Desde as eleições presidenciais de 2018, a democracia brasileira tem encontrado fortes desafios para lidar com os fenômenos das fake news e da desinformação. De forma praticamente instantânea, notícias falsas ou descontextualizadas se alastram, através de um clique, para incontável número de pessoas.
As consequências não poderiam ser mais graves: desconfiança com as urnas eletrônicas e com o processo eleitoral; estímulo à intolerância e à violência; desmoralização e instabilidade das instituições e da ordem democrática de direito.
A Constituição Federal de 1988 é clara ao garantir a soberania popular mediante eleições limpas, transparentes, periódicas e livres de fraudes.
Se, de um lado, deve-se coibir a manipulação informativa durante o período eleitoral, por outro, deve-se garantir que os debates na arena democrática aconteçam de forma livre.
A liberdade de expressão é das garantias constitucionais mais amplas e vastas, de modo que o combate à desinformação, especialmente durante o período dos pleitos eleitorais, tem se mostrado um desafio de altíssima complexidade. O que se busca é proteger a democracia, garantindo o acesso das pessoas a informações corretas, para que o debate público ocorra de maneira saudável, plural e pacífica.
Não temos dúvidas de que a divulgação massiva de informações inverídicas possui o condão de influenciar diretamente as escolhas da sociedade nos mais variados temas e que esse fenômeno tem impactado diversas nações democráticas. O cidadão tem o direito de ser bem informado e de se expressar.
Contudo, vale refletir se, sob a justificativa de protegermos a democracia, não estamos, em certa medida, afastando-nos de um dos princípios democráticos mais valiosos que existem, a liberdade de expressão?
Na última quinta-feira, dia 20, a eminente Ministra Cármen Lúcia afirmou, durante a sessão de julgamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre a decisão que suspendeu a monetização de canais de direita da rede YouTube e impediu a exibição de um documentário de um desses canais, que esse tipo de determinação judicial “pode ser um veneno ou um remédio” e que a proposta vigeria apenas até o 31 de outubro, dia subsequente ao segundo turno, para evitar o comprometimento da lisura, higidez e segurança do processo eleitoral e dos direitos dos eleitores.
A Ministra destacou a excepcionalidade e a gravidade da medida, referendada por 4 votos a 3, chamando a atenção para a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, “no sentido de impedimento de qualquer forma de censura”.
O posicionamento externado pela Ministra Cármen Lúcia encontra guarida no entendimento que Sua Excelência adotou ao longo de toda a sua trajetória na Suprema Corte brasileira.
No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade sobre as biografias não autorizadas (nº 4.815), a Ministra Cármen Lúcia, que foi relatora do caso, ressaltou que “sem verbo, há o silêncio humano. Às vezes desumano. Por isso, a Constituição da República e todos os textos declaratórios de direitos fundamentais, ou de direitos humanos, garantem como núcleo duro e essencial da vivência humana a comunicação, que se faz essencialmente pela palavra.”
Em outra oportunidade, durante debate de audiência pública que tinha como objeto a ADPF 619 – proposta contra decreto do atual Presidente da República que alterava a Estrutura do Conselho Superior do Cinema –, a Ministra enfatizou que o objetivo não era “debater a censura no cinema, pois censura não se debate, censura se combate”1.
A preocupação externalizada pela Ministra Cármen Lúcia na última sessão da Corte Eleitoral é uma cautela necessária. Ante o desafiador cenário eleitoral de 2022, importa ponderar quais as formas mais eficazes de se combater a desinformação, sem, todavia, comprometer a liberdade de expressão e de opinião.
Por isso, a Justiça Eleitoral, genuinamente preocupada com os efeitos deletérios da desinformação em massa, deve ter um olhar mais cuidadoso sobre as formas de coibir notícias falaciosas e a desinformação de modo geral, sob pena de se converter em um órgão de censura sobre toda e qualquer opinião divergente.
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1 Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=428765&ori=1. Acesso em 21 de outubro de 2022.