O STF e o Mandado de Injunção – Aplicação ao direito de greve no serviço público
Gustavo Hasselmann*
As anotações que fizemos no aludido artigo sobre a evolução jurisprudencial do instituto em tela, protagonizada nesses dois MIs pelos ilustres Ministros da excelsa Corte Suprema, parece que, à vista da maioria já formada no dia 12 de abril p. passado na esteira dos votos condutores, ganhou foros de realidade.
Com efeito, após os votos dos relatores nos mencionados MIs, S. Exas. Ministros Gilmar Mendes e Eros grau (este adequou o seu voto às razões expendidas pelo outro ilustre Relator, com contemperamentos na aplicação da Lei 7.783/89 -clique aqui, perfilhando ambos, ao fim e ao cabo, o entendimento de que, para colmatar a lacuna inconstitucional do Congresso nacional, ao não regular, passados quase 19 anos, o direito de greve no serviço, para servidores civis, com a aplicação da citada Lei), o voto-vista do Ministro Lewandowski, que abriu parcial divergência, conformou-se no sentido da aceitação da greve no serviço público, todavia sem a aplicação da Lei de Greve nº 7.783/89, para trabalhadores da iniciativa, autorizando, ademais, corte de dias não trabalhados e ressalvando os serviços públicos essenciais.
Após o voto – vista do Ministro Lewandowiski, objetou o Ministro Gilmar Mendes, que já havia votado como Relator em uma das citadas ações constitucionais, com o argumento de que Sua Exa., que lavrara o voto-vista, estaria contribuindo para uma anomia, na medida em que pugnava por solução que concorreria para um vazio legislativo, dando azo à selvageria. Obtemperou, ademais, que a aceitação do direito de greve no serviço público sem regulação alguma, é dizer, sem limites ou peias, como propugnado no voto - vista, atenderia anseios, de um lado, do governo, que deixaria, por interesses políticos, egoísticos e secundários, de reconhecer o próprio direito constitucional de greve no serviço público, à mingua de regulação específica, e, de outra banda, aos respectivos sindicatos dos servidores, que abusariam, com espeque na “ lei da selva”, expressão cunhada por Sua Exa. Gilmar Mendes, da greve no serviço público, velando por interesses meramente corporativos.
Ao depois, não sem antes aduzir que seria temerário decidir-se definitivamente, naquela assentada de 12/04/07, sobre o assunto, na medida em que o Congresso teria agendado reuniões para tratar do tema nas semanas próximas vindouras, o Ministro Joaquim Barbosa pediu vista dos autos.
De forma judiciosa, visando coibir a mora que seria, agora, não do legislativo, mas sim do STF, os Ministros objetaram que não seria o acaso de aguardar-se tais reuniões no legislativo, mercê do inadimplemento omissivo, gritante e chapado do legislativo, por quase 19 anos, no trato da matéria, que configuraria abuso do dever - poder de legislar, caracterizando autêntica omissão inconstitucional. Ainda assim, Sua Exa. manteve o seu pedido de vista, em relação ao que, ato- contínuo, quase todos os Ministros anteciparam seus votos, em abono aos dos Relatores, notadamente o brilhante voto do Ministro Celso de Mello, com incursões profundas no Direito Constitucional pátrio e alienígena.
Impende assinalar, conquanto sabido e ressabido de todos, que o mandado de injunção é uma ação constitucional vocacionada para dar efetividade e concretude aos direitos e garantias individuais e sociais, nacionalidade, soberania e cidadania (art 5º, LXXI, da CF -clique aqui) à mingua da omissão notadamente do legislador constituído, que recebera a incumbência – mediante, no caso em exame, norma de eficácia contida – por parte do poder constituinte de colmatar lacunas na CF.
No caso, a mora do Congresso Nacional dista de mais de 18 anos da promulgação da Carta política de 1998, provocando grave vazio legislativo, verdadeira anomia, gerando problemas de toda ordem, inclusive insegurança jurídica.
Volvendo ao caso em apreço, com o pedido de vista do Ministro Joaquim Barbosa (aqui remetemos o amigo leitor para o artigo que fomos brindado com sua publicação nesse respeitável site jurídico, intitulado, “O abuso no pedido de vista nos julgamentos rumorosos e relevantes do STF” ; o fazemos porque, como naquele artigo pontuado, não vemos razão para, depois de tanto tempo, somado o da mora legislativa com o interregno que medeio o primeiro julgamento das ações e o do dia 12/4/07, pedir-se prazo para discutir assunto por demais sabido de todos, discutido nos meios acadêmicos e na mídia, pena aí sim , de incorrer-se em grave anomia, agora protagonizada pelo mais alta Corte do Judiciário), o julgamento foi suspenso com sete votos na esteira dos votos do Relatores, e um do Ministro Lewandowiski, em seu voto-vista, que seguia parcialmente os votos condutores, com as ressalvas acima apontadas, faltando, ainda, os votos dos Ministros Marco Aurélio e Ellen Gracie. Vê-se, pois, que, sejam quais forem os teores dos votos faltantes, a questão já está decidida, marcando significativa evolução na jurisprudência do STF.
De fora parte o caso em exame, tal julgamento, nos aspectos filosóficos e sociológicos, sinaliza. --- ao contrário do procedimentalismo e da democracia estritamente formal preconizada , dentre outros, por Habermas, criticado acerbamente por Lenio Luis Streck, pelo menos no seu entendimento inicial (dele Habermas) ,em sua primorosa obra “Verdade e Consenso” Lomen Júris, 2006 -- para um ativismo judicial moderado, ou como querem alguns, substancialismo ou conteudística, segundo o jurista Marcelo Neves, tornando o direito mais próximo dos sistemas sociais que o circundam e com ele interagem (política, economia, sociologia etc), na esteira da visão de Niklas Luhmann, notadamente na obra “Do sistema Social à Sociologia Jurídica.
Com efeito, se a democracia de cariz procedural ou formalista -- assentada em procedimentos levados a efeito em especial pelo parlamento, numa suposta e irreal comunicação dos atores sociais, se omite e silencia --, não vemos razão para que da mesma forma proceda o Judiciário, que, à vista de tão gravosa omissão legislativa, em antinomia flagrante com a realidade fenomênica, deixaria de suprir tal lacuna legislativa. O proceder do STF vem, para nossa felicidade, na contra-mão do que Marcelo neves denomina de constitucionalismo simbólico.
O Ministro Gilmar Mendes, estudioso do Direito Alemão, cujas lições, com os devidos contemperamentos, têm sido muito útil ao nosso, salientou que não se estava, no caso em tela, adotando um protagonismo legislativo pelo STF. De revés, caminhava-se para uma solução de meio, moderada, na medida em que, deixando–se de lado e rompendo - se com a tese ineficaz -- de há muito prevalecente, na Corte, encabeçada pelo ilustre Ministro aposentada Moreira Alves e também pelo não menos insigne Sepúlveda Pertence -- de simplesmente fazer-se, sem sucesso nenhum, apelo ao legislador para que edite a lei. No caso, repita-se, já se vão quase 19 anos sem que o Congresso edite a lei no particular, que, frise-se, originariamente complementar, passou a ser ordinária.
Seria um grande desrespeito trilhar caminho diverso ao que ora palmilha o STF, na medida em que se faria sobrepujar sobre a vontade do constituinte originário, que reconheceu o direito de greve dos servidores públicos civis, a vontade do legislador ordinário.
Não vemos nessa decisão, permissa vênia dos que em contrário pensam, nenhuma usurpação de poder ou maltrato à teoria da separação de poderes. Como se sabe e se propala a todos os cantos, na prática e nos meios acadêmicos, não existem fatos e normas senão interpretados e aplicadas. O direito é, efetivamente, o que resulta da sua interpretação e aplicação, daí a diferença, ensinada em suas obras doutrinárias, pelo Ministro Eros, entre texto e norma. Já se disse, com muito acerto, que a Constituição é o resultado da interpretação e aplicação que emanam da suprema Corte acerca de suas normas, observados todos os condicionamentos sociais, políticos e econômicos.
Interpretar, ademais, é ato de vontade política, sobretudo em se tratando de uma Corte Suprema, cuja atividade tem conotações assaz políticas. É claro que aqui não se está a defender, como na jurisprudência de valores, segundo alguns a interpretam, que tudo se pode fazer em direito, ou ainda, que aos julgadores se conferem poderes absolutos, sem limite nenhum. Tal absurdo faria ruir o próprio alicerce do Estado Social e Democrático de Direito.
Existem limites, inclusive lingüísticos, traçados no próprio texto normativo. Ademais, sendo o direito um objeto histórico – cultural, a realidade social, em suas variadas matizes, limitam os julgadores. Por fim, vivemos a era dos princípios, sobretudo os constitucionais, sem olvidarmos, ainda, que, segundo nosso entender, o constituinte originário, até mesmo ele, ao contrário do que ainda se ensina nos manuais, não é totalmente incondicionado, submetendo-se, em larga medida aos embates e vicissitudes da realidade social, aos valores nela assentes, inclusive no plano internacional, notadamente num cenário de globalização, como sói acontecer com os direitos humanos.
O próprio Ministro Gilmar Mendes asseverou, no citado julgamento, que o STF, na utilização da interpretação conforme, sem incorrer em protagonismo legislativo, cria, efetivamente, o Direito Constitucional a todo o momento.
Apenas alguns aportes finais:
A posição tradicional, no caso mandado de injunção, do apelo ao legislador, encampada desde as primeiras horas, em detrimento da força normativa da CF, pelo STF, inclusive pelo competente Ministro do STF --- com certeza um dos seus melhores quadros, às vésperas, lamentavelmente, de se aposentar, arrastado pela malfadada compulsória, num momento de grande maturidade intelectual, em que muito poderia ainda servir ao País -- parece que será definitivamente sepultada, frise-se, em casos em que a mora legislativa é teratológica e que, pelo menos nos dias que correm, o STF não parece pretender assumir a condição de protagonista legislativo, legislando, efetivamente. Justiça seja feita ao ministro Pertence, que nesse sentido evoluiu, para aceitar a supressão de lacunas, em hipóteses tais, pelo STF.
A solução que acabou prevalecendo, e seguramente vai ser confirmada ao fim e ao cabo, é de que, em casos excepcionais, o STF pode suprir a lacuna de norma regulamentadora sem legislar ativamente (parece uma aporia), mas cun granu sallis.
Cabe, ainda, para arrematar, uma visão crítica à passagem nuclear do voto-vista do Ministro Lewandowisk, não trazida à baila na discussão fecunda travada naquela assentada.
È que Sua Exa., calcado em ensinamentos, inclusive, de Norberto Bobbio, tocante ao emprego da analogia no caso em exame, que, ao seu sentir, seria descabido. O ministro Eros, de seu turno, assinalou que o seu voto não tinha, em absoluto, lastro na analogia, mas na própria CF. Apenas para achegas ao comentário do ministro Eros, cabe uma advertência crucial: não se cuida, efetivamente, de raciocínio analógico, no caso em tela, pois pensar-se o contrário seria interpretar a CF a partir da Lei ordinária, no caso a LICC, mesmo sendo esta uma lei sobre e para leis, equivoco a todo momento rechaçado pelo STF.
Destarte, representa essa decisão, vale repetir, um marco, divisor de águas, muito relevante no direito brasileiro, talvez menos para o caso em exame e mais para instilar e acicatar a força normativa da constituição, importante sobretudo em estados periféricos e desenvolvimento tardio, como o nosso, nos quais, minimamente, o Wefare State foi implantado.
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*Procurador do Município do Salvador e advogado militante
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