Migalhas de Peso

O novo crime de injúria racial para repressão ao velho racismo de sempre

Essas escolhas de política criminal reforçam o crescimento da importância da repressão aos crimes de racismo na sociedade brasileira.

27/2/2023

Em 11.1.2023, foi publicada a lei 14.532, que tipifica como crime de racismo a injúria racial e eleva sua pena para dois a cinco anos de reclusão, além de multa.  A nova lei também positivou entendimento – até então controvertido – recentemente pacificado pelo STF no sentido de que a injúria racial, da mesma forma que o racismo, é crime imprescritível e inafiançável.

Antes de detalhar os motivos pelos quais essas alterações são bem-vindas, é importante diferenciar o crime de racismo da injúria racial.  Embora tanto um como outra tratem de condutas praticadas com fundamento na cor, raça, etnia ou procedência nacional da vítima, o racismo representa uma ofensa direcionada à coletividade, ao passo que a injúria se dirige à autoestima de pessoa determinada.

É por essa razão que, no final do ano passado, a Justiça Estadual do Rio de Janeiro entendeu que um médico francês acusado de agredir seu porteiro – afirmando que ele seria “um negro, macaco”, incapaz de exercer suas funções – foi condenado por injúria racial1, e o torcedor que, em redes sociais, escreveu comentários depreciativos sobre a torcida rival, como “só tem preto” e “escureceu ainda mais a torcida”, foi enquadrado no crime de racismo2.  E não é apenas o uso de palavras que pode levar ao enquadramento na injúria racial: conforme denúncia apresentada já em 2018 pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, torcedores de futebol que jogam cascas de banana ao campo para ofender jogadores negros praticam também esse tipo, ainda que nada seja verbalizado3.  Da mesma forma, discriminações não-verbais, como a que é cometida por gerente de loja que recusa atendimento a pessoas negras4, também configuram o crime de racismo, nos termos de denúncia apresentada recentemente pelo Ministério Público do Ceará.

A lei 14.532/23 estabeleceu também que a injúria racial passa a ser crime de ação penal pública incondicionada, e não mais de ação condicionada à representação da vítima, o que significa que não cabe mais ao ofendido decidir se quer ou não dar seguimento ao processo – ele passa a ser de titularidade do Ministério Público e pode ser proposto independentemente de provocação.

Isso resolve um impasse que, até então, era frequente: diferente do racismo, a injúria racial, apesar de imprescritível segundo entendimento jurisprudencial, não podia ser processada sem a representação da vítima em até seis meses após ser conhecida a autoria do fato5, o que, na prática, dificultava o prosseguimento desses casos e gerava até mesmo impunidade, quando o enquadramento típico era revisto por outras instâncias.

Em alarmante precedente julgado pelo Tribunal de Justiça do Pará, por exemplo, em que a agressora se dirigiu não apenas à vítima como à coletividade de maneira abertamente ofensiva – declarando “[ter] raiva de preto e que se [seus] olhos [fossem] um revólver, mataria tudo que é preto” –, a decisão do colegiado de alterar o enquadramento no crime de racismo para injúria racial acabou levando à extinção de punibilidade da autora, já que a vítima não havia apresentado representação para processamento da ação no prazo legal6.

Além de resolver esse tipo de problema, o legislador introduziu também risco concreto de prisão para o ofensor ao aumentar a pena da injúria racial – que era de um a três anos de reclusão – para dois a cinco anos de reclusão, já que, antes, o autor acabava se beneficiando da fixação de regime aberto ou substituição por medida restritiva de direitos, em razão de a pena máxima ser inferior a quatro anos7.

A nova lei, nesse passo, estabelece ainda que todos os tipos previstos na lei 7.716/89 – que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor – terão as penas aumentadas de 1/3 até a metade quando a injúria ocorrer em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação, podendo o autor ser proibido de frequentar, por até três anos, locais destinados a práticas esportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público, conforme o caso.

Esse aumento de pena vem, especialmente, da necessidade de reprimir os atos de racismo entre torcidas em jogos de futebol8, um problema cada dia mais grave e recorrente na sociedade brasileira, mas abrange também os casos de “racismo recreativo”, termo utilizado para se referir “a ‘piadas’ e ‘brincadeiras’ que, aparentemente, são inofensivas e/ou um meio rotineiro de interação social, mas que possuem um cunho racial em que associa as características, físicas e culturais, das pessoas negras ou indígenas como algo inferior ou desagradável”9.

Essas escolhas de política criminal reforçam o crescimento da importância da repressão aos crimes de racismo na sociedade brasileira, que cada vez mais mostra seu repúdio a esse tipo de comportamento, infelizmente ainda tão comum. Basta uma breve pesquisa nos principais veículos de notícia para se deparar com uma série de casos de injúria racial, quase que diariamente10, e que precisam ser tratados com rigor.

Importante ressaltar que a aplicação da nova lei não pode voltar no tempo para atingir injúrias raciais cometidas antes de sua publicação, por determinação expressa da Constituição Federal. Contudo, a nova previsão deve ser aplicada a qualquer injúria racial cometida após a publicação da lei.11

Assim, e ainda que extremo – por se utilizar do ramo mais invasivo do direito para reprimir comportamentos inaceitáveis –, trata-se, sem dúvidas, de um passo importante no sentido de resolver impasses e omissões no sistema jurídico brasileiro no que toca a esse tema.

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1 - Disponível aqui. Acesso em: 22.2.2023.

2 - Disponível aqui. Acesso em 23.2.2023.

3 - Disponível aqui. Acesso em 22.2.2023.

4 - Disponível aqui. Acesso em 23.2.2023.

5 - Disponível aqui. Acesso em: 22.2.2023.

6 - Apelação Penal n.º 2012.3020730-5, Rel. Des. Rômulo Nunes, Segunda Turma de Direito Penal, j. 9.4.2013, DJe 15.4.2013.

7 - Não existe nenhuma vedação legal à aplicação de instrumentos descriminalizantes, como transação penal, acordo de não persecução penal e suspensão condicional do processo, aos casos de racismo e injúria racial. Contudo, muitos Ministérios Públicos, como o de São Paulo e do Acre, recomendam aos seus membros que esses institutos não sejam aplicados aos crimes raciais, dada a natureza da infração. Ainda, vale mencionar que, em fevereiro de 2023, a Segunda Turma do STF, por maioria, entendeu não ser possível a aplicação do Acordo de não Persecução Penal aos casos de injúria racial, por interpretação finalística da excepcionalidade prevista em lei para os casos de violência contra a mulher. (STF, RHC n.º 222.599, Rel. Min. Edson Fachin).

8 - Apenas para citar dois exemplos recentes: “Jogadores do Caxias denunciam caso de injúria racial na partida contra o Novo Hamburgo”. Disponível aqui; e “Bahia repudia injúria racial de torcedor contra jornalista na Arena Fonte Nova”. Disponível aqui. Acesso em 24.2.2023.

9 - Disponível aqui. Acesso em 23.2.2023.

10 - Como por exemplo: “Homem é preso por injúria racial dentro de hospital”, de 14.2.2023. Disponível aqui; “Vendedora é vítima de injúria racial em shopping de Belo Horizonte (MG)”, de 16.2.2023. Disponível aqui. Acesso em 23.2.2023.

11 - Apenas para citar exemplos ocorridos desde então: “Primeiro caso de injúria racial tipificado como racismo é registrado no DF”. Disponível aqui. Acesso em 23.2.2023; “Arquiteto é xingado de 'macaco' por empresário após cobrar conserto de casa comprada há dois anos; áudio”. Disponível aqui. Acesso em 23.2.2023.

Rodolfo Eduardo Santos Carvalho
Advogado criminalista, sócio de Ráo & Lago Advogados.

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