O Governo Federal logo em seus primeiros dias, causou um rebuliço no setor do saneamento básico com a edição das Medidas Provisórias 1.154/23 e 1.156/23 e dos decretos Federais 11.333/23 e 11.349/23, trazendo, basicamente, quatro grandes mudanças significativas.
A primeira mudança alterou a estrutura ministerial, desmembrando as competências do Ministério do Desenvolvimento Regional, para o recriado Ministério das Cidades, onde este passará a tratar, além de outros temas, sobre políticas setoriais de saneamento ambiental, a promoção de ações e programas de saneamento básico e ambientais, política de financiamento e subsídios de saneamento, planejamento, regulação, normatização e gestão da aplicação de recursos em politicas de saneamento básico e ambiental, participação na formulação das diretrizes gerais para conservação dos sistemas urbanos de água e para adoção das bacias hidrográficas como unidades básicas do planejamento e gestão do saneamento (interpretação sistemática do art. 20, incisos II ao VI da MP 1.154/23 c/c art. 1, incisos II a VI do Anexo I do Decreto Federal 11.333/23).
No âmbito destas modificações, foram recriadas no Ministério das Cidades, a Secretaria-Executiva e seus respectivos: (i) Departamento de Gestão Estratégica e Informações Urbanas e (ii) Departamento de Extinção da FUNASA, bem como a Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental, com seus respectivos: (i) Departamento de Repasses e Financiamento, (ii) Departamento de Saneamento Rural e de Pequenos Municípios, e, (iii) Departamento de Cooperação Técnica, que receberam, por transferência, uma série de competências antes incumbidas à Agência Nacional de Águas e Saneamento – ANA, como também à Fundação Nacional de Saúde – FUNASA (ora extinta). Haverá, portanto, uma articulação entre tais secretarias, gerando, assim, a segunda mudança significativa. (interpretação sistemática do art. 65 da MP 1.154/23 c/c art. 1; art. 2 §§ 1º e 2 da MP 1.156/23 c/c art. 2, inciso I, alínea “J”, itens 2 e 3; art. 12, incisos IX; art. 14, incisos I e VI; art. 15, incisos I e IV; art. 22, incisos I ao XXXI; art. 23, incisos I e II; art. 24, incisos I ao V e art. 25, incisos I ao XIX, todos do Anexo I do decreto Federal 11.333/23).
Percebe-se assim, que tais mudanças demonstram a clara intenção do Governo Federal em repartir as diversas competências do setor do saneamento básico entre as Secretaria-Executiva e Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental, seja retirando e/ou replicando as que competem à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico – ANA ou, ainda, transferindo as da extinta Fundação Nacional de Saúde – FUNASA.
Neste sentido, inclusive, destaca-se a terceira mudança significativa – que trouxe o maior alvoroço ao setor do saneamento – na medida em que a alteração da lei Federal 9.984/00, que criou a ANA, retirou do nome da agência, as palavras “Saneamento Básico” e a finalidade de “instituir normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico” (art. 60 da MP 1.154/23).
Embora a retirada do nome e da finalidade supramencionada, aliada a superposição de várias competências entre órgãos governamentais, gere algumas incertezas, trazendo possíveis riscos a estabilidade e a segurança jurídica do setor – com probabilidade de danos irreversíveis a toda população brasileira de usuários e destinatários do saneamento básico, por falta de atratividade e investimento do mercado, que poderá obstaculizar a consequente universalização – vislumbramos uma possível alternativa jurídica.
A imprecisão técnica e a interpretação literal de forma isolada do conteúdo do art. 60 da Medida Provisória 1.154/23, não tem o condão necessário para retirar totalmente da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico – ANA sua competência de instituir normas de referência para regulação dos serviços públicos de saneamento básico, conforme definido pela lei Federal no 14.026/20 – Novo Marco Legal do Saneamento Básico.
Isto porque, em que pese normas de referência tenham sido também atribuídas à Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental, o nome completo da agência permaneceu incólume no mesmo diploma legal de criação da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico – ANA, bem como no Decreto Federal que vinculou a referida agência ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Além disso, a referida agência reguladora também manteve a competência para instituição de normas de referência na regulação dos serviços públicos de saneamento básico, razão pela qual existirá uma superposição de competências (interpretação sistemática dos arts. 1, 4-A e 4-B, com seus respectivos parágrafos e incisos da lei Federal 9.984/00 c/c art. 2, inciso IV, alínea “d” do Anexo I do decreto Federal 11.349/23).
E mais. Para complicar a complexidade do tema, a última mudança significativa, ao alterar a lei Federal 11.145/07 – Marco Legal do Saneamento – transferiu para o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, outras tantas competências da ANA, dentre elas, a de estabelecer a metodologia e periodicidade do sistema de informações sobre os serviços públicos de saneamento básico – SINISA (art. 64 da MP 1.154/23). Como lidar então com essa dificuldade?
A questão de superposição de competência, especialmente em relação a programas, ações, políticas setoriais, políticas de financiamentos, planejamento, regulação, normas de referência e controle, embora complexa, por gerar prováveis confusões e possíveis decisões divergentes entre órgãos, tem uma alternativa jurídica que não é incomum na Administração Pública.
Abre-se antes um parêntese, para destacar que, via de regra, a centralização imposta nas Medidas Provisórias e Decretos Federais pelo Governo Federal, através da transferência das competências da ANA e da extinta FUNASA (órgãos da Administração Pública Indireta), para atribuição conjunta das Secretaria-Executiva e Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental (órgãos da Administração Pública Direta), não é recomendável, por não se tratar da melhor técnica e escolha para realização das atividades de regulação, controle e fiscalização.
Desde a reforma administrativa da década de 90, o Brasil faz o caminho inverso, qual seja, a descentralização e delegação das atividades estatais de regulação, normatização, controle e fiscalização dos mais importantes setores da economia para agências reguladoras, visando, em tese, uma maior autonomia e independência de gestão da atividade estatal, baseada em critérios técnicos na busca de maior eficiência dos serviços públicos prestados e para gerar maior segurança jurídica aos setores, devido conferido à gestão mandatária sem interferência política (art. 21 da lei Federal 13.848/19).
Isto não impede, contudo, que, excepcionalmente, a regulação, normatização, controle e fiscalização sejam feitas de forma centralizada, utilizando-se do instituto da concentração administrativa, para atuação conjunta de órgãos da Administração Direta e Indireta, o que não se mostra como a técnica ideal, mas tampouco representa ilegalidade.
Em razão disso, para que não existam decisões divergentes entre os órgãos da Administração Direta (Secretaria-Executiva e Secretaria de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades, bem como do Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática) e da Administração Indireta (Agencia Nacional de Águas e Saneamento Básico – ANA), a fim de apaziguar os pontos mais conturbados, e para que não haja, ainda, a volatilidade das ações das empresas de saneamento no mercado – o que pode afastar os investimentos privados do setor – vislumbra-se, como alternativa, a criação de estrutura e/ou grupo de trabalho interministerial, com articulação e interoperalidade entre os órgãos envolvidos, para que as decisões sejam convergentes e deságue na edição de atos conjuntos, assim como ocorre em diversos casos no governo, através de Portarias Ministeriais Conjuntas.
Por fim, ressaltamos que o mais adequado e técnico, seria o retorno ao status quo ante, com os reparos eventuais cabíveis, mas caso isso não aconteça – como até o momento da edição do presente artigo não ocorreu – pugnamos para que esta interoperalidade de competências seja feita com a composição de pessoal altamente técnico, visando a manutenção da busca pela eficiência regulatória, normativa, de controle e fiscalização.