Em novembro de 2020, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) deu provimento a Recurso Ordinário interposto pelo Ministério Público em face de acórdão prolatado pelo Tribunal Regional Eleitoral da Bahia (TRE-BA), que julgava improcedente Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) proposta contra o então Deputado Estadual Targino Machado, por suposto abuso de poder político e econômico. No entender da Corte Superior, havia elementos suficientes a apontar abuso de poder político e econômico praticado nas Eleições de 2018, pelo que foi dado provimento ao recurso ministerial para cassar o diploma do parlamentar.
Sem entrar no mérito da referida cassação, outra controvérsia que surge desse caso diz respeito à destinação dos votos atribuídos ao candidato cassado. Ou seja, esses votos serão destinados à legenda — de sorte a manter os candidatos eleitos e ajudar a eleger candidato(s) do mesmo partido ou da mesma coligação — ou serão anulados — de sorte a implicar recálculo do quociente eleitoral e consequente redistribuição das cadeiras?
Por maioria apertada de quatro a três, a Corte Superior decidiu, no bojo do caso concreto, no sentido de que os votos deveriam ser anulados para todos os efeitos — decisão essa que contrariou a Resolução TSE 23.554/17, vigente à época dos fatos que ensejaram a cassação do Deputado. A matéria foi levada ao Supremo Tribunal Federal (STF) por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 761, ajuizada pelo DEM e pelo PSDB, em que foi requerida, inclusive em caráter cautelar, a suspensão dos efeitos da decisão do TSE, especificamente no que tange à nulidade dos votos atribuídos ao candidato cassado. No entanto, a cautelar foi indeferida, tendo a arguição perdido o objeto em virtude da superveniência da legislatura de 2022, conforme decisão do Relator publicada em 8 de fevereiro de 2023.
É importante ressaltar que as Eleições de 2018, nas quais se verificou o suposto abuso de poder, foram disciplinadas pela Res. TSE 23.554/17, cujos termos eram expressos ao apontar que seriam contados para a legenda os votos dados a candidato cujo registro estivesse deferido na data do pleito, porém tenha sido posteriormente cassado por decisão em ação autônoma, caso a decisão condenatória fosse publicada depois das eleições.1
Essa resolução do TSE consolidou uma interpretação equivocada dos arts. 175, §§ 3º e 4º, 222 e 237, todos do Código Eleitoral. Nota-se, na resolução, a existência de uma confusão entre o indeferimento do registro de candidatura e a cassação de diploma por abuso de poder político ou econômico. O Código Eleitoral garante a contagem dos votos para o partido ou coligação na hipótese de cancelamento de registro de candidatura ou na hipótese de inelegibilidade — hipóteses reconhecidas em decisão publicada posteriormente às eleições. Por outro lado, quando se trata de votos obtidos com abuso de poder, a providência é a nulidade para todos os efeitos, conforme previsão dos arts. 222 e 237 do Código Eleitoral.2-3
Em 2019, o TSE corrigiu esse equívoco ao editar a Res. TSE 23.611/19, orientada a disciplinar as Eleições de 2020. De acordo com o art. 198 dessa nova resolução, serão computados como anulados sub judice os votos dados a candidato cujo registro venha a ser cassado, após a eleição, em ação autônoma, por decisão contra a qual tenha sido interposto recurso com efeito suspensivo.4
Em síntese, observa-se que os votos atribuídos a candidaturas cassadas por abuso de poder político ou econômico, nos termos da resolução de 2017, deveriam ser destinados à legenda, ao passo que, nos termos da resolução de 2019, deveriam ser anulados, para todos os efeitos, implicando a retotalização dos votos e a redistribuição de cadeiras. Essa controvérsia, como é perceptível, envolve uma colisão entre o princípio democrático e o princípio da segurança jurídica.
Admitir que votos angariados com abuso de poder político ou econômico sejam aproveitados pelo partido ou coligação significa admitir uma situação de afronta ao equilíbrio da disputa eleitoral e ao sufrágio universal, que deve ser exercido de forma livre e desimpedida, sob pena de prejuízo aos postulados democráticos.
Por outro lado, anular os votos e recalcular o quociente eleitoral pode implicar uma série de repercussões contrárias aos cânones da segurança jurídica, como a redistribuição das cadeiras da casa legislativa, dos recursos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, bem como do tempo de acesso gratuito ao rádio e à televisão.
De todo modo, não se afigura razoável invocar o princípio da segurança jurídica para efeito de legitimar uma situação que se consolidou mediante violação às normas legais e constitucionais que vedam a interferência do poder político e econômico no processo eleitoral. Observe-se que admitir que a legenda se aproveite dos votos atribuídos a candidaturas cassadas por abuso de poder, além de representar um atentado à igualdade na corrida eleitoral e à liberdade do voto, representa também um desincentivo às agremiações quanto a um compromisso mais sólido em relação a fiscalização e controle de suas candidaturas.
Por essa razão, andou bem o TSE ao corrigir a impropriedade da Res. 23.554/17, editando a Res. 23.611/19, por meio da qual restou inequívoca a nulidade, para todos os efeitos, dos votos atribuídos a candidaturas cassadas por abuso de poder político ou econômico.
O mesmo, contudo, não se pode dizer quanto à providência adotada no bojo do Recurso Ordinário mencionado no parágrafo inicial deste artigo. Para todos os efeitos, nas Eleições de 2018, estava em vigor a Res. 23.554/17, que, bem ou mal, destinava à legenda os votos obtidos por candidatos com registro cassado em decisão publicada após as eleições — caso em que deveria ter prevalecido o postulado da segurança jurídica.
O que ocorreu, na hipótese, a rigor, foi a aplicação retroativa da nova resolução, inclusive em prejuízo da anterioridade eleitoral — princípio que se aplica, até mesmo, às decisões do TSE. Destaque-se, a propósito, que a Resolução 23.472/16 do TSE é manifesta ao dispor que a modificação de sua jurisprudência, bem como de suas instruções regulamentadoras, não se aplica à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência, ou seja, o próprio TSE editou regulamento segundo o qual não se admite a aplicação de novos normativos ou novos entendimentos a eleições passadas nem à eleição que venha a ocorrer em menos de um ano, contado da data da modificação da norma ou da jurisprudência.5
Ante o exposto, observa-se que não se afigura razoável destinar à agremiação votos obtidos por meio de fraude às normas eleitorais que vedam a interferência do poder político e econômico na disputa eleitoral, sob pena de legitimar uma situação de atentado ao princípio da igualdade, à liberdade de voto e, em última medida, aos próprios postulados da democracia, pelo que andou bem o TSE ao editar a Res. 23.611/19 (art. 198). Isso, contudo, não legitima a atuação da Corte Superior no sentido de aplicar uma nova resolução a eleições passadas, dado o absoluto desprestígio à segurança jurídica e à anualidade eleitoral.
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1 Art. 218. Serão contados para a legenda os votos dados a candidato:
II - cujo registro esteja deferido na data do pleito, porém tenha sido posteriormente cassado por decisão em ação autônoma, caso a decisão condenatória seja publicada depois das eleições;
2 Art. 222. É também anulável a votação, quando viciada de falsidade, fraude, coação, uso de meios de que trata o Art. 237, ou emprego de processo de propaganda ou captação de sufrágios vedado por lei.
3 Art. 237. A interferência do poder econômico e o desvio ou abuso do poder de autoridade, em desfavor da liberdade do voto, serão coibidos e punidos.
4 Art. 198. Serão computados como anulados sub judice os votos dados a candidato cujo registro:
I - no dia da eleição, se encontre:
a) indeferido, cancelado ou não conhecido por decisão ainda objeto de recurso, salvo se já proferida decisão colegiada pelo Tribunal Superior Eleitoral;
b) cassado, em ação autônoma, por decisão contra a qual tenha sido interposto recurso com efeito suspensivo (Código Eleitoral, arts. 222 , 237 e 257, § 2º).
II - após a eleição, venha a ser:
a) não conhecido, nos termos da alínea "a" do inciso I;
b) cassado, nos termos da alínea "b" do inciso I.
5 Art. 5º A modificação da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral e as alterações de que tratam o inciso V do art. 2º desta Resolução entrarão em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência (CF, art. 16).
Art. 2º As instruções para regulamentação das eleições ordinárias serão editadas em caráter permanente e somente poderão ser alteradas nas seguintes hipóteses:
V - em decorrência da modificação da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal sobre matéria eleitoral;