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De quem é a responsabilidade pelo chargeback?

O comércio eletrônico inseriu novos atores nas relações negociais, e nesse novo cenário é comum a ocorrência do famigerado chargeback. No entanto, quem responde pelo chargeback?

21/11/2022

O comércio eletrônico é uma realidade, sendo o trânsito jurídico de bens e serviços totalmente intenso no mundo digital.

Em que pese a praticidade e a possibilidade de acesso a inúmeros bens e serviços em razão da amplitude do mercado digital, há também alguns inconvenientes que resultam das operações realizadas no e-commerce.

Geralmente, ao se adquirir produtos/serviços na internet o pagamento também é feito de forma eletrônica, e não raras vezes mediante o uso de cartões de crédito, cujos dados são inseridos em empresas que atuam como intermediadores de pagamento, tais como: Monetize, Eduzz, Booking etc.

A realidade do mercado eletrônico, no entanto, nos apresentou um inconveniente um tanto quanto raro em compras ‘físicas’: o não reconhecimento da compra pelo titular do cartão de crédito.

A situação é de fácil exemplificação: imagine-se que alguém adquiriu um produto ‘x’ numa loja virtual e, ao receber a fatura, não reconheceu a compra.

A partir daí inicia-se o procedimento de chargeback (que nada mais é do que o não reconhecimento/contestação de uma transação).

Note-se, desde logo, que o chargeback não se confunde com reembolso, estorno e quetais. Não. Chargeback é, do ponto de vista jurídico, a declaração de inexistência de um negócio jurídico por ausência do ânimo volitivo (ou seja, por ausência de manifestação de vontade de um dos envolvidos na trama negocial).

O chargeback resulta no cancelamento da compra realizada, uma vez comprovado que o adquirente, de fato, nunca manifestou sua vontade no sentido de realizar a compra – daí já se vê que seu regime jurídico não se confunde com o da desistência, do reembolso ou mesmo com o do mero estorno.

No entanto, é apressado iniciar a análise da responsabilidade civil pelo chargeback pelo seu fim, portanto voltemos ao exemplo.

Uma vez notado pelo adquirente/consumidor que houve uma compra em seu cartão de crédito por ele não reconhecida inicia-se o procedimento administrativo de disputa, que pode resultar – como ato final – no chargeback (cancelamento por não reconhecimento da compra).

O procedimento de disputa se inicia com a comunicação ao emissor do cartão, pelo titular do cartão de crédito, da ocorrência de uma compra por ele não reconhecida, momento em que o emissor do cartão tem o dever de possibilitar ao lojista ou ao intermediador de pagamento a defesa da compra, demonstrando que, de fato, o titular do cartão realizou a transação.

Essa comprovação – da regularidade da operação – pode ser demonstrada, por exemplo, com o envio de documentos que comprovam que o serviço foi prestado ao titular do cartão, ou que o produto foi entregue em sua casa (com aviso de recebimento), ou mesmo por meio de avaliações e trocas de mensagens entre os envolvidos.

Caso seja exitosa a comprovação de que o titular do cartão efetivamente contratou o serviço ou adquiriu o produto, então é fora de dúvidas que o chargeback não irá ocorrer, encerrando-se o procedimento de disputa.

A questão, todavia, é a seguinte: e quando ocorrer o chargeback? De quem será a responsabilidade?

Da mesma forma que não se pode dizer, num juízo a priori, quem é o responsável por reparar os danos causados num acidente de trânsito, assim também não se pode fazer quando diante de um procedimento de chargeback.

A responsabilidade civil é pautada em critérios, e os critérios clássicos são os seguintes: conduta ilícita, nexo de causalidade e dano.1

Assim, nos casos em que houver atuação de empresa de intermediação, a responsabilidade pelo cancelamento da compra não reconhecida será do intermediador do pagamento, desde que o beneficiário comprove que efetivamente prestou o serviço ou vendeu o produto.

Não obstante, qual a conduta ilícita praticada pela empresa de intermediação? Qual o nexo entre a conduta da empresa e a ocorrência do chargeback? Por qual razão responde o intermediador do pagamento pelos prejuízos do consumidor e do prestador do serviço ou fornecedor do produto?

Em primeiro lugar, é preciso ter em conta que todo aquele que exerce determinada atividade comercial assume os riscos inerentes ao próprio negócio, isto é, se o intermediador do pagamento tem como sua atividade principal o recebimento seguro dos valores, então é pouco mais do que evidente que quando o pagamento for efetivado mediante fraude, ou quando houver qualquer falha na confiabilidade do pagamento, é do intermediador a responsabilidade.

Os fortuitos internos inerentes à atividade de intermediação do pagamento não podem ser oponíveis àquele que confiou na empresa para receber os valores decorrentes da venda de seus serviços e/ou produtos, não podendo o intermediador transferir para seu cliente a responsabilidade decorrente da sua própria atividade.

É a exegese do art. 927, parágrafo único, do Código Civil, cuja violação importa em conduta ilícita (relembre-se: o ilícito nada mais é que a violação de um dever jurídico preexistente).

Em segundo lugar, o nexo de causalidade deve estar evidenciado, pois ninguém pode ser responsável por dano ou ilícito a que não tenha dado causa.

Destarte, há de ficar evidenciado que o intermediador do pagamento permitiu, por falha na prestação do serviço, que um pagamento inidôneo ou fraudulento fosse realizado, já que ao intermediador incumbe a fiscalização da regularidade do pagamento em sua plataforma.

Uma vez verificados tais pressupostos, o intermediador do pagamento deverá ser responsabilizado pela ocorrência do chargeback em detrimento do fornecedor do produto e/ou prestador do serviço.

Este é o entendimento – acertado – de diversos Tribunais pátrios, dentre os quais o do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Vejamos a título de exemplo:

APELAÇÃO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. CONTRATO DE CREDENCIAMENTO PARA TRANSAÇÕES COM CARTÃO. VENDAS AUTORIZADAS PELA INSTITUIÇÃO BANCÁRIA CREDENCIADORA. ESTORNO DOS VALORES DE VENDAS REALIZADAS ATRAVÉS DO CARTÃO DE CRÉDITO, QUE JÁ HAVIAM SIDO REPASSADOS PELA RÉ, SOB A ALEGAÇÃO DE FRAUDES PRATICADAS CONTRA OS TITULARES DOS CARTÕES (CLÁUSULA CHARGEBACK). SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA PARA CONDENAR A RÉ À RESTITUIÇÃO DOS VALORES. RECURSO DA PARTE RÉ. 1. Incidência das regras do Código de Defesa do Consumidor. O E. Superior Tribunal de Justiça firmou posicionamento no sentido de que a teoria finalista deve ser mitigada, nos casos em que a pessoa física ou jurídica apresente vulnerabilidade frente ao fornecedor. 2. (...). 3. Contrato de credenciamento ao recebimento de pagamentos por meio de cartões magnéticos. Cláusulas que permitem a retenção ou estorno dos valores quando a operação é cancelada, porque acolhida a contestação do titular do cartão, no sentido de que houve fraude e de que não realizou a indigitada despesa (chargeback). Ilegalidade. A responsabilidade da administradora e da instituição financeira credenciadora é objetiva, decorrente da teoria do risco do negócio (art. 927, parágrafo único, do Código Civil). Ao oferecer meios para o comerciante efetuar a venda pelo cartão de crédito ou débito, a parte ré assumiu o risco inerente à sua atividade empresarial, que é justamente a de prestação desse tipo de serviço oferecido aos estabelecimentos comerciais, para que possam expandir seus negócios. 4. Sentença mantida. Recurso desprovido. (TJSP; AC 1068511-29.2020.8.26.0100; Ac. 15597832; São Paulo; Décima Quinta Câmara de Direito Privado; Rel. Des. Elói Estevão Troly; Julg. 19/04/2022; DJESP 27/04/2022; Pág. 3773)

No mesmo sentido: Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Tribunal de Justiça de Goiás e tantos outros mais.

Assim, a responsabilidade pela ocorrência do chargeback será da empresa intermediadora do pagamento, quando o pagamento se der por intermédio de sua atuação.

Quando não houver empresa de intermediação de pagamento, entendemos que a responsabilidade pelo chargeback será da própria emissora do cartão de crédito, desde que tenha sido evidenciado, no procedimento de disputa, que houve a prestação do serviço ou fornecimento do produto.

____________

1 Não há de se falar aqui em “culpa”, pois estamos diante de caso de responsabilidade civil objetiva, pois ou estaremos em caso de situação jurídica de consumo ou diante de responsabilidade civil decorrente do risco da atividade (e em qualquer dos casos a responsabilidade civil é objetiva, como cediço).

Felipe Pravato
Bacharel em Direito pela Faculdade Estácio de Sá. Pós-Graduado em Direito Civil pela LFG. Cursando MBA de Mercado Financeiro e Investimentos - FACUPE. Autor de vários artigos jurídicos. Advogado.

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