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O reconhecimento da multiparentalidade e a teoria da interpretação de Hans Kelsen

A decisão tomada pelo STF ocasionou não apenas o fim de uma das maiores controvérsias do Direito das Famílias, mas, também, trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro um novo arranjo familiar.

11/1/2023

A filiação sofreu uma enorme evolução ao passar do tempo no sistema jurídico brasileiro, especialmente em virtude de que os vínculos de parentesco deixaram de ser apenas genéticos para, além do mais, serem afetivos (LÔBO, 2021), conforme se depreende do artigo 227, § 6º da Constituição Federal (BRASIL, 1988).

Ocorre que a admissão de duas espécies de filiação no Brasil gerou divergências sobre a sobreposição da filiação biológica sob a socioafetiva e vice-versa, em hierarquia jurídica, na doutrina e jurisprudência, até a fixação da Tese de repercussão geral 622 pelo STF (Supremo Tribunal Federal) no ano de 2017 (LÔBO, 2021).

A Tese 622 considerou a igualdade hierárquica entre a filiação socioafetiva e biológica, fazendo, também, surgir a possibilidade de um indivíduo em concomitância possuir duas mães ou dois pais pelo vínculo biológico e/ou socioafetivo, conforme se depreende a seguir: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios” (LÔBO, 2021).

Assim, que de forma inesperada e repentina que foi reconhecido no âmbito jurídico brasileiro um novo arranjo familiar chamado de multiparentalidade, ultrapassando um bloqueio preexistente do tipo binário de filiação, adequando à realidade social atual (LÔBO, 2021).

Essa decisão foi possível diante de que as normas podem ser interpretadas pelo órgão julgador, conforme a Teoria da Interpretação de Hans Kelsen (1998, p. 245).

Consistindo a interpretação: “(...) portanto, uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior” (KELSEN, 1998, p. 245).

Vale ressaltar, que a interpretação do Direito pode ser feita tanto por um órgão jurídico que realiza a aplicação, quanto por pessoa privada, especialmente pela ciência jurídica (KELSEN, 1998, p. 245).

Vale ressaltar, que a ciência jurídica, para Kelsen (1988, p. 250), não detém o poder de criação jurídica, mas sim, é uma pura resolução cognoscitiva, incapaz de preencher lacunas do Direito. Já os órgãos jurídicos detêm o poder de criação jurídica e de preenchimento de lacunas.

Assim, mesmo Marcos Catalan tendo sido o primeiro autor, no ano de 2012, a escrever e ser favorável acerca do instituto da multiparentalidade, sob a justificativa de que o direito brasileiro deveria se adequar as relações familiares da atualidade, baseada em relações pluriparentais (LÔBO, 2021), não foi o suficiente para penetrar tal instituto no ordenamento jurídico brasileiro.

A multiparentalidade só acabou adentrando no sistema pela relação de vinculação entre lei e a decisão judicial, já que o artigo 227, § 6º da Constituição abriu a possibilidade de ser tomada tal decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal em 2017, conforme já mencionado anteriormente. (LÔBO, 2021).

Vale ressaltar, o órgão jurídico tinha várias possibilidades de decisão (KELSEN, 1998, p. 247), como, por exemplo, a filiação biológica ser superior hierarquicamente no âmbito jurídico à filiação socioafetiva, ou a filiação socioafetiva ser considerada superior na hierarquia jurídica à filiação biológica, ou a possibilidade, decidida em Tese de Repercussão Geral nº 622 do STF, que é a igualdade jurídica entre a filiação socioafetiva e filiação biológica, dando abertura a possibilidade de um indivíduo, concorrentemente, pela filiação socioafetiva e/ou biológica, possuir duas mães e/ou dois pais, o que chamamos de multiparentalidade.

Outrossim, vale mencionar, que a concessão, pelo tribunal de última instância, de aplicar a referida e inesperada decisão no mundo jurídico em casos semelhantes é causa de uma interpretação autêntica, geradora de um Direito novo, como já fora referido (KELSEN, 1998, p.250).

Através de uma interpretação autêntica deste tipo pode criar-se Direito, não só no caso em que a interpretação tem caráter geral, em que, portanto, existe interpretação autêntica no sentido usual da palavra, mas também no caso em que é produzida uma norma jurídica individual através de um órgão aplicador do Direito, desde que o ato deste órgão já não possa ser anulado, desde que ele tenha transitado em julgado. E fato bem conhecido que, pela via de uma interpretação autêntica deste tipo, é muitas vezes criado Direito novo - especialmente pelos tribunais de última instância (KELSEN, 1998, p. 250).

Vale mencionar, ainda, que na referida fixação da decisão, por outro lado, se limitou a aplicação do supracitado instituto, tendo em vista, que pela Tese nº 622 do STF, só poderá ser aplicada em caso semelhante ao fruto da decisão judicial, ou seja, quando há a existência da paternidade registral socioafetiva anterior a que se adicionou, em concorrência, a paternidade biológica, cabendo todos os efeitos jurídicos decorrentes da filiação (LOBÔ, 2021).

Ocorre que a doutrina, afirma que a multiparentalidade deve ser aplicada quando respeitado o princípio do melhor interesse, quando houver o consentimento do filho, e quando “(...) se verificar se o pleito pela multiparentalidade contempla interesse jurídico relevante ou é um simulacro para intentar demandas vis, ou meramente patrimoniais” (LOBO, 2021, p. 95).

Contudo, conforme, mencionado anteriormente, o que aduz a Ciência Jurídica não adentra o sistema jurídico, tendo em vista, que a mesma não possui o poder de criação jurídica.

Desta forma, é clarividente que o instituto da multiparentalidade no sistema jurídico brasileiro se deu em razão de uma interpretação autêntica realizada pelo Supremo Tribunal Federal, em prol de preencher a moldura que a Constituição Federal de 1988, e não de maneira vã.

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BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 2016. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf. Acesso em: 04 de jan. 2023.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

LÔBO, Fabíola Albuquerque. Multiparentalidade: Efeitos no Direito de Família. Idaiatuba, SP: Foco, 2021.

Giselly Conrado
Mestranda em Direito pela UFPE. Membro da Comissão da Escola Superior de Advocacia - ESA da OAB Caruaru. Advogada em PE.

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