Migalhas de Peso

Impossibilidade do mínimo existencial do cidadão brasileiro em 25% do salário mínimo vigente

A dignidade humana começa pela preservação da própria vida; O que se tem hoje com o presente decreto é a desproporcionalidade de sua preservação, quando falamos de vida até mesmo em seu sentido estrito.

11/11/2022

O decreto lei 11.150/22 de 26/07/22, publicado em 27/7/22 no DOU Edição 141 com vigência a partir de 27/9/22, tem por objetivo regulamentar a preservação e o não comprometimento do mínimo existencial do cidadão para fins de prevenção, tratamento e conciliação de situações de superendividamento em dívidas de consumo, nos termos do disposto preceituado na lei 8.078/90 em seu art. 54-A, § 1º, preceito esse incluído pela lei 14.181/21, que alterou significativamente o CDC com objetivo de aperfeiçoar a disciplina do Crédito ao Consumidor.

Pela primeira vez em nosso arcabouço legal, restou expresso objetivamente e determinado materialmente, não somente a aplicação jus filosófica e jus natural do mínimo existencial em questões que envolvam a sobrevivência econômica do Cidadão em nossa Sociedade Capitalista, até então implícito nas garantias constitucionais, mas também sua determinação objetiva em valores econômicos.

O comando legal contido na última parte do § 1º, art. 54-A do CDC, estabeleceu que o mínimo existencial ali expresso e com a garantia de seu não comprometimento, deveria ser regulamentado, e assim foi feito através do referido Decreto e que através deste artigo serão observados os aspectos formais e materiais de sua redação e contexto, principalmente no que diz respeito a sua aplicabilidade e eficácia enquanto norma.

Muito se discutiu na história o conceito de mínimo existencial, principalmente após a promulgação de nossa constituição que deixou bem clara sua existência mesmo que implícita junto as garantias constitucionais do cidadão, no entanto, ainda não se vê um conceito amplo que possa ser usado e ao mesmo tempo expresso legalmente a ponto de ser aplicado de fato à realidade econômica da sociedade brasileira, principalmente quando há normativo constitucional estabelecendo um Salário Mínimo para sobrevivência do cidadão, e o mínimo existencial estabelecido, pasmem, 75% menor que o próprio salário mínimo já previsto na Constituição.

No entanto, para compreender os motivos que levaram a produção deste artigo, partiremos da premissa histórica, jus filosófica e jus natural do conceito de mínimo existencial já bem pacificado na Doutrina do Direito.

ASPECTOS DO CONCEITO DE MÍNIMO EXISTENCIAL

Mínimo existencial, trata-se do mínimo de direitos garantidos para a existência da vida humana com dignidade e liberdade.

Não há que se confundir esse “mínimo” com Direitos Fundamentais, são Direitos Sociais ali inseridos, todavia, não pode ser determinado somente por este.

Os Direitos Fundamentais abarcam todos os direitos individuais, coletivos, da empresa e da pessoa jurídica; é mais amplo, enquanto os Direitos Sociais, é objeto garantido pelo conjunto do mínimo de direitos básicos para a existência da vida humana com dignidade e principalmente liberdade.

É nesse sistema correlacionado de direitos constitucionais que nasce o conceito teórico do Mínimo Existencial, que situa-se além da constituição, é o que chamamos de direito jus natural, não sendo necessária à sua positivação em lei, mesmo que em carta constitucional, para que seja aplicada pelo ordenamento jurídico, no entanto, ao observar o Art. 6º da CF/88, teremos o conjunto de Direitos Sociais básicos e mínimos para a dignidade humana ali expressos, quais sejam, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, entre outros.

Neste sentido resta bem clara a vinculação direta do mínimo existencial à noção clara de liberdade, tanto de forma subjetiva como de forma objetiva, além do que,  a não observância do mínimo existencial em sua totalidade e natureza, coloca em situação de risco a própria liberdade garantida não tão somente pelo veio jus natural, mas pela sua positivação Constitucional, pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) e outros Tratados Internacionais de Direitos Humanos em que o Brasil é signatário, e que a ausência de uma ou outra garantia, pode comprometer o conceito natural e o senso comum de liberdade.

Vertentes prestacionais de formulações jurídicas em torno do mínimo existencial, fazem resolver questões de seu próprio fundamento (liberdade, valores éticos e sociais), e neste sentido, a vertente da garantia constitucional, que impede agressão ao Direito, evidencia-se como vinculação direta do Estado, logo, torna-se exigível, independentemente de sua vinculação.

Neste ponto, é importante deixar claro que garantir e prestar serviços Estatais, são ações distintas fundamentadas juridicamente, porém como exercícios minimizados da relação do Estado com o particular e maximizado pela relação do Estado com todos.

Não é à toa que um dos problemas em relação ao aspecto prestacional do Estado em relação ao mínimo existencial seja a determinação de quais prestações de direitos sociais modelam o seu núcleo, principalmente quando é o legislador ordinário que define o que é e o que não será Direito Social.

Mesmo que o legislador originário, no apogeu constitucional das normas programáticas, sistemicamente tenha sido amplo e progressista, é o legislador ordinário que dá impulso, vigor, vivacidade e ânimo às questões que envolvem as garantias constitucionais com vinculação das garantias prestacionais do Estado, consoante prolatado pelo Ministro do STF, Luís Roberto Barroso

“O legislador constitucional é invariavelmente mais progressista que o legislador ordinário”, porém, em alguns momentos políticos pode-se compreender a inação do legislador ordinário na progressividade da lei (...) “

Nesta toada, ainda pode-se questionar se todos os Direitos Sociais positivados compõem o manancial do mínimo existencial.

Segundo J. J. Gomes Canotilho,

“(...) os direitos sociais não são mais que pretensões legalmente reguladas, o legislador determina o que é um direito social, mas não está vinculado aos direitos sociais”.

Ora, o mínimo existencial, de origem pré-constitucional, de interpretação jus filosófica e de discussão jus natural, está muito além do ordenamento positivado do Estado, sua noção axiológica é que consiste a sua eficácia no mundo jurídico e nas atividades prestacionais do Estado, e assim, como mitigado pelo Ministro, Luís Roberto Barroso, “(...) transmigra-se do paradigma das normas para o dos princípios (...)”

A partir deste ponto clamam-se os princípios à tona das discussões acerca do mínimo existencial e impera-se a axiologia do tema em sua aplicação no mundo fático, portanto, pode-se afirmar que nem todos os Direitos Sociais compõem o manancial do mínimo existencial, e o mínimo existencial compõem-se não tão somente de normas positivadas, mas também, de princípios valorativos por excelência.

Vale ressaltar ainda que, para a compreensão dos princípios valorativos que imbricam Direitos Sociais, Princípios Fundamentais, compostos prima facie pela liberdade, justiça, segurança, solidariedade e felicidade, materializados pela Dignidade humana, cidadania, democracia, soberania, tudo dentro do aspecto constitucional do Estado Democrático de Direito, prospera-se a ponderação, a razoabilidade, a proporcionalidade e a igualdade no acatamento dos Direitos Sociais que invariavelmente caracterizam o mínimo existencial quando tocado pelos interesses fundamentais ou pela fundamentação jurídica.

Pois bem, como conclusão temos que o Mínimo Existencial, independente de assegurar Direitos Sociais ou Direitos Fundamentais seja em atividades prestacionais do Estado garantidas pelo conceito de mínimo existencial e coberto pelo manto dos princípios fundamentais que garantem a vivência do homem e sua dignidade de vivê-la, seja pela ação individual do cidadão, provocando a justiça, seja pelo Estado em sua ação prestacional positiva e negativa, seja pela atividade legislativa, sempre haverá o cerne principal da preservação da liberdade e acima de tudo, criar mecanismos para que o cidadão não fique a margem de seu mínimo existencial em claro estado de escravidão financeira e excluído da sociedade de consumo, hoje não mais pela sua vulnerabilidade, mas pela hiper vulnerabilidade que decorre do fenômeno do superendividamento.

Isto posto, é DEVER do Estado, promover pela via direta ou indireta, respectivamente em relação ao particular e em relação à sociedade, a efetividade dos preceitos constitucionais e axiológicos sobre o mínimo existencial em consonância com sua própria previsão, melhorando e não recriando fundamentos juridicos, a tudo, constitucionais.

Se o Estado não consegue prover efetivamente o mínimo existencial em todos em seus atos prestacionais, não há outra escolha, senão o particular valer-se de seus direitos e promover a si a efetividade de sua sobrevivência segundo o comando legal existente através da lei e do Poder Judiciário, dentro de patamares consoantes ao equilíbrio, razoabilidade e proporcionalidade que lhe são caros.

Neste sentido, o decreto lei 11.150/22 não provê razoabilidade e proporcionalidade na estipulação da referência econômica objetiva do mínimo existencial, ferindo inclusive e gravemente aspectos formais e materiais em sua contextualização, além do desafio à vários princípios constitucionais que permeiam a efetividade dos direitos ao cidadão no que diz respeito as tratativas do Superendividamento.

ASPECTOS DO SUPERENDIVIDAMENTO DO CIDADÃO BRASILEIRO

Não é difícil perceber que a Sociedade Econômica Brasileira, deixou há muito tempo, acentuadamente no decorrer dos últimos 20 (vinte) anos, de ser uma Sociedade de Consumo passando a ser uma Sociedade de Endividamento. Hoje somos na verdade uma Sociedade de Endividados.

Mesmo que somente publicada em 2 de julho de 2021, a lei 14.181/21, POSITIVOU uma série de regras e princípios a serem observados pelas empresas, em especial aquelas que concedem crédito, o que muito embora a prática de mercado e a aplicação de princípios que regem a Defesa do Consumidor, possuírem atribuição axiológica e valorativa no direito e no livre convencimento judicial, sua positivação recai a obrigatoriedade da aplicação pela via normativa antes mesmo da decisão judicial de critérios de prevenção e protetivos ao consumo do crédito.

Com foco em dar maior proteção aos consumidores em vulnerabilidade, a lei criou e entregou mecanismos para inibir o superendividamento, e dentre eles o próprio conceito, qual seja, da impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial (art. 54-A, § 1o do CDC)

Assim sendo, a lei, também positivou o princípio da prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor, bem como a instituição de mecanismos de prevenção, conciliação e tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento e de proteção do consumidor pessoa natural e a preservação de seu mínimo existencial. (Art. 4o, inc. X e Art. 6o, inc. XI e XII do CDC)

Neste sentido, portanto, todo contrato de crédito firmado com o consumidor passa a ser analisado sob a ótica de proteção à parte vulnerável e suscetível ao superendividamento, observando a preservação do mínimo existencial.

Isto posto, a participação e responsabilidade das empresas que fomentam o crédito, sejam financeiras ou qualquer segmento que se vale do financiamento do dinheiro, é ainda maior que a própria vontade do CONSUMIDOR, o que instigando-o ao consumo de seu crédito, entrega-o irresponsavelmente e passivamente ao TERROR DO SUPERENDIVIDAMENTO, razão pelo qual não há outra solução, senão o Consumidor recorrer à Lei para SUBSIDIAR AO MENOS A MANTENÇA DE SUA DIGNIDADE HUMANA INTRÍNSECA NO SEU MINIMO EXISTENCIAL, afastando-o da vulnerabilidade.

Em consonância com a  doutrina especializada, esta diferencia a vulnerabilidade  informacional, como sendo aquela em que consumidor não só não tem acesso a todas as informações necessárias para a realização do negócio jurídico, mas também a manipulação da informação por parte do prestador de serviços; a  vulnerabilidade técnica, segundo o qual o consumidor não tem conhecimento técnico do objeto que está adquirindo; a vulnerabilidade jurídica ou científica, que consiste na falta de conhecimentos jurídicos específicos, de contabilidade ou de economia; e por fim, a vulnerabilidade fática ou socioeconômica, caracterizada pela grande disparidade econômica entre o fornecedor de serviços e o consumidor.

 A presença de qualquer uma das facetas da vulnerabilidade na situação de fato, caracterizaria o consumidor como vulnerável e merecedor da proteção jurídica especial da legislação consumerista.

Hoje no Brasil não é difícil encontrar cidadãos que preenchem os requisitos de todas as espécies de vulnerabilidade, a começar pelo próprio comprometimento mensal de seus rendimentos, pois que clara vítima  de “tubarões do crédito fácil” não recebendo informações necessárias para realização dos contratos com credores de sabidamente grande poderio econômico, configurando-a como hiper vulnerável e merecedor de atenção e proteção jurídica específica.

Neste sentido, a base para caracterizar o superendividamento do cidadão, sempre será a garantia constitucional do seu  mínimo necessário para que garanta seus direitos sociais, principalmente aqueles prejudicados pela incapacidade clara do Estado prover em sua atividade prestacional, independentemente de sua obrigação contratual, prevalecendo os direitos constitucionais de subsistência em detrimento ao direito infraconstitucional.

Em suma, se não há como a cidadão ter garantido ou garantir seu mínimo existencial, seja de forma ativa ou pela atividade prestacional do Estado, em função de seu superendividamento, medidas devem ser tomadas para que não seja cada vez mais fomentada a morte social e financeira do cidadão.

DA NECESSIDADE CONSTITUCIONAL DO VALOR ECONÔMICO AO MINIMO EXISTENCIAL – INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DA VINCULAÇÃO AO SALÁRIO MINIMO.

No presente artigo, já foram abordadas questões que constituem o Mínimo Existencial pela via constitucional, tendo por base os próprios Direitos Sociais ali preceituados com a garantia de sua prestação estampada no art. 7º, trazendo a presente nota o inciso IV:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

(...)

IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim; (destacamos)

(...)

Pois bem, em uma análise sistematizada da constituição, constata-se que o legislador já prevendo um mínimo monetário necessário para que o cidadão tenha garantido seus Direitos Sociais pela via indireta, estabeleceu o salário mínimo, que nada mais é que a própria conclusão do legislador da necessidade de se existir um mínimo de salário para o sustento da dignidade do cidadão brasileiro.

Ao observar atentamente a lógica do direito constitucional calçada na hierarquia das leis, qualquer interpretação ou determinação em dissonância à vontade constitucional, não tem qualquer eficácia no ordenamento jurídico nacional.

Na questão presente, não há como o comando constitucional determinar um salário mínimo para que o cidadão detenha a capacidade de preservação de seus Direitos Sociais e ao mesmo tempo, pela via do Decreto Presidencial, ser regulamentado que o mínimo existencial seja menor em 75% que este. Além de um crasso erro conceitual quanto ao tema “mínimo existencial”, há claro desafio à Constituição, no caso, evidente inconstitucionalidade do referido método de valoração objetiva do minimo existencial.

Por questões  legais, econômicas e políticas, o salário mínimo vigente sempre foi constituído e calculado pelo poder executivo observando principalmente seus compromissos previdenciários e dentro da regra estabelecida da razoabilidade e proporcionalidade que se vinculam os atos do poder executivo ao interesse público, todavia,  sempre o valor de referência instituído por decreto destoa da realidade econômica do pais, aliás, prevalece sempre o interesse público comutado na política econômica e orçamento da União.

Nesta toada, por ser ato exclusivo e privativo do poder executivo em relação ao interesse público, o Salário Mínimo decretado tem proibição constitucional de ser vinculado para outro fim que não a que se encerra. ou seja, garantir o valor mínimo de subsistência do cidadão brasileiro para efetivação de seus Direitos Sociais.

Com o decreto 11.150/2022, além de ser utilizado o valor do salário mínimo vigente vinculando-o à determinação econômica e monetária do mínimo existencial em claro desafio constitucional, o valor mensurado deve no mínimo, pelo princípio da sistematização do direito, ser calculado com base na situação de fato econômica do país na relação consumerista do crédito evidenciado pelo afastamento das dívidas tributárias e do sistema financeiro da habitação na composição global do endividamento do cidadão, além das operação de crédito rural e aquelas com garantia real. Em resumo, a lei trata do relacionamento contratual estritamente do cidadão particular em contrato bilateral com empresas privadas que atuam na “venda” de crédito no país, bancos, financeiras, lojas de departamentos, cartões de crédito, entre outros.

Neste sentido, instituir o valor econômico do mínimo existencial em percentual vinculado ao salário mínimo vigente, além de ferir regra constitucional, traz total dissonância com o objetivo da Lei 14.181/2021, em que trata especificamente a relação de consumo e superendividamento com particulares, sendo necessário, sua equivalência com a realidade econômica nacional sem qualquer vinculação com o orçamento governamental, instituindo-se na regra inafastável da razoabilidade e proporcionalidade dos atos da administração pública.

DA INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL – DA NECESSIDADE DE ALTERAÇÃO DA LEI POR OUTRA LEI

É sabido que na hierarquia dos atos normativos, a lei é superior ao decreto, que existe para regulamentá-la, todavia, a Constituição consagrou espaços de atuação originária do Poder Executivo, no qual a lei não pode invadir, sob pena de ser caracterizada juridicamente a sua inconstitucionalidade, são espaços de atuação da Administração pública inerente ao exercício de sua competência, ao qual é defeso a lei invadir. É a chamada “reserva de administração” dos regulamentos autônomos.

O que preceitua essas competências é a própria carta constitucional em seu comando estruturante do Estado no que diz respeito aos Decretos autônomos.

É certo que os Decretos podem ser de mera execução, aliás, os mais comuns, quando apenas ampliam a eficácia da lei, todavia sem destoar de suas prescrições, garantindo-lhe “o seu fiel cumprimento” nos próprios termos do art. 84, IV da CF/88, onde traz a competência privativa do Presidente da República para sua edição.

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

(...)

IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução (destacamos)

(...)

No caso de decretos de mera execução, a Constituição remete somente a competência do Presidente da República para ampliar a eficácia da lei, mas isso NÃO LHE DÁ PODERES PARA ALTERAR A LEI e ainda destoar as prescrições já existentes que seguiram todo o processo legislativo para sua aprovação, lhe emprestando toda a formalidade constitucional que se dispõe.

Neste sentido, o decreto 11.150/22 traz modificações nos preceitos da lei 14.181/22 que alterou o CDC, extrapolando o comando legal para regulamentar o mínimo existencial contido no art. 4º do referido decreto:

Não serão computados na aferição da preservação e do não comprometimento do mínimo existencial as dívidas e os limites de créditos não afetos ao consumo.

Parágrafo único. Excluem-se ainda da aferição da preservação e do não comprometimento do mínimo existencial:

I - as parcelas das dívidas:

  1. relativas a financiamento e refinanciamento imobiliário;
  2. decorrentes de empréstimos e financiamentos com garantias reais;
  3. decorrentes de contratos de crédito garantidos por meio de fiança ou com aval;
  4. decorrentes de operações de crédito rural;
  5. contratadas para o financiamento da atividade empreendedora ou produtiva, inclusive aquelas subsidiadas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES;
  6. anteriormente renegociadas na forma do disposto no Capítulo V do Título III da lei 8.078, de 1990;
  7. de tributos e despesas condominiais vinculadas a imóveis e móveis de propriedade do consumidor;
  8. decorrentes de operação de crédito consignado regido por lei específica; e
  9. decorrentes de operações de crédito com antecipação, desconto e cessão, inclusive fiduciária, de saldos financeiros, de créditos e de direitos constituídos ou a constituir, inclusive por meio de endosso ou empenho de títulos ou outros instrumentos representativos;

II - os limites de crédito não utilizados associados a conta de pagamento pós-paga; e

III - os limites disponíveis não utilizados de cheque especial e de linhas de crédito pré-aprovadas.

Ampliar a eficácia da lei, não quer dizer, modificar a intenção da lei, é justamente determinar objetivamente sua aplicação no que diz respeito aos valor econômico dado ao minimo existencial quando então o legislador se vê incompetente para decidir sobre algo que entendeu como política de governo, no caso, o valor monetário do mínimo necessário para garantir ao menos os direitos sociais do cidadão.

Vejamos o dispositivo legal inserido pela lei 14.181/22 no CDC, o art. 104- A, em especial seu parágrafo primeiro:

Art. 104-A. A requerimento do consumidor superendividado pessoa natural, o juiz poderá instaurar processo de repactuação de dívidas, com vistas à realização de audiência conciliatória, presidida por ele ou por conciliador credenciado no juízo, com a presença de todos os credores de dívidas previstas no art. 54-A deste Código, na qual o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 (cinco) anos, preservados o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, e as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas.      

§ 1º Excluem-se do processo de repactuação as dívidas, ainda que decorrentes de relações de consumo, oriundas de contratos celebrados dolosamente sem o propósito de realizar pagamento, bem como as dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural. (Destacamos)

Observa-se  que o legislador definiu as dividas que NÃO devem ser tratadas na composição do superendividamento do consumidor e consequente repactuação, não atribuindo qualquer relação com a composição monetária e econômica do minimo existencial, simplesmente excluiu através do comando normativo 3 (três) modalidades de crédito que não devem ser repactuadas, por outro lado, o legislador não excluiu da composição das obrigações que comprometem o minimo existencial por clara lógica econômica.

Neste sentido,  o art. 4º do decreto lei, ampliou a última parte do parágrafo primeiro sem qualquer espaço para tanto, ou seja, o decreto restringiu aquilo que a lei não veda, atribuindo a exclusão de demais modalidades de contratos de crédito sem a menor correlação com o intento legal, legislativo e principalmente a ferindo de plano a carga principiológica que envolve toda a lei consumerista.

Trazendo a realidade fática do próprio decreto, observa-se, e.g. a vedação à aferição dos crédito consignados para preservação e comprometimento do mínimo existencial (Art. 4º, I, “h” CL 11.150/2022) por considerá-lo como uma modalidade de crédito não afeto ao consumo.

Em primeiro momento, o consignado criado pela lei 10.820/03, trata-se de uma lei permissiva e que estabelece regras restritivas para desconto direto do trabalhador em folha de pagamento das parcelas de empréstimos, financiamentos e outros meios de crédito concedidos por instituições financeiras, portanto, é uma lei que estabeleceu um meio de pagamento e não uma nova natureza de crédito,  logo, modificando o meio, não se altera sua finalidade e quão menos a sua origem”, continua e nunca perdeu sua natureza de consumo, vide Súmula 297 do STJ (O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras), mesmo porquê sua natureza de fato é o crédito pessoal ou o cartão de crédito, todos destinados ao consumo.

Atribui-se ao consignado a modalidade mais comum de emprestimos no mercado – o crédito pessoal - ofertado por todos os bancos e financeiras autorizadas no País, podendo ser contratado com o gerente nas agências bancárias, correspondentes bancários (famosos “Pastinhas”) , caixas eletrônicos, home Banking ou por aplicativos de celulares, por isso, por ser uma modalidade de crédito menos burocrática, de fácil contratação e sem solicitação de garantias (No caso do crédito consignado a garantia se substancia no débito da parcela direto na fonte de renda do trabalhador)

De maneira geral, esta modalidade de crédito não está vinculada à aquisição de um bem de valor, de algo que vá agregar na construção do patrimônio do tomador, neste caso, existem os créditos com garantias reais, onde o próprio bem patrimonial adquirido é a garantia da quitação do valor emprestado pelo consumidor, lembrando que trata-se de uma modalidade vedada a repactuação pelo Lei do Superendividamento, por sua própria excelência.

Neste exemplo, ficou muito claro como o Decreto interferiu drasticamente no texto de lei, provocando uma ruptura sistêmica do pronto de vista  do processo legislativo que praticamente modificou toda a  intensão abstrata da própria lei, portanto, esse comando por decreto resta-se claramente inconstitucional, segundo a regra pela qual para modificar uma lei , somente outra lei. Não houve respeito ao princípio da legalidade, à reserva legal, porquanto, os órgãos responsáveis pela regulamentação inovaram, foram além do legislador, inclusive mediante abstração, generalidade e autonomia do ato normativo secundário (DL 11.150/22) em detrimento ao que dispõe a lei 14.181/22 e a própria Constituição Federal (art. 5º, inc. XXXII).

DA CONCLUSÃO

Muito além de aplicação do percentual do salário mínimo para mensurar o mínimo existencial do cidadão contido no decreto 11.150/22 que sequer garante ao consumidor superendividado a manutenção de sua vida, fustigando, portanto, não apenas o direito fundamental à adequada alimentação senão demais direitos que compõem todo o arcabouço dos direitos fundamentais do cidadão, a fundamentação estrutural de nossa constituição é a preservação da dignidade humana.

A dignidade humana começa pela preservação da  própria vida; O que se tem hoje com o presente decreto é a desproporcionalidade de sua preservação, quando falamos de vida até mesmo em seu sentido estrito.

Utilizar-se como referência indexadora, mesmo que através de um ato normativo secundário emitido pela administração direta o própria salário mínimo, que como já diz, é o “mínimo” para garantias  de uma digna vida,  perde sua validade pelo próprio comando constitucional de vedação a utilização deste como indicie ou indexador financeiro, além da vedação legal  de um ato normativo secundário sobrepor, alterar, ampliar, modificar, um ato normativo primário (A Lei), a eficácia do Decreto não deve prosperar.

Por fim, não há qualquer evidência axiológica, constitucional, legal, principiológica que sustente a  validade do referido decreto junto ao Ordenamento Juridico Nacional, devendo de imediato ser declarado inconstitucional pela corte suprema através da provocação por entidades legitimadas pelos instrumentos de controles ADPF ou ADIN (Cabe um estudo mais amplo sobre qual controle de constitucionalidade ser aplicado), ou sua alteração/ revogação imediata, sob pena de subjugar a lei ao Decreto, a vontade Legislativa à Vontade executiva, o consumidor ao capital.

Moacir Jose Outeiro Pinto
Advogado Graduado pela Universidade Federal de Mato Grosso. Professor Universitário, Parecerista, Articulista, Palestrante, Escritor, Especialista em Direito Bancário, Empresarial e Constitucional.

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