Quando da promulgação da atual Constituição Federal, não poderia ser mais atuais e felizes as palavras do Presidente daquela Assembleia Nacional Constituinte, o Deputado Ulysses Guimarães: “A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério. Quando após tantos anos de lutas e sacrifícios promulgamos o Estatuto do Homem da Liberdade e da Democracia bradamos por imposição de sua honra. Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo”.
Transcorridos mais de 34 de vigência da Constituição da República de 1988 que restaurou a normalidade democrática no Brasil, após longos anos de ditadura militar, vivenciamos estarrecidos no dia 08 de janeiro de 2023, cenas de vandalismo e aberto terrorismo praticados no Distrito Federal. O mais destacado é somos obrigados a constatar omissão de autoridades das forças de segurança nacionais e do Distrito Federal. Os atos criminosos e golpistas se organizaram durante toda a semana após o início de novo mandato presidencial, eram de amplo conhecimento sua preparação e seu caráter golpista. Quem pede intervenção federal militar e não aceita o resultado democrático de eleições limpas e segura só pode receber a qualificação de golpista. Exatamente porque não aceita a legalidade civilizatória da democracia.
Atos criminosos e golpistas, sim, que atentaram não apenas contra os prédios do Palácio do Planalto, do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional. Para além da invasão e depredação à integridade física das sedes dos Poderes Constituídos, diversos bens tombados que compõem o patrimônio público, o patrimônio histórico-cultural do Brasil foram destruídos, danificados e saqueados. Se os danos materiais são ainda incalculáveis, os danos e prejuízos imateriais são inestimáveis. Perde-se, ou melhor, despoja-se uma grande uma parte da alma do Estado Brasileiro.
Mas não é só. A integridade moral do país foi violentada, exposta a todos os cantos do mundo. O Estado Democrático de Direito foi ultrajado. Gravíssima afronta à dignidade da Nação Brasileira. Um dia para que não se esqueça e para que não se subestime forças políticas que não se submetem à democracia. As lições que a história nos mostra servem de advertência para todos, e trazem a convicção de que a necessidade de uma democracia que defenda a si própria é uma tarefa de todos nós. Por esta razão, não há como deixar de aplicar o devido processo legal e as penalidades legais previstas contra os perpetradores, planejadores, apoiadores do que ocorreu em Brasília em 8 de janeiro de 2022.
Por tais razões, enxergamos na criação de instituições de defesa da democracia mais que uma tarefa bem-vinda: é necessária. O constitucionalismo brasileiro atual se debate com tema que desafia a quase todas as democracias mundiais, isto é, sobre o que é liberdade de manifestação de pensamento e o que é incitação ao crime. Este último não se acha protegido pela primeira. Desde a Resolução 23.714, de 20 de outubro de 2022, do Tribunal Superior Eleitoral, está vedada “a divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos”. Já temos sinalizações de que não há como conviverem desinformação e mentiras com democracia. Ao contrário: aquelas são as autoras da morte desta. Quando uma sociedade assiste ao assalto contra sua democracia sem qualquer resistência institucional, o caminho está pavimentado para a destruição da mesma democracia. São estas lições que tiramos do século XX e de suas tragédias que bem se demonstraram em duas guerras mundiais. Não se trata somente de destruição da democracia política, com igualdade de todos prante a lei e processos decisórios de ampla participação. O que se extingue também é a democracia econômica, que confere dignidade material às sociedades, com graus de menor desigualdade entre cidadãos e cidadãs. É forçoso e urgente, então, que as instituições e autoridades públicas atuem, de forma incisiva e enérgica nas searas civil, administrativa, política e penal, contra todos os envolvidos, quer através de atos comissivos ou omissivos e de qualquer ordem tenham contribuído para a busca fracassada de fim à democracia brasileira. O futuro do Brasil dependerá, e muito, do que será feito no presente em relação ao passado no dia 08 de janeiro de 2023.
Finalizamos este pequeno escrito com a Nota de Repúdio da Associação Nacional dos Procuradores Municipais, lembrando sempre de Ulysses Guimarães:
“A Associação Nacional dos Procuradores Municipais – ANPM, entidade que representa as Procuradoras e Procuradores Municipais, com mais de 20 mil profissionais em todo o país e composta por mais de 94 associações locais e regionais, vem repudiar a criminosa invasão e depredação dos prédios públicos sedes dos Poderes Constituídos – Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário – perpetradas no dia de hoje, 08 de janeiro de 2023, em Brasília.
Tais condutas, muito longe de configurarem liberdade de expressão e de manifestação, constituem-se atos golpistas, porquanto atentam contra valores democráticos e a própria República Federativa do Brasil, e terroristas, vez que fazem uso da violência e da covardia.
Urgente e imprescindível que todas as pessoas envolvidas, quer através de atos comissivos ou omissivos, sejam exemplarmente responsabilizadas, sob pena de corrosão irreversível da ordem institucional”.