No Brasil nunca houve uma política pública de enfrentamento ao encarceramento, ao contrário disso, o que se pode notar é que a edição de leis penais mais duras aponta que o cárcere é visto pelos governantes como uma solução para o controle da criminalidade.
É bem verdade que o Estado Legislador editou leis que trazem instrumentos descarcerizadores, como a substituição de penas privativas de liberdade por penas restritivas de direito, a suspensão condicional da pena, a transação penal, a suspensão condicional do processo. No entanto, é possível verificar que esses recursos não têm sido capazes de conter o aumento da população carcerária, pois de tempos em tempos o Poder Legislativo lança mão de leis mais rigorosas no tratamento penal que resultam sempre no aumento do encarceramento, a denotar que no Brasil há uma predileção por uma política segregadora.
A Organização das Nações Unidas (ONU), destacou que somente em 2016 “o total de encarcerados no país chegou a 726.712 em junho de 2016, enquanto o número de vagas no sistema era de 368.049”.
São dados alarmantes que revelam que o cárcere tem sido utilizado pelo Estado como meio de combater a criminalidade.
Ocorre que, apesar do grande aumento de encarceramento verificado nas duas últimas décadas, o índice de criminalidade vem se mostrando cada vez mais elevado, sinalizando que a criminalidade não se combate com prisões. Ao contrário disso, o ambiente de segregação nos presídios do Brasil é uma verdadeira fábrica de criminosos.
Apenas para ilustrar, deve-se recordar que uma das maiores organizações criminosas do Brasil, o PCC (Primeiro Comando da Capital), foi formada dentro de uma penitenciária de São Paulo por um grupo de detentos insatisfeitos com as más condições do cárcere e o (mau) tratamento a eles dispensado.
Abaixo foram destacados três dos 17 pontos do Estatuto do PCC, denotando a organização dessa facção que contém até um manual de regra de conduta a ser seguida pelos seus membros, mas o que se pretende dar ênfase aqui é a motivação para a formação do PCC, que foi justamente a luta por melhores condições no cárcere, que foi descrito pelos membros da facção como “campo de concentração”, conforme mostrado a seguir:
Temos que permanecer unidos e organizados para evitarmos que ocorra novamente um massacre semelhante ou pior ao ocorrido na Casa de Detenção em 02 de outubro de 1992, onde presos foram covardemente assassinados, massacre este que jamais será esquecido na consciência da sociedade brasileira. Porque nós do Comando vamos mudar a prática carcerária, desumana, cheia de injustiças, opressão, torturas, massacres nas prisões.
A prioridade do Comando no montante é pressionar o Governador do Estado a desativar aquele Campo de Concentração, a Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, de onde surgiu a semente e as raízes do comando, no meio de tantas lutas inglórias e a tantos sofrimentos atrozes.
O PCC ultrapassou os muros da Casa de Custódia de Taubaté e se tornou a maior e mais cruel facção criminosa ligada ao narcotráfico do Brasil, atuando, inclusive, em países vizinhos como Bolívia, Paraguai e Colômbia.
É muito grave a questão. O nosso sistema penitenciário reproduziu uma das maiores facções criminosas da América Latina! O PCC foi gerado nas estranhas do Estado, e, mesmo assim, isso não foi suficiente para que se mudasse essa política segregadora.
Torna-se redundante afirmar, que o atual modelo encarcerador não recupera ninguém, ao contrário disso, o que se vê nos presídios brasileiros é que os indivíduos ali segregados são entregues a sua própria sorte, tendo que viver em um ambiente hostil, inóspito, um campo fértil de reprodução da criminalidade.
Luiz Flávio Gomes teceu severas críticas ao nosso modelo encarcerador, que, nas palavras do eminente jurista, a prisão no Brasil é “uma fábrica cara para mais bandidagem”:
Nas nações avançadas de capitalismo evoluído e distributivo, fundado na educação de qualidade para todos (Dinamarca, Suécia, Holanda, Suíça, Japão, Coreia do Sul etc.), as prisões não são fábricas de violência. Ao contrário. A Noruega, por exemplo, recupera 80% dos presos (só 20% de reincidência). No Brasil regido pelo capitalismo extrativista e selvagem, pelo ignorantismo e parasitismo, tudo é invertido. Pagamos caro (cerca de R$ 2 mil mensais custa cada preso) para prepará-lo para os grupos organizados, assim como para nos atacar novamente, quando sair da prisão. Mas estamos “felizes” com essa irracionalidade: fechamos escolas (19%), para construir mais presídios (300%), que convertem criminosos amadores em profissionais e estes em animais selvagens organizados. Seu uso racional os recomenda exclusivamente para os criminosos realmente perigosos. Para os outros, penas alternativas.
A nossa sociedade, movida por um sentimento de vingança, não está preocupada em ressocializar o preso. Ninguém está preocupado com o tratamento dado ao ladrão ou àquele pequeno traficante nos presídios. Aliás, muitos desejam que o preso seja mesmo maltratado, que experimente uma pena cruel, retoma-se o cenário dos suplícios em que o condenado “pagava” a sua pena com a própria carne.
O caráter ressocializador da pena do Brasil é sonegado, tanto pelo Estado, quanto pela sociedade. Entretanto, o que se esquece é que no nosso sistema jurídico-penal não há pena de caráter perpétuo, significa dizer que aquele condenado que cumpriu sua pena em condições degradantes e que não foi submetido a um processo de reintegração social, vai voltar ao convívio com a sociedade e, na maioria das vezes, retornará a delinquir.
Em 2015, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em cooperação técnica com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) realizou uma importante pesquisa sobre o tema.
Trata-se de um relatório acerca da reincidência penal no Brasil elaborado a partir da análise de dados empíricos. (IPEA, 2015)
Inicialmente, o referido trabalho buscou distinguir os conceitos de reincidência abordados em anteriores pesquisas, realizadas também através da análise de outras fontes.
Para o IPEA, a reincidência deve ser representada apenas pelos condenados definitivos que voltam a delinquir, assim, deve-se desconsiderar no quantitativo apurado os presos provisórios. De acordo com o Instituto, o índice de 70% de reincidência só se mostra tão elevado porque considera todos os presos, os provisórios e os que cumprem condenação definitiva.
Por certo, não se deve rotular de reincidentes aqueles presos que retornam ao sistema penitenciário sem que a passagem anterior tenha se dado a título de cumprimento de pena. Em outras palavras, sem condenação definitiva não há reincidência. Isso é o que se depreende do art. 63 do Código Penal.
Portanto, não se deve incluir no fenômeno da reincidência os presos que ingressam no sistema em caráter provisório, no caso de uma prisão preventiva por exemplo. Assim procede, acertadamente, o relatório de pesquisa do IPEA.
No entanto, a questão é bem mais profunda que a dicotomia entre presos provisórios e definitivos. Não se deve fugir à vista o fato de que tanto os reincidentes (com condenação definitiva), quanto os não reincidentes, quando cometem uma nova infração penal e retornam ao sistema carcerário, são todos egressos do mesmo sistema.
Tome-se, por exemplo, um preso provisório que respondeu a todo processo criminal preso preventivamente, e que este tenha sido seu primeiro contato com o cárcere. Suponha-se que, ao final, foi absolvido e posto em liberdade. Tempos depois, retorna ao cárcere em nova prisão preventiva, que, ao final da instrução, com a sentença condenatória converte-se em prisão por condenação definitiva, sua primeira condenação criminal.
No exemplo acima, não há o que falar em reincidência, pois a primeira prisão foi somente a título provisório. Contudo, pode-se afirmar que se trata de um egresso do sistema penitenciário dado o seu reingresso à prisão.
Desse modo, ainda que a taxa de reincidência penal, de acordo com o IPEA, gire em torno de 24,4%, o índice de egressos ao sistema penitenciário (os que retornam à prisão do modo provisório ou definitivo) é bem maior, chegando à faixa de 70% como divulgou o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), o que denota a grande falha do sistema em recuperar os indivíduos que por ali passam.
Cabe ressaltar, que tanto o Depen, quanto outras fontes de pesquisa referem-se à reincidência penal num sentido muito amplo, incluindo toda e qualquer passagem de um indivíduo pelo sistema penitenciário, o que neste trabalho prefere-se conceituar de egressos do sistema, visto que o conceito legal de reincidência é bem mais restritivo, abarcando somente os condenados em definitivo que voltam a delinquir dentro do período depurador previsto no art. 64, I do Código Penal.
A incapacidade do sistema carcerário na ressocialização dos presos pode ser vista sob vários aspectos, sobretudo o estrutural. As penitenciárias do Brasil não têm estrutura para comportar sua atual demanda populacional, em quase todos os presídios analisados na pesquisa é latente a falta de vagas.
Como se verá adiante, uma outra pesquisa do IPEA sobre a mesma temática apontou que nos presídios brasileiros não há separação entre presos provisórios e definitivos, uma grave ofensa ao direito previsto no art. 84 da Lei de Execução Penal.
Dessa forma, indivíduos que estão cautelarmente presos convivem com indivíduos já condenados e, na maioria das vezes, bem mais experientes na vida do crime, tornando um ambiente propício à “fábrica da bandidagem”, nas exatas palavras de Luiz Flávio Gomes.
Nessa nova pesquisa realizada no mesmo ano pelo IPEA em parceria com o CNJ foram trazidos importantes dados acerca da reincidência penal no Brasil (IPEA, 2015).
Esse novo trabalho propôs uma reflexão acerca do papel ressocializador da pena no Brasil e para isso realizou pesquisas empíricas em diversos presídios do Brasil.
Ao final desse grande estudo os pesquisadores do IPEA chegaram às seguintes conclusões sobre o nosso sistema carcerário:
1- Dificuldade de assegurar ao indivíduo, privado de liberdade, a condição de sujeito de direito;
2- Ações, programas e projetos de caráter ressocializador geralmente são realizados de forma pontual;
3- Falta de equidade no atendimento dos indivíduos privados de liberdade;
4- Falta de critérios claros e procedimentos padronizados para os indivíduos integrarem os programes de ressocialização;
5- Ausência de uma política consistente de educação, trabalho, formação e capacitação e geração de empregos no sistema penitenciário. A maior parte das ações é desenvolvida de forma
precária, sem recursos materiais e em espaços e em espaços improvisados;
6- Faltam condições de trabalho para técnicos que atuam no sistema penitenciário. A atuação de técnicos, por exemplo, assistentes sociais e psicólogos, quase sempre se limita a responder demandas protocolares imediatas exigidas pelo Poder Judiciário. A maior parte do tempo desses profissionais acaba destinada a participar de comissões técnicas de avaliação, bem como de exames criminológicos desconsiderando, na verdade, as principais demandas sociais e psicológicas apresentadas pelos internos;
7- Falta de assistência jurídica;
8- Não diferenciação dos detentos por tipo penal e condição no processo criminal (provisório e condenado, fechado, semiaberto e aberto);
9- Distanciamento entre o cárcere e a sociedade. Fragilidade, ou mesmo inexistência, de conselhos de comunidade; e
10- Falta de programas que incluam a participação das famílias dos presos e internos. (IPEA, 2015, p.42-43)
O estudo conclui afirmando que:
Em meio à grave questão social da criminalidade, a reincidência penal permanece como um problema crucial. Às críticas ao sistema carcerário enquanto “escola do crime”, soma-se o fato de que os programas voltados para reintegração social surtem um efeito muito limitado sobre a vida dos detentos. Além disso, tais ações têm alcance ínfimo quanto aos egressos do sistema, que deveriam se um público primordial de programas dessa natureza. (IPEA, 2015, p.43)
Por todo o exposto, diante desse cenário, pode-se asseverar que o cárcere não combate à criminalidade, ao contrário disso, a política do encarceramento em massa apenas contribui para o seu agravamento, com ingresso de um número elevado de jovens que ingressam no sistema penitenciário, cujo estado de falência foi, inclusive, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal que, ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº 347, definiu as penitenciarias brasileiras como um verdadeiro “estado de coisas inconstitucional” , expressão cunhada pela Corte Constitucional Colombiana, ambiente em que há massivo desrespeito aos direitos fundamentais dos presos, lugar onde a dignidade da pessoa humana não tem qualquer valor e que apenas serve de fomento à violência que se volta contra a própria sociedade.
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1 Título.
2 Serventuária do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Especialista em Direito Penal (Lato sensu).
NAÇÕES UNIDAS BRASIL. CNJ e PNUD fecham acordo para enfrentar desafio da
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