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O calote no contrato administrativo

Lamentavelmente, com extrema freqüência, o Poder Judiciário é instado a decidir questões originadas da reiterada mora e inadimplência do Poder Público, em virtude de descumprimento contratual.

11/4/2007


O calote no contrato administrativo

Juliano Barbosa de Araújo*

Lamentavelmente, com extrema freqüência, o Poder Judiciário é instado a decidir questões originadas da reiterada mora e inadimplência do Poder Público, em virtude de descumprimento contratual.

Diz-se lamentável porque a própria idéia de que um ente público não possa oferecer o adequado cumprimento aos contratos soa assustadora em países que se pretendem Estados Democráticos de Direito.

Isto porque, não se pode esquecer que o Poder Público possui a prerrogativa legal de pré-estabelecer as cláusulas dos contratos que formaliza, podendo, ainda, alterá-las unilateralmente, conforme disciplinado na Lei nº 8.666/93 (clique aqui). A única sujeição imposta ao ente administrativo na contratação diz respeito à parcela econômica do ajuste, consoante dispõe a Constituição Federal (art. 37, XXI - clique aqui).

Entretanto, no caso do Brasil e, em particular, do Estado e Município de São Paulo, a inadimplência do Poder Público, mediante o reiterado descumprimento contratual, ganharam ares de “instituição”, haja vista a prática comum e sucessiva de institucionalização, por meio de Portaria ou Decreto (?!?!?!), do calote das dívidas contratuais adquiridas em exercícios anteriores.

<_st13a_personname productid="Em São Paulo" w:st="on">Em São Paulo, tão certo quanto os festejos de reveillon na Avenida Paulista é a Portaria ou Decreto de início de gestão, pela qual o Poder Público conclama os seus credores à “repactuação” das dívidas contraídas junto às administrações passadas e que, em alguns casos, já foram, inclusive, objeto de acordos anteriores, nos quais, invariavelmente, os particulares que executaram a contento os ajustes celebrados, são instados a oferecerem novos descontos e parcelamentos do legítimo crédito possuído.

Em face da violação desses direitos, somente resta ao particular contratado – e não pago – a provocação do Poder Judiciário, a fim de que possa receber o crédito constituído contra a Fazenda Pública, que já deveria ter sido voluntariamente adimplido, nos termos em que dispostos em contrato.

O processo judicial, então, dá início a verdadeiro calvário jurisdicional. A gravidade da questão – não bastasse o alarmante quadro fático que a origina – reside na defesa deduzida pelo ente público em Juízo.

Isto porque, muitos são os casos em que o Poder Público vem a Juízo reconhecer a dívida no montante em que cobrada, pretendendo, entretanto, submeter o crédito legitimamente constituído às disposições1 das malfadadas portarias e decretos.

Parte-se, sempre, da premissa de que as medidas encerradas por estes regulamentos constituem-se em único meio de sobrevivência das finanças públicas, única forma de se resguardar os serviços básicos do ente devedor, apresentando-se o calote institucional como salvação do interesse público. O Ente Administrativo socorre-se das alegações de perigo público para ver descumprida a Constituição Federal e sensibilizar os membros do Poder Judiciário.

A argumentação do ente público não resiste aos mais comezinhos princípios e regras jurídicos. Afinal, é indene de dúvidas que também o Poder Público deve respeitar a garantia constitucional de preservação do ato jurídico perfeito, que corresponde, no caso tratado, aos próprios contratos celebrados com a Administração. Portanto, não há como se sustentar a aplicabilidade retroativa de regulamentos, que suprimem considerável parcela de direitos do administrado.

Em outras palavras: não pode o negócio jurídico celebrado com a Administração – que deveria ter sido cumprido a tempo e modo -, ser alterado por norma posterior, sobretudo no caso em que esta afeta, negativamente, o direito do credor, que, no mais das vezes, já se submeteu a regime de urgência anterior, no qual teve que abdicar de parte do seu crédito, bem como da forma de recebimento da remuneração devida, estabelecida nos contratos. Entender na forma da defesa do ente público deduzida em Juízo é atentar contra a Constituição (art. 5º, XXXVI) e a legislação infraconstitucional (art. 6º, LICC).

Com efeito, oferecer guarida a esta espécie de argumentação trazida a Juízo é afirmar, expressamente, que, em contratação pública, o contratante pode tudo, inclusive desequilibrar as condições originais da proposta comercial veiculada em legítimo procedimento licitatório, em flagrante afronta ao artigo 37, XXI, da Constituição Federal.

Jamais se descure que, a ausência da contrapartida contratual do Poder Público deve ser exceção, justificável somente nos casos excepcionais disciplinados <_st13a_personname productid="em lei. Ao" w:st="on">em lei. Ao contrário do que ocorre presentemente, em vista da reiterada inadimplência do ente público. Tal postura morosa propiciou o surgimento do chamado “Custo Brasil”, que, em apertada análise, corresponde à considerável elevação do custo de produção no país que costuma não respeitar os contratos celebrados com a iniciativa privada, além de morosidade da Justiça em resolver os litígios.

Ademais, a pretensão do ente público de parcelar, mediante edição de atos normativos, as dívidas advindas de exercícios anteriores, encontra vedação no princípio da proibição ao enriquecimento ilícito (art. 884, do CC/02 - clique aqui), além de se constituir em verdadeira imoralidade, por pretender perpetuar a mora da Administração Pública, a quem incumbe – não é demais falar – o dever especial de fiel cumprimento das contratações que enceta.

Ainda, a premissa em que baseada a edição dos citados regulamentos é inverídica: afirmar que o deliberado calote nos credores da Administração, que executaram a contento as obras e serviços contratados, é atender ao interesse público constitui-se em argumento falacioso, servindo, tão-somente, ao discurso político e a ficção publicitária2, tão cara aos atuais administradores. Ora, o interesse público, ao revés, reclama da Administração Pública que cumpra adequadamente os contratos que pactua, nos quais, inclusive, possui a prerrogativa de pré-estabelecer as cláusulas contratuais.

A pretensão da Administração é a seguinte: convencer os incautos de que o pagamento dos seus credores – inclusive daqueles que já ofereceram diversos benefícios à Administração – acarretará a inoperância administrativa, para que, com o caixa livre dos pagamentos devidos e atrasados há anos, possa realizar novas obras, que serão igualmente inadimplidas, sob a mesma alegação. Este círculo vicioso e imoral deve ser quebrado pelo Poder Judiciário, sob pena da formal falência do Estado de Direito!

Em verdade, é inconcebível que um ente público atrase os seus pagamentos, que, como é sabido, decorrem de procedimentos administrativos próprios, decorrentes de lei. O legislador, aliás, sempre se mostrou preocupado com a saúde das finanças públicas, tanto que editou diversos diplomas punitivos dos administradores pródigos, incompetentes ou ímprobos.

Mais inconcebível ainda – na verdade, um descalabro – é que o ente administrativo atrase os seus pagamentos, permaneça em mora indefinida, submeta o particular a compulsório parcelamento, seja demandado judicialmente, reconheça o débito, mas pretenda impor, com a chancela judicial, verdadeiro calote no prestador do serviço público.

O Poder Judiciário, nesse cenário, apresenta-se como último refúgio do particular contratado, cabendo àquele, portanto, afastar a defesa deduzida pelo ente público, a fim de que se possa assegurar um mínimo de validade à contratação pública, no que toca a sua parcela econômica.

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1 Que impõem parcelamentos com prestações fixas, desprovidas da devida atualização monetária e da incidência dos juros legais, inclusive, postergando os pagamentos devidos há anos para administrações futuras.

2Aliás, não se tem notícia de que haja inadimplência em contratos de publicidade do Poder Público.

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*Advogado do escritório Porto Advogados





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