Em um primeiro momento e a partir de uma perspectiva um tanto quanto superficial, pode parecer estranha a relação entre a Advocacia Pública Municipal e a promoção da igualdade racial.
Contudo, para aqueles e aquelas que efetivamente mostram-se dispostos a (re)pensar o papel do Estado Brasileiro atento aos objetivos fundamentais dispostos no art. 3º, da Constituição Federal – construir uma sociedade livre, justa e solidária; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação: dentre outros –, essa estranheza cai por terra.
Em outros textos publicados nos últimos anos, temos defendido que o fio condutor da Advocacia Pública é ser uma função indispensável de efetivação de direitos fundamentais1-2. E assim o é porque os Procuradores e as Procuradoras Municipais integram uma das funções essenciais à Justiça. E isso implica dizer que o fazer da Advocacia Pública Municipal está intrinsicamente vinculado aqueles objetivos fundamentais disciplinados no citado art. 3º, da Carta de 1988.
Nessa linha, tem-se singular trecho do voto do Ministro Luiz Fux proferido no RE 663.696/MG, processado sob o regime de repercussão geral:
É que os referidos agentes públicos ostentam a missão de assegurar, cada qual no seu âmbito e por intermédio da provocação jurisdicional, todo o tecido de interesses constitucionais, seus valores e princípios. Portanto, são indispensáveis para o resguardo de áreas sensíveis do ordenamento jurídico, mormente no campo da garantia dos direitos fundamentais e na concretização dos objetivos do Estado Democrático de Direito.
E mais. Compreendemos o lugar do município como o microcosmo onde a vida acontece em todas as suas dimensões. É no município que os desafios afloram, onde as políticas públicas mais próximas da população se materializam e se tornam imperiosas. Os desafios se agigantam e requerem da Advocacia Pública Municipal ações efetivas na concretização dos direitos fundamentais.
Procuradoras e Procuradores Municipais, pela natureza do ofício e pela dimensão constitucional das suas atribuições, labutam diuturnamente pelo fortalecimento dos municípios, por uma melhor prestação de serviços públicos e por políticas públicas de qualidade.
Se esse conjunto de ideias faz sentido, não podem as municipalidades – e, por via de consequência, a Advocacia Pública Municipal –, passarem ao largo do enfrentamento ao racismo, sob pena de apequenar e esvaziar a promoção efetiva do postulado constitucional da igualdade.
Ora, se as pessoas vivem nos municípios e se são nelas – cidades – onde a vida acontece, o combate ao racismo há de ser também pensado e trabalhado nesses e por esses entes federativos.
A promoção concreta da igualdade racial é um chamado não apenas de reflexão, mas, por tudo e sobretudo, de agir dos municípios através da Advocacia Pública Municipal.
A Advocacia Pública é, portanto, indispensável na construção de uma cidade que absorva os valores de justiça racial. Não há sustentabilidade, discursos de inovações ou ares de modernidade sem que se enfrentem as mazelas do racismo institucional, sobretudo com olhar que examine os problemas de raça3.
Nós, Procuradores e Procuradoras, nos deparamos com grandes desafios no cotidiano da nossa atuação profissional. Orientamos o gestor municipal na concretização de políticas públicas que garantam os direitos fundamentais. Aprofundar na complexidade dos desafios municipais é observar como se erradia o racismo estrutural. Para tanto faz-se necessária uma atuação comprometida, empática, sem universalismos falaciosos. Nesse contexto, é essencial que a Advocacia Pública Municipal se aprofunde nos estudos e discussões quanto a temática para que possa contribuir na construção de práticas antirracistas4.
Exatamente por isso, a Associação Nacional dos Procuradores Municipais, ao seu modo e tempo, vem trabalhando a temática antirracista com intuito de incentivar que os Procuradores e Procuradoras Municipais atuem na construção de cidades mais iguais.
Podemos citar alguns exemplos de medidas adotadas: (i) criação da Comissão Antirracismo; (ii) envio de ofício ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil com a proposta de que no Censo da Advocacia conste campo voltado a perscrutar quantos são os negros e negras que integram a Advocacia Pública Municipal, com o propósito de melhor elaborar políticas públicas de combate ao racismo institucional; (iii) envio de ofícios às Prefeituras encaminhando minuta de projeto de lei de cota racial em concursos públicos municipais; (iv) realização de curso “Antirracismo e o Papel da Advocacia Pública” com o jornalista e escritor Laurentino Gomes, com a Promotora de Justiça da Bahia Lívia Sant’Anna, com o Procurador do Município de Mauá Irapuã Santana, com a Procuradora Federal Chiara Ramos, dentre outros; (v) a instituição da Premiação Esperança Garcia para homenagear e estimular a adoção de boas práticas relativas à promoção de igualdade racial nos municípios, no âmbito das Procuradorias; (vi) a criação da área de interesse “Antirracismo” no Congresso Brasileiro de Procuradoras e Procuradores Municipais – CBPM.
E, por ocasião dos Congressos Brasileiros de Procuradoras e Procuradores Municipais, seja na modalidade virtual em 2021, seja presencialmente realizado neste ano de 2022, tivemos a oportunidade ímpar de debater e aprovar os seguintes enunciados:
Enunciado 367 (AI VII): LEI DE COTAS RACIAIS. MUNICÍPIOS. CRITÉRIOS. PERCENTUAL MÍNIMO. FENOTÍPICO. O município deve implementar lei de cotas raciais com os seguintes critérios: I - Percentual mínimo, a partir de 20%, como cotas para ingresso de candidatos negros em concurso ou seleção pública, em atenção ao direito fundamental da igualdade. II - Fenotípico e não de origem genética, como de inclusão do candidato beneficiário da cota racial, devendo ser verificado através de heteroidentificação, preferencialmente, por entrevista presencial, respeitando a dignidade da pessoa humana e o princípio do contraditório e da ampla defesa.
Enunciado 368 (AI VII): CONCURSO PÚBLICO. RESERVA DE VAGAS. CRITÉRIOS. Nos concursos públicos sujeitos à sistemática de reserva de vagas para candidatos negros, os critérios de alternância e proporcionalidade serão respeitados em todas as etapas do certame, aplicando-se à convocação e à nomeação dos aprovados no cadastro de reserva, e produzirão efeitos durante toda a carreira funcional do beneficiário, inclusive no momento da escolha da lotação inicial, conforme previsão editalícia.
COTAS RACIAIS. OBRIGAÇÃO E BOA PRÁTICA. EFETIVAÇÃO. É dever e constitui boa prática de combate ao racismo na Administração Pública a reserva de cotas com critério racial, com, no mínimo, 20% das vagas, em concurso ou seleção pública, com fulcro na Constituição Federal (art. 3º), na Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância ratificada com status de emenda constitucional pelo Decreto 10.932/22 e no Estatuto da Igualdade Racial (lei 12.288/10).
COMISSÃO DE HETEROIDENTIFICAÇÃO. COMBATE A FRAUDES. A Comissão de heteroidentificação é constitucional, ratificada pelo julgamento da ADPF nº 186 do STF, sendo mecanismo imprescindível que contribui para implementação das políticas afirmativas em seleções ou concursos públicos e promove que as cotas raciais sejam realmente preenchidas por negros e negras, por meio da avaliação das características fenotípicas do candidato, além de importante mecanismo de combate a fraudes, devendo-se obedecer aos seguintes critérios:
- Autodeclaração prévia do candidato na condição de negro (preto ou pardo).
- Análise e verificação presencial do fenótipo do candidato e não por ascendência.
- Parecer ou resposta fundamentada, após verificação fenotípica presencial, sobre o enquadramento, ou não, do candidato como negro (preto ou pardo).
- Recomendação de que seja observada a participação, na comissão de verificação, de pessoas oriundas das organizações não governamentais voltadas para o combate ao racismo e de reconhecida representatividade local;
- A verificação da falsidade da autodeclaração é etapa seletiva que pode gerar a eliminação de candidatos, devendo, por conseguinte, ocorrer, se não preliminarmente às provas, logo após a primeira etapa de avaliações, sob pena de prejudicar a permanência de candidatos efetivamente negros no certame.
Os enunciados aprovados no CBPM visam a uniformização de entendimento e servem de orientação à atuação dos Procuradores e Procuradoras nos municípios brasileiros.
Eis, portanto, nossa modesta contribuição para o debate e no que concerne ao nosso fazer na atuação pública, sempre lembrando que as Procuradoras e Procuradores Municipais “(...) também atuam para a preservação dos direitos fundamentais e do Estado de Direito” (RE 663.696/MG – repercussão geral – TESE 510 do STF).
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1 Dia Nacional da Advocacia Pública: celebração e reflexão
2 Importância da vida associativa e o lugar da advocacia pública municipal
3 Sobre a importância do Julho das Pretas
4 Sobre a importância do Julho das Pretas