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Confusão entre o fato gerador do IPTU e do ITCMD

Recentemente, o STF anulou a escorreita decisão plenária proferida sob a sistemática de repercussão geral no sentido de reafirmar a tese da não incidência do ITBI no compromisso de compra e venda, cujos direitos haviam sido cedidos, porque esse instrumento não transmite a propriedade imobiliária.

1/11/2022

Como se sabe há interminável discussão quanto à incidência ou não do ITBI sobre o compromisso de compra e venda.

As opiniões se dividem, mas essa questão não pode ser resolvida na base de preferência de cada autor.

Recentemente, o STF anulou a escorreita decisão plenária proferida sob a sistemática de repercussão geral no sentido de reafirmar a tese da não incidência do ITBI no compromisso de compra e venda, cujos direitos haviam sido cedidos, porque esse instrumento não transmite a propriedade imobiliária (ARE 1294969).

Essa acertada decisão foi anulada, por maioria de votos, sob o fundamento de que houve confusão processual, acolhendo os embargos declaratórios da Prefeitura com efeito infringente.

A Constituição Federal, em seu art. 156, I, abriga três hipóteses diferentes de incidência do ITBI:

a) transmissão de bem imóvel;

b) transmissão de direitos reais sobre imóveis;

c) cessão de direitos “a sua aquisição”.

Dúvida não resta a existência de três hipóteses diferentes de incidência do ITBI. Só que a última hipótese não pode ser lida sem conexão com as duas hipóteses antecedentes.

Não é qualquer cessão de direitos que provoca a incidência do imposto. A cessão de direitos autorais, a cessão de locação de espaço, a cessão de instrumentos agrícolas etc. não têm a menor relevância jurídica no campo do ITBI.

Somente a cessão de direitos imobiliários, sendo que a hipótese mais comum é a cessão de direitos e obrigações decorrentes de compromisso de compra e venda, é que provoca a deflagração do fato gerador do ITBI.

Para bem compreender a matéria sob exame é preciso recorrer a algumas noções de direito civil que são vinculantes dentro do direito tributário.

A definição de bem imóvel está prevista no art. 70 do CC. Sua transmissão somente se opera mediante o registro do título de transferência no registro de imóveis competente, conforme prescrição do art. 1.245 do CC.

Logo, escritura de compra e venda não registrada nada transmite. O comprador não adquire a propriedade do imóvel em sentido jurídico. Ele não passará de mero detentor da posse.

A definição de direitos reais sobre imóveis, por sua vez, está prevista no art. 1.225 do CC que enumera, dentre outros, o compromisso de compra e venda do imóvel.

Contudo, a aquisição do direito de propriedade somente ocorre com o registro do compromisso de compra e venda no registro imobiliário competente, conforme expressa o art. 1227 do CC.

Somente com o registro é que o compromisso de compra e venda assume a característica de direito real oponível erga onmes. Antes dele o compromisso de compra e venda caracteriza-se como mero direito pessoal, insuscetível de tributação por meio do ITBI.

Eventual inadimplemento obrigacional de compromisso não registrado deverá ser objeto de ação ordinária, não cabendo a adjudicação compulsória, reservada apenas ao detentor de direito real.

O Ministro Dias Toffoli, ao votar pela anulação da acertada decisão proferida no ARE 1294969, lembrou que além das duas hipóteses de transmissão retro apontadas há uma terceira hipótese de incidência do ITBI que é a cessão de direitos. A hipótese versada no julgado sob exame versava exatamente sobre essa cessão de direitos.

Como vimos, o que a Constituição permite tributar não é qualquer cessão de direitos, mas apenas a cessão de direitos imobiliários, o que se constata pela parte final do inciso I, do art. 156 que faz alusão a “cessão de direitos a sua aquisição”. Que aquisição? “Só pode ser aquisição de bem imóvel e aquisição de direitos reais sobre imóveis” que antecedem a expressão final “bem como cessão de direitos a sua aquisição”.

Os conceitos que derivam dos citados arts. 79, 1.245, 1.225 e 1.227 do Código Civil são vinculantes no direito tributário, por força do disposto no art. 110 do CTN:

“Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”.

Daí porque não é possível entender o ITBI sem prévio conhecimento das noções de direito civil.

A essa altura é oportuno distinguir o fato gerador do IPTU e do ITBI.

No momento em que estou escrevendo este artigo deparei-me com um texto de um articulista de direito tributário que citava o IPTU e o ITBI como impostos que incidem sobre a propriedade imobiliária.

Aliás, afirmações da espécie são corriqueiras confundindo o objeto de imposto com o seu fato gerador.

Realmente, não há dúvida que ambos os impostos – IPTU e ITBI – têm como objeto de tributação o bem imóvel, porém diferentes são os respectivos fatos geradores.

Enquanto no IPTU o fato gerador é o fato de alguém ser proprietário, titular do domínio útil ou possuir de bem imóvel (art. 29 do CTN), no ITBI o fato gerador é a TRANSMISSÃO, inter vivos e a título oneroso de um bem imóvel e de direitos a ele relativos (art. 35 do CTN).

Transmissão, como vimos, só ocorre com o registro do título de transferência (escritura de compra e venda, compromisso de compra e venda e cessão de direitos do compromisso) no registro imobiliário competente . Do contrário o IPTU confundir-se-ia com o ITBI caracterizando a bi-tributação.

Sem distinguir essas duas realidades, as discussões em torno da incidência ou não do ITBI no compromisso de compra e venda, bem como sobre a sua cessão jamais cessará.

O caso em que o STF está revendo a sua escorreita decisão proferida com efeito erga onmes somente poderá ser firmada a tese da incidência do ITBI se o compromisso estiver registrado para possibilitar, igualmente, o registro da respectiva cessão de direitos decorrentes do instrumento de compromisso de compra e venda, em obediência ao princípio da continuidade do registro que propicia a segurança jurídica a todos.

Sem o registro, o cessionário nada adquire, ou seja, não há transmissão suscetível de tributação pelo ITBI.

Kiyoshi Harada
Sócio do escritório Harada Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário pela USP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário - IBEDAFT.

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