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Breve overview do marco legal dos criptoativos

A solução posta pelo legislador para além de ser a possível, nos parece a mais acertada para o atual momento de debate in terra brasilis.

6/12/2022

Semana passada1 tivemos a notícia de aprovação do "Marco Legal dos Criptoativos". Não há como se negar se tratar de um marco no ecossistema de criptoativos, principalmente por sua representatividade. Presenciamos sete anos2 de avanços, retrocessos, debates e amadurecimento do que seria uma marco legal possível. E, talvez seja isso que temos em nossas mãos: um diploma resultado do que foi possível se fazer. E não interprete a afirmação pelo lado pejorativo. Muito pelo contrário, aliás: felizmente "possível", inclusive em não engessar já ao nível legal a possibilidade de avanços de empreendimentos no ecossistema de criptoativos. O ponto, reitere-se, é que a aprovação do PL 4201/21 (substitutivo do seu mais antigo 2303/2015) é representativa, posto sinalizar um posicionamento oficial do Estado brasileiro em prol da construção de um ambiente propício ao desenvolvimento de projetos e iniciativas "cripto" sérios. Tal sinalização, aliás, parece fazer coro àquela recentemente feita pela CVM com a publicação do seu3.

Pois bem, se a aprovação do PL (ladeado a outros indícios trazidos pela CVM) nos permite concluir que o Brasil, relativamente ao ecossistema de criptoativos, posicionou-se de forma favorável e aberta à inovação responsável, é possível também se afirmar que o fez de forma inicial e em certa medida tímida, o que nos leva ao comentário inicial de termos por ora o regramento que fora "possível". O normativo que a ser sancionado basicamente estabelece as diretrizes principiológicas a serem observadas pelos prestadores de serviços de ativos digitais quanto pelos órgão reguladores quando da elaboração dos arcabouços infra-legais. Daí porque fala-se que a lei seria principiológica: estabelece os direcionamentos, assim como limites a que o regulador deverá se ater quando produzir as normas de conduta direcionadas aos prestadores de serviços de ativos digital4.

Apertada síntese, é estabelecido a obrigatoriedade de as prestadoras de serviços de ativos digitais terem prévia autorização de órgão ou entidade da Administração Pública federal a ser indicada como o competente a tanto. Tal agente muito provavelmente será o Banco Central do Brasil, mormente se tivermos em consideração que, consoante restou estabelecido no art. 3º do PL, o âmbito regulatório será limitado aos ativos virtuais utilizados "para realização de pagamentos ou com propósito de investimento" (art. 3º caput), aspectos esses já tradicionalmente sob a batuta daquela autarquia federal. E aqui já destaco que o projeto de forma explícita deixou fora de sua alçada regular os ativos digitais quando exercerem a funcionalidade de valores mobiliários (art. 1º, parágrafo único) ou de tokens de utilidade, dando acesso a produtos ou serviços específicos ou a benefícios deles provenientes (art. 3º, III). Relativamente às stablecoins, e aos non-fungible-tokens (NFT), em que pese não tratados no PL, nos parece que, em razão mesmo da natureza híbrida dos criptoativos, acaso exerçam as funcionalidades de tokens de pagamento ou de investimentos estarão sim sob a égide normativa, em razão da redação do art. 3º, caput. Um último comentário conexo a hibridez dos tokens é quanto a ausência de direcionamento quando em pauta prestador de serviços atua tanto com tokens de pagamento quanto com ativos representativos de valores mobiliários: nesse caso, estaria o empreendimento sujeito tanto às normativas do órgão federal a ser indicado (BACEN, provavelmente) quanto da CVM, apenas dessa última, ou teria algum tratamento específico? Não temos tal resposta, de modo a se antever aqui uma das pautas de debates a ser  em breve enfrentada pelos operadores do direito e potenciais reguladores.

Ingressando no objeto e nos destinatários das normas infra-legais a serem estabelecidas,  de se pontuar que o PL traz uma definição conceitual do que seriam ativos virtuais, e faz uso de uma tipológica quanto a quem seriam os prestadores de serviços de ativos virtuais. Destarte, conceitua em seu art. 3º que para os fins legais ativo virtual seria a "representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento". No entanto, esclarece que estão excluídos do referido conceito (i) moedas oficiais (nacional ou estrangeira), (ii) moeda eletrônica, nos termos da Lei nº 12.865/2013, (iii) tokens de utilidade, e (iv) representações de ativos cuja emissão, escrituração, negociação ou liquidação esteja prevista em lei ou regulamento. Já o art. 5º enumera como prestador de serviços de ativos virtuais a pessoa jurídica que execute, em nome de terceiros, pelo menos um dos seguintes serviços: (i) troca entre ativos virtuais e moeda oficial; (ii) troca entre um ou mais ativos virtuais; (iii) transferência de ativos virtuais; (iv) custódia ou administração de ativos virtuais ou de instrumentos que possibilitem controle sobre ativos virtuais; ou (v) participação em serviços financeiros e prestação de serviços relacionados à oferta por um emissor ou venda de ativos virtuais.

Quanto aos princípios-norte do arcabouço a ser erigido, o PL elenca em seu art. 4º os seguintes: (i) livre-iniciativa e livre concorrência; (ii) boas práticas de governança e abordagem baseada em riscos; (iii) segurança da informação e proteção de dados pessoais; (iv) proteção e defesa dos consumidores e usuários; (v) proteção à poupança popular; (vi) solidez e eficiência das operações; e (vii) prevenção à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e da proliferação de armas de destruição em massa. Nesse tópico é de se destacar que o substitutivo encaminhado pelo Senado elencava ainda como diretriz principiológica a segregação patrimonial entre os ativos dos prestadores de serviços e os dos seus clientes. A retirada de tal previsão na versão final aprovada pela Câmara é um dos pontos que maiores debates gerou.

De um lado, tem-se a preocupação, amplificada pelo recente caso da FTX, de que os prestadores de serviços de ativos virtuais uma vez detendo a custódia dos ativos, e na ausência de dever legal de segregá-los relativamente ao seu próprio patrimônio, acabem utilizando-os em operações no mínimo arriscadas. De outro, argumenta-se que dada a variedade de funcionalidades e usos que podem ser dados aos ativos virtuais, impor a necessária segregação pode não só não ser a melhor solução como trazer barreiras desarrazoadas a inovação nesse setor.  Pois bem, é de se ponderar que o fato de inexistir dever legal de segregação patrimonial não significa que os órgãos ou entidades competentes não possam prevê-la, ou mesmo fazer uso de outros mecanismos semelhantes, a fim de garantir os interesses dos investidores via-à-vis oportunizar o desenvolvimento de novos produtos inovadores nos setores regulados5. Os fundos, a custódia de ações, a securitização de créditos imobiliários são exemplos de operações em que o agente regulador - CVM, no caso - exige referida segregação.

Em suma, a solução posta pelo legislador para além de ser a possível, nos parece a mais acertada para o atual momento de debate in terra brasilis. Possível, no sentido de apresentar, o projeto, redação que, justamente por não trazer pontos muito extensos e polêmicos, congregou a maioria necessária a sua aprovação. Mais acertada por transferir ao nível infralegal, e aos entes competentes e especializados a tanto, os debates mais profundos e complexos relacionados ao tema. Assim é que, em realidade, a regulação concreta do mercado de criptoativos está só no seu começo...

____________

1 Mais especificamente, o PL 4401/2021 foi aprovado em 29 de novembro de 2022.

2 Referimo-nos ao projeto anterior, de nº 2303/2015, substituído pelo recentemente aprovado.

3 Disponível em: https://conteudo.cvm.gov.br/legislacao/pareceres-orientacao/pare040.html. cesso em 05 dez. 2022.

4 Exceto os arts. 10 e 12 do PL que ao modificarem o regramento penal já introduzem normas de condutas (vocacionadas a já incidir sobre os comportamentos humanos), a maior parte do projeto foca em estabelecer as diretrizes-quadro, normas de estrutura, para o exercício de competência regulatória ao nível infra-legal.

5 Sobre o assunto vide artigo recentemente publicado nesse portal: CERDEIRA, Pablo. Segregar ou não segregar criptoativos. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/369411/segregar-ou-nao-segregar-criptoativos.

Dayana de Carvalho Uhdre
Doutoranda pela Universidade Católica de Lisboa. Membro Associada da BABEL-Blockchains and Artificial intelligence for Business, Economics and Law (Universidade de Firenze). Membro do Grupo de Estudos da Tributação do Ambiente Digital (TAD) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Professora convidada em inúmeros cursos de pós-graduações. Membro da Comissão de Direito Tributário e da Comissão de Direito Digital e Proteção de Dados da OAB/PR. Procuradora do Estado do Paraná.

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