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Caso GameStop: a regulação do mercado de capitais dois anos depois

Tanto aqui quanto em crises anteriores, a qualidade das respostas regulatórias depende, em larga medida, do entendimento do que levou à crise e de para onde será preciso ir a partir de então.

9/2/2023

O Caso GameStop foi daqueles raros eventos de mercado que transbordam a imprensa especializada a ponto de chamar atenção do restante da sociedade.

A maioria deve lembrar da multidão de investidores que compraram ações da GameStop com o objetivo de elevar o preço e assim impactar os grandes fundos de investimento que apostavam na queda do preço dessas mesmas ações. Para recordar os detalhes técnicos do caso, Otávio Yazbek (ex-diretor da CVM) publicou um ótimo artigo na altura dos acontecimentos.

Passados dois anos, resta a pergunta: quais os efeitos do Caso GameStop e as reflexões consequentes sobre a regulação do mercado de capitais?

A indagação parte do princípio de que eventos desse porte tem o condão de alterar os paradigmas regulatórios vigentes. Ainda mais quando o evento marca a culminância de um processo que caracteriza um conjunto de revoltas ao longo deste século.

Revoltas contra o “mercado”, representado pelos grandes investidores e instituições financeiras, não foram inauguradas pelos membros do WallStreetBets (fórum virtual onde os investidores arquitetaram a compra das ações da GameStop). Já em 2000, duas mil pessoas protestaram na sede da Bovespa em São Paulo com tintas e pedras arremessadas na instituição. Uma década depois (2011), o Occupy Wall Street tomou uma praça do centro financeiro de Nova York com o lema We are the 99%, enquanto o 1% representava os membros do sistema financeiro. Mais recentemente (2021), o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) ocupou o salão da B3 (a bolsa brasileira), onde estenderam uma bandeira do Brasil com a palavra “FOME”.

As razões dessas manifestações são ambíguas e parecidas entre si. Há bons motivos (como a percepção de que os players manipulam as regras em benefício próprio, a exemplo do que assistimos em Inside Job) e outros péssimos (como a incompreensão do importante papel desempenhado pelo sistema financeiro, muitas vezes associado à mera “especulação”).

Com o Caso GameStop não foi diferente. Os usuários do WallStreetBets tinham a legítima impressão de que o sistema financeiro, tal como favorecido pelo socorro governamental meio à crise de 2008, estaria gozando de estímulos semelhantes durante a pandemia em detrimento do restante da população. Sendo que os distúrbios provocados pela negociação das ações em manada, embora passem uma mensagem, minam a confiança no mercado, sem a qual os poupadores não se sentem à vontade em investir a poupança nas empresas listadas.

A novidade é que os usuários do WallStreetBets descobriram que um ataque ao sistema financeiro é pouco efetivo enquanto mira um alvo físico. A revolta encontrou melhor expressão ao se inserir nas malhas do próprio mercado por meio da negociação de ações.

Surpreendente ou não, ficou claro que há tantos manifestantes em mobilizações quanto investidores nos mercados, o que é efeito direto da democratização do acesso ao mercado em tempos recentes. Ocorreram, quase simultaneamente, a eletronificação das plataformas de negociação (com home brokers operados através de smartphones), o barateamento das operações (corretoras como Robinhood deixaram de cobrar taxa de corretagem) e a explosão de fóruns virtuais com discussões sobre ativos e estratégias de investimento (sendo WallStreetBets o mais famoso deles).

Nessa conjunção entre revolta e tecnologia, estão as duas características que justificam o caráter disruptivo do evento: por um lado, a sincronização da conduta de milhares de investidores por redes sociais a ponto de torná-los capazes de produzir verdadeiros choques no mercado; e por outro, o investimento com o objetivo principal de expressar um ponto de vista, e não obter lucro (o chamado “expressive trading”, como denominaram John P. Anderson, Jeremy Kidd e George A. Mocsary).

Assim surgiu a suspeita de que o modelo regulatório vigente não seria mais suficiente para conferir proteção ao investidor e assegurar a existência de um mercado confiável. A SEC, reguladora do mercado norte-americano, foi desafiada à medida que ganhava força a ideia de um novo paradigma regulatório, tal como em crises anteriores.

Vale lembrar como a crise de 1929 revelou um mercado pouco informado e com excessivas fraudes e manipulações, inspirando a criação de um órgão federal com atribuição de regulamentar e fiscalizar as atividades no mercado (a SEC), bem como a adoção do modelo de regulação baseado na ampla e obrigatória divulgação de informações aos investidores, o chamado full and fair disclousure. Já a crise de 2008 escancarou uma quantidade surpreendente de produtos e serviços que não eram facilmente enquadrados em um segmento específico do mercado (pois envolviam simultaneamente aspectos típicos dos mercados bancário, de capitais e de seguros), compelindo a adoção de regras de supervisão prudencial e sistêmica (típicas do mercado bancário e de seguros) pelo regulador do mercado de capitais.

Também agora, o Caso GameStop gerou a expectativa de que a SEC procederia uma revisão das regras do mercado. O que decerto incluiria temas como exigências ao intermediário em seu papel de gatekeeper, limitações prudenciais ao número de ações que uma companhia pode ofertar em empréstimo, restrições à “gameficação” das plataformas de home brokers com estímulos nocivos a condutas dos investidores, vedação à venda das ordens dos clientes pelas corretoras a terceiros (o denominado payment for order flow), criação de novos instrumentos repressivos, entre outras.

Só que dois anos após o evento, as reformas propostas pela SEC não endossam transformações profundas. O regulador americano parece dobrar a aposta em regras de full and fair disclousure, a julgar pelas propostas que pôs em discussão e cujo principal objetivo é aprimorar as informações divulgadas aos investidores. Exemplos disso são as propostas que versam sobre exigências informacionais em operações de empréstimo de ações,  transparência em relação aos valores ganhos pelas corretoras por meio da venda das ordens dos clientes a terceiros, obrigação dos fundos de investimento em prestar informações e justificar aos cotistas sobre como votaram nas assembleias das companhias investidas, e imposição de deveres informativos às companhias em relação a aspectos ESG.

Ao contrário das expectativas iniciais, o Caso GameStop não chegou a inspirar uma reforma propriamente, limitando-se ao aprimoramento do modelo vigente. Ao menos quatro motivos explicam a ausência de transformações regulatórias mais profundas:

(i) A pressão da sociedade sobre o regulador foi menor do que em crises anteriores visto que, diferente de 1929 e 2008, o Caso GameStop impactou o bom-funcionamento do mercado só que não a ponto de afetar a economia norte-americana como um todo;

(ii) A constatação de que o evento não evoluiu para fenômenos ainda mais delicados, ao contrário do previam alguns comentaristas (como Sergio Ricci e Christina Sautter) de que os membros do WallStreetBets chegariam ao ponto de fazer valer os direitos de acionista para votar assembleias e assim influenciar os rumos da GameStop ou qualquer outra companhia em que decidissem investir conjuntamente;

(iii) Os riscos em propor medidas que aumentem os custos associados ao mercado de capitais, tendo em vista a concorrência enfrentada tanto para atrair os investidores (que podem recorrer a outros ativos que não fazem parte do mercado de capitais, como as criptomoedas), quanto para atrair as companhias (que cada vez mais recorrem a outros meios de financiamento, como fundos de private equity). Essa foi a razão pela qual o chairman da SEC, Gary Gensler, abriu mão da ideia de proibir a venda de ordens dos clientes a terceiros já que o lucro obtido nessas vendas é o que garante a política de corretagem zero dessas mesmas corretoras; e

(iv) A dificuldade em pensar alternativas tendo em vista que as características do Caso GameStop desafiam os dos pilares do modelo regulatório vigente. Basta ver que a eficiência do mercado (e a própria ideia de que o mercado é, alguma medida, autorregulável) está fundada no pressuposto de que os indivíduos tomam decisões de investimento racionais e dosam as suas condutas por estarem sujeitos aos riscos financeiros, o que não se aplica da mesma forma no caso em que os investimentos visam outros fins que não a obtenção de lucro.

Tanto aqui quanto em crises anteriores, a qualidade das respostas regulatórias depende, em larga medida, do entendimento do que levou à crise e de para onde será preciso ir a partir de então. Se dois anos não foram suficientes para tal entendimento, desta vez diz mais sobre o tamanho das incertezas do que a inteligência dos reguladores.

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