Outrossim, considerando que, na sociedade contemporânea, como bem observa Mike Featherstone3, “em vez de o consumo ser considerado como mero reflexo da produção, passa-se a concebê-lo como fundamental para a reprodução social”, não é exagero inferir que a defesa do sujeito consumidor também decorre da efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III da Constituição Federal), cujo respeito, inclusive, está no escopo da Política Nacional das Relações de Consumo, conforme prevê o artigo 4º do Código Consumerista.

A fim de efetivar a dignidade e a igualdade material dos consumidores perante os fornecedores, o Código de Defesa do Consumidor traz, a título exemplificativo, disposições que visam: (1) ao “reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo” (artigo 4º, inciso I); (2) ao “equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores” (artigo 4º, inciso III); (3) à positivação de uma série de direitos básicos aos consumidores (artigo 6º, caput), não exaustivos; (4) ao critério hermenêutico segundo o qual “as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor” (artigo 47), em uma exceção justificada à presunção geral de simetria entre os contratantes.

Na contramão dessas diretrizes, como bem observam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald4, a Súmula 381 do Superior Tribunal de Justiça implica “inutilizar a própria essência do CDC e do direito fundamental à proteção do consumidor”, bem como “afronta a própria ideia de isonomia, uma vez que, de acordo com a Súmula, o consumidor não terá a especial proteção empreendida pelos julgadores nos contratos firmados com bancos, mas terá nos demais”.

Nesse sentido, a Súmula nº 381 do Superior Tribunal de Justiça colide duplamente com o artigo 5º, caput da Constituição Federal, pois ofende tanto a isonomia material, ao desconsiderar a necessidade de aplicação imperativa de um regime jurídico justificadamente especial em favor dos consumidores, quanto a isonomia formal, ao potencializar um tratamento privilegiado, ainda que por via oblíqua, a instituições bancárias em detrimento de outros contratantes.

Não se pode olvidar que os contratos bancários, por terem, em essência, “cláusulas [...] estabelecidas unilateralmente [...], sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo”, são, conforme elucida o artigo 54, caput do Código Consumerista, contratos de adesão, os quais, mesmo quando não são firmados no seio de uma relação de consumo, ensejam um tratamento distinto em razão de sua natureza.

Tanto é assim que o Código Civil estabelece que “quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente” (artigo 423), bem como prevê que “nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio” (artigo 424). É bem verdade que, não necessariamente, um contrato de adesão será abusivo ou conterá cláusulas pouco claras ou nulas. Ainda assim, não se pode perder de vista que, por serem essencialmente unilaterais, os contratos de adesão propiciam, por exemplo, a inserção de cláusulas abusivas.

No Código de Defesa do Consumidor, as cláusulas abusivas (elencadas em um rol não exaustivo nos artigos 51, caput e 53, caput) são reputadas como nulas de pleno direito. Ainda, como consequência da abertura normativa propiciada pelo artigo 7º, caput do Código de Defesa do Consumidor, é possível fazer um diálogo de fontes com o Código Civil, sobretudo porque seu artigo 168, parágrafo único, dispõe que “as nulidades devem ser pronunciadas pelo juiz, quando conhecer do negócio jurídico ou dos seus efeitos e as encontrar provadas, não lhe sendo permitido supri-las, ainda que a requerimento das partes”.

Como aponta Flávio Tartuce5, a declaração de ofício das nulidades pelo magistrado será “sempre indispensável quando os interesses da coletividade estiverem em jogo”. Complementarmente, Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes6 explicam que qualquer hipótese de nulidade “é fixada no interesse de toda a coletividade, tendo alcance geral e eficácia erga omnes”. Isso se torna mais evidente em relação às nulidades previstas no Código de Defesa do Consumidor, uma vez que, além desse diploma legal ter raiz constitucional, logo em seu artigo 1º, anuncia que suas normas são “de ordem pública e interesse social”.

Nessa esteira, correto é o posicionamento de Claudia Lima Marques, Antonio Herman Benjamin e Bruno Miragem7, que defendem que “a ‘nulidade’ dos arts. 51 e 53 do CDC é uma espécie de nulidade ‘absoluta’ do sistema geral do direito civil, que pode ser declarada ex officio pelo juiz”. E, à luz do artigo 51, § 2º do Código de Defesa do Consumidor, segundo o qual “a nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes”, a declaração de ofício da nulidade de uma cláusula abusiva pelo magistrado não acarretará automaticamente o prejuízo da invalidação de todo o contrato.

Ademais, uma vez que o Código de Defesa do Consumidor é de ordem pública e interesse social (artigo 1º), há de ser observado o artigo 2.035, parágrafo único do Código Civil, que veda a prevalência de qualquer convenção sobre preceitos de ordem pública, dentre os quais se insere a função social dos contratos. Tanto é assim que, mesmo após ter tido sua redação atualizada pela Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, o artigo 421, caput do Código Civil não deixou de prever que “a liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato”.

Com efeito, como bem pontua Paulo Lôbo8, “a Constituição Federal brasileira apenas admite o contrato que realiza a função social, a ela condicionando os interesses individuais, e que considera e desigualdade material das partes”. Essa conclusão é direta e imediatamente extraível de disposições da Constituição Federal que visam à redução das desigualdades sociais (artigos 3º, inciso III e 170, inciso VII) e que elencam a justiça social tanto como um ditame da ordem econômica (artigo 170, caput) quanto como um objetivo da ordem social (artigo 193, caput). Logo, o magistrado não pode ficar alheio a essas disposições, sobretudo diante de um contrato bancário, em que há uma notável desigualdade material entre as partes.

Ainda, o conhecimento e a declaração de ofício da nulidade de uma cláusula abusiva pelo juiz em um contrato bancário não violarão o devido processo legal (artigo 5º, inciso LIV da Constituição Federal) e o contraditório (artigo 5º, inciso LV da Constituição Federal e artigo 7º do Código de Processo Civil). Isso porque o Código de Processo Civil prevê que, em regra, “não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida” (artigo 9º, caput), além de dispor que “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício” (artigo 10).

Vale destacar que o próprio Superior Tribunal de Justiça já decidiu no sentido de que “não haverá julgamento extra petita quando o juiz ou tribunal pronunciar-se de ofício sobre matérias de ordem pública, entre as quais se incluem as cláusulas contratuais consideradas abusivas (arts. 1º e 51 do CDC)”9. Com efeito, e ante todo o exposto, como bem ponderam Antonio Carlos Efing e Denise Pipino Figueiredo10 relativamente à Súmula 381 do Superior Tribunal de Justiça, “ou se reformula sua redação de modo a vedar a revisão de ofício apenas em contratos bancários não firmados por consumidores, como o feito por grandes corporações ou é extirpada por inteiro do ordenamento jurídico”.

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1 REsp n. 1.061.530/RS, relatora Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, julgado em 22/10/2008, DJe de 10/3/2009.

2 ADI 2591, Relator(a): CARLOS VELLOSO, Relator(a) p/ Acórdão: EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 07/06/2006, DJ 29-09-2006 PP-00031 EMENT VOL-02249-02 PP-00142 RTJ VOL-00199-02 PP-00481.

3 FEATHERSTONE, Mike. O desmanche da cultura: globalização, pós-modernismo e identidade. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Studio Nobel: SESC, 1997. p. 109.

4 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: contratos: teoria geral e contratos em espécie. v. 4. 9. ed. rev. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2019. p. 357.

5 TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. Volume único. 6. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2016. p. 296.

6 TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República: parte geral e obrigações: arts. 1º a 420. v. 1. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 313, grifos no original.

7 MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 62, grifos no original.

8 LÔBO, Paulo. Direito civil: obrigações. v. 2. 6. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 42.

9 REsp n. 1.013.562/SC, relator Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 7/10/2008, DJe de 5/11/2008.

10 EFING, Antonio Carlos; FIGUEIREDO, Denise Pipino. A incongruência da súmula 381 do STJ frente ao sistema brasileiro de proteção ao consumidor. Revista Jurídica Unicuritiba, Curitiba, v. 2, n. 69, p. 355-374, 2022. p. 372.

Gabriel Alves Fonseca
Graduado em Direito (UFPR). Pesquisador do NCPC (PPGD-UFPR). Pós-graduando em Direito Constitucional e Direito e Processo Penal (ABDConst). Analista Jurídico (CRCPR). Mestrando em Direito (PPGD-UFPR).

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