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O abandono digital de crianças e adolescentes e a responsabilidade civil dos pais

O acesso indiscriminado e excessivo de crianças e adolescentes aos conteúdos disponíveis na web e a ausência de supervisão dos pais nesse “mundo digital”, pode gerar efeitos nocivos aos filhos em virtude das muitas situações de vulnerabilidade e risco a que estes estão expostos.

21/11/2022

O abandono digital é a negligência parental caracterizada pela omissão do dever de cuidado, proteção e segurança dos filhos no ambiente virtual. O acesso indiscriminado e excessivo de crianças e adolescentes aos conteúdos disponíveis na web e a ausência de supervisão dos pais nesse “mundo digital”, pode gerar efeitos nocivos aos filhos em virtude das muitas situações de vulnerabilidade e risco a que estes estão expostos. Para Pinheiro (2014), a internet é a rua da sociedade contemporânea e os perigos digitais são muito semelhantes aos do “mundo real” 1

Nesse contexto, muitos pais se iludem com a falsa sensação de segurança e confiabilidade advindos do fato dos filhos estarem dentro de casa, porém, estes estão completamente abandonados na plataforma digital, navegando na internet de forma ininterrupta e sem a devida vigilância parental. É uma geração de crianças e adolescentes entregues à própria sorte e tendo como melhor companhia um celular, um computador, um tablet ou um smartphone.

É inadmissível a conduta de pais que disponibilizam de forma precoce aos filhos, mecanismos de acesso à internet sem a devida assistência e monitoramento, tudo “em troca” de um pouco de tranquilidade. O problema é que condutas egoístas e negligentes como essa, podem acarretar graves consequências e danos irreparáveis à criança e ao adolescente, pois, além do uso precoce e excessivo da internet ser prejudicial ao seu desenvolvimento cognitivo, estes sujeitos estão expostos a conteúdos sensíveis ou inadequados para a idade, tais como violência explícita, informações sobre a obtenção e uso de drogas, “brincadeiras” ou jogos desafiadores, vício tecnológico, formas de se machucar e até de realizar suicídio, além do risco de contato e interação com desconhecidos na rede. 

Além dos riscos e consequências já citados, há outros inúmeros perigos frequentes no ambiente virtual, como por exemplo: o cyberbullying - que consiste em postagens ofensivas, agressivas, humilhantes e preconceituosas, que causam intimidações e violam a identidade da vítima; o grooming – que é uma violência sexual caracterizada pela aproximação de um adulto com uma criança ou adolescente por meio de mensagens de texto, páginas de jogos online ou sites de bate-papo, visando ganhar a confiança da vítima para explorá-la ou abusá-la sexualmente; o sexting - que representa a prática de enviar fotos (nudes), mensagens ou vídeos de cunho sexual; a exploração sexual - que acontece quando crianças e adolescentes são coagidas ou persuadidas por um aliciador virtual a realizarem práticas sexuais com a intenção de obter lucros; o abuso sexual infantojuvenil – que se configura por toques íntimos, vídeos sem roupa e até estupro; a pornografia - que envolve uma atividade sexual explícita real ou simulada por meio de fotos e vídeos, que na maioria das vezes, são fornecidas pela própria criança ou adolescente que acredita ter compartilhado com amigos da sua idade, mas, na verdade, essas imagens estão sendo captadas por aliciadores que “alimentam” a rede de pedófilos2.

E onde estão os pais diante desse cenário desastroso? Negligenciando sua responsabilidade parental no tocante ao dever de cuidado, segurança e proteção dos filhos. Não se pode esquecer que é dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança e ao adolescente, com total prioridade, os preceitos basilares a todo ser humano, conforme preceitua o art. 227 da Constituição Federal. Tal dispositivo consagrou em nosso ordenamento jurídico a doutrina da proteção integral, que também está elencada no Estatuto da Criança e do Adolescente. Da mesma forma, o Código Civil de 2002 trouxe em seu art. 1.634 a responsabilidade objetiva dos pais. Destarte, nota-se que o legislador buscou a proteção da criança e do adolescente como sujeitos de direitos, destinatários de absoluta prioridade, respeitando suas condições peculiares de pessoas em desenvolvimento.

É fato incontroverso que são os próprios pais que facilitam a entrada da criança ou do adolescente no “mundo virtual”, e na maioria dos casos, deixam de oferecer instruções para uma navegação segura e saudável, negligenciando os possíveis traumas psicológicos e físicos causados pela exposição ilimitada a páginas digitais inapropriadas, bem como pela exibição de seus conteúdos mais íntimos na web. Inevitavelmente, essa conexão digital exacerbada pode causar danos emocionais e sequelas imensuráveis na vida da criança ou do adolescente, que por vezes, são irreversíveis e prejudicam o desenvolvimento saudável e digno destes novos “incapazes abandonados digitais”. Não se pode olvidar, igualmente, que os pais respondem pelos ilícitos cometidos por seus filhos incapazes, em virtude do dever de guarda, orientação e zelo, inerentes ao poder familiar.

Logo, a negligência parental no ambiente digital gera responsabilização civil, haja vista que, indubitavelmente, a omissão dos pais se configura como um ato ilícito, passível de indenização, uma vez que a criança ou adolescente pode ter a sua imagem, honra, dignidade e diversos outros direitos fundamentais prejudicados em razão do comportamento negligente de quem deveria orientar, supervisionar e educar os filhos em relação ao acesso seguro às novas tecnologias.

Apesar da temática do abandono digital ser nova, inexistindo debates aprofundados pelos doutrinadores, já há decisões nos tribunais do Brasil condenando os pais negligentes, em virtude da responsabilidade parental. Em julgado proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, uma mãe foi condenada a pagar indenização por danos morais no valor de R$ 5 mil, por ter fornecido ao filho o seu computador e o acesso à internet sem a devida precaução com o monitoramento dos atos por ele cometidos na web. O adolescente praticava cyberbulylling em sua própria residência, visto que postava mensagens com teor ofensivo além de fazer montagens fotográficas levianas nas quais o autor da ação aparecia com chifres3 Restou demonstrado nesse julgado que houve o abandono digital por parte da mãe, que inclusive confessou não ter conhecimento dos atos praticados pelo filho na internet.

Diante do exposto, com vistas à doutrina da proteção integral que delega absoluta prioridade às crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, e na condição peculiar de pessoas em processo de desenvolvimento, compete aos pais o dever de educar e vigiar os filhos no ambiente virtual, conscientizando-os sobre os riscos do uso descuidado da web e promovendo uma convivência saudável e segura desses sujeitos com as novas tecnologias. A quebra do dever de cuidado parental ao negligenciar a vida virtual dessas pessoas em formação, pode e deve gerar responsabilização civil pelos danos causados aos filhos e por estes na web, haja vista que crianças e adolescentes não possuem a capacidade de avaliar plenamente a gravidade e a proporção que suas atitudes podem tomar no “mundo digital”.

____________________

1 PINHEIRO, Patrícia Peck. Abandono Digital. Observatório da Imprensa. 3 de jun. de 2014. Disponível em: https://www.observatoriodaimprensa.com.br/e-noticias/_ed801_abandono_digital/. Acesso em: 27 de set. de 2022.

2 KLUNCK, Patrícia; AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. O abandono digital de crianças e adolescentes e suas implicações jurídicas. PUCRS. Disponível em: https://www.pucrs.br/direito/wp-content/uploads/sites/11/2020/04/patricia_klunck.pdf. Acesso em: 28 de set. de 2022.

3 MÃE é responsabilizada por ofensas do filho na web. Revista Consultor Jurídico. 2 de jul. de 2010. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2010-jul-02/mae-responsabilizada-cyberbullying-praticado-filho.  Acesso em: 17 de out. de 2022.

Karina Cavalcante Cardoso Ruiz
Advogada de Direito de Família e Sucessões. Especialista em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e Pós-Graduanda em Direito de Família e Sucessões pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do RS.

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