Migalhas de Peso

A credibilidade do Poder Judiciário mais uma vez em xeque

O julgado acrescentará novo ingrediente à demora e à infame eternização das execuções no país, sem contar nos gravosos prejuízos financeiros.

24/10/2022

No Brasil é pauta habitual as iniciativas de cunho legislativo e jurisprudencial para alçar a tão almejada efetividade das decisões judiciais em um cenário idealizado de segurança jurídica.

No compêndio desses passos despontaram, dentre outros, a repercussão geral no âmbito do Supremo Tribunal Federal e a lei dos Recursos Repetitivos no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, buscando a efetividade em um viés coletivo, além da criação de um órgão singular administrativo com o escopo de formular políticas e estratégias para garantir ao jurisdicionado uma resposta rápida e efetiva.

Se de um lado as notáveis implementações buscaram a efetividade, garantindo, supostamente, um prazo razoável para a entrega do bem da vida, também trouxeram consigo a possibilidade de legitimar verdadeiras injustiças à grande parcela da população brasileira.

Nos últimos dois anos, através dessas ferramentas garantidoras da efetividade e segurança jurídica, a sociedade brasileira experimentou com lamento e amargor dois julgamentos emblemáticos, através das sistemáticas adotadas pelo diploma processual, que baldam os pilares da segurança jurídica e se distanciam dos princípios mais comezinhos da Direito.

O primeiro é o julgamento do RE 574.706  que fixou a tese com repercussão geral a conhecida tese do século “O ICMS não compõe a base de cálculo para fins de incidência do PIS e da Cofins”  e surpreendentemente com ineditismo, já que desde a promulgação da Carta Maior em 1988 até 2021 ,embora a Corte Constitucional tenha julgado ao menos 10 (dez) casos de julgamento de inconstitucionalidade de tributos (RE 121.336, RE 150764-1, RE 153.771-0, RE 203.075,RE 357.950-9, RE 363.852, RE 559.937, RE 150.755-1 , RE 535.657 e RE 377.457-3), jamais teria aplicado os efeitos modulativos, afinal a lei inconstitucional nasce corrompida e não se torna viciada no curso de sua vida.

Não se podia imaginar que algo que foi injusto, ilegal e inconstitucional desde o nascedouro causando ferimentos cristalinos à sociedade, pudesse ser fantasiado por um manto de Constitucionalidade, por anos, em decorrência da ficção implementada pelo poder que a lei delegou a Corte Suprema.

Era e sempre será inconstitucional a norma reconhecida como tal, imaginar a criação de marcos temporais que deflagram injustiças entre os contribuintes desnaturam segurança jurídica e a efetividade que fomentaram as iniciativas processuais com objetivo nobre.

Mal nos recuperamos deste abalo fomos novamente golpeados, no último dia 19/10 do corrente ano,  foi possível desestabilizar ainda mais os pilares desgastados da segurança jurídica e efetividade jurisdicional, agora o tremor foi protagonizado pela Corte Especial do STJ, que por maioria mínima de votos (7 X 6), empreendeu drástica alteração de seu próprio entendimento jurisprudencial de décadas então cristalizado no Tema 677, que preconizava a exoneração da responsabilidade do devedor pelos consectários da mora após o depósito/penhora do montante executado. Ademais, negou o pedido de modulação de efeitos prospectivos, a se aplicar para todos os processos que possuem depósito/penhora em dinheiro objeto de custódia em instituições financeiras conveniadas com o Poder Judiciário.

O referido verbete rezava que “na fase de execução, o depósito judicial do montante (integral ou parcial) da condenação extingue a obrigação do devedor, nos limites da quantia depositada”. Em outras palavras, a posição pacificada era de que a responsabilidade pela correção monetária e pelos juros, após feito o depósito judicial, era da instituição bancária onde o numerário foi depositado, cessando a responsabilidade do devedor sobre tais rubricas acessórias.

A novel interpretação do Tema 677 seguirá agora com a seguinte redação: “Na execução, o depósito efetuado a título de garantia do juízo ou decorrente de penhora de ativos financeiros não isenta o devedor do pagamento dos consectários da sua mora, conforme previstos no título executivo. Devendo-se, quando da efetiva entrega do dinheiro ao credor, deduzir do montante final devido, o saldo da conta judicial".

Como visto, de forma diametralmente oposta, mesmo com o depósito/penhora do valor executado devidamente atualizado, não se afastará a mora do devedor, porquanto será exigível dele ao final – quando do levantamento da quantia depositada atualizada – da diferença dos juros remunerada a menor pela instituição financeira custodiante.

A guinada interpretativa não só contraria o próprio entendimento histórico do STJ de que o depósito judicial é ato jurídico de pagamento dotado de forma especial, como faz tábula rasa do art. 334 do Código Civil (“considera-se pagamento, e extingue a obrigação, o depósito judicial ou em estabelecimento bancário da coisa devida, nos casos e forma legais”).

O argumento principal utilizado é de que a mora não seria afastada até a disponibilidade fática do valor depositado ao credor. Com todas as vênias, não nos parece acertada tal razão, eis que cabe exclusivamente ao juízo executório a decisão sobre a entrega do valor executado ao credor, a fim de obviar a satisfação do seu crédito. Se é fato que enquanto não levantado o valor depositado este ainda não se integrou ao patrimônio do credor, é igualmente inegável que tal valor já não faz parte do patrimônio do devedor.

Além disso, não se pode perder de vista que o juro moratório é sanção que visa estimular o cumprimento do dever principal pelo devedor (art. 407, Código Civil) que, quando do depósito atualizado até a data da sua efetivação, deixa de ser imputado ao devedor, não podendo ser confundido com juro compensatório pela diferença dos critérios remuneratórios aplicados pela instituição financeira custodiante.

A despeito dos robustos fundamentos contrários à apertada votação pela mudança de entendimento, é certo que não se discute a aplicação de um preceito repetitivo judicial, porém a gravidade maior é que a súbita modificação verterá efeitos retrospectivos a todos os processos em curso no país, em que um sem-número de devedores realizaram depósitos plenamente confiantes e acobertados pelo consolidado entendimento anterior de décadas do próprio STJ.

Com efeito, a jurisprudência consolidada dos Tribunais Superiores, notadamente em verbetes vinculantes e repetitivos, é hodiernamente seguida pelos jurisdicionados não só em respeito a uniformização de posicionamentos judiciais, como um fim em si mesmo, mas claramente pela segurança jurídica de seus direitos e atos processuais confiados ao Poder Judiciário.

É dizer: todos os executados do país que realizaram depósito/penhora do valor executado, acreditando que estariam exonerados dos consectários legais posteriores a este ato, pois a cargo da instituição financeira custodiante, dada a posição pacificada e repetitiva do STJ neste sentido, foram surpreendidos de forma traiçoeira, com um brutal aumento de suas dívidas, que jamais imaginariam arcar pelo simples fato de exercer seu legítimo direito de defesa amparado em jurisprudência remansosa.

Os efeitos desta traição não serão suportados significativamente pelos grandes conglomerados empresariais ou instituições financeiras, mas sim pela maciça população brasileira tão massacrada pelas desigualdades sociais e carente de toda a forma de proteção, destacando que esse contingente que em 2020 contava com dívidas superiores a 192,33 bilhões1 e que agora terão significativo incremento de valor e eternização das dívidas, em muitos casos, cujos recursos já lhe foram tirados, mas mais uma vez, em decorrência da interpretação de um pequeno colegiado, agora menor que o primeiro mencionado anteriormente, que assim decidiu em nome da efetividade e proteção da sociedade.

É de fácil conclusão que além do caos processual que será criado em milhares de processos executivos, o julgado acrescentará novo ingrediente à demora e à infame eternização das execuções no país, sem contar nos gravosos prejuízos financeiros, os quais podem ser fatais a milhares de empresas e, sobretudo, a pessoas físicas, sem contar na (in)segurança jurídica impactada na sociedade – mais uma vez – por tal crise de credibilidade institucional.

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1 Fonte: Demonstrações Financeiras 2T20 - Banco do Brasil: notas 12.a e 21.a; Bradesco: notas 9.II e 21.b.IV; BTG Pactual:notas 10.c e 17.c; CEF: notas 8.a e 29; Itaú-Unibanco: notas 10.a, 29.b.III e 29.b.IV; Safra: notas 9.a e 15.c; e Santander:notas 8.d e 20.c.

Adriana Serrano Cavassani
Sócia do escritório Martins e Serrano Cavassani Sociedade de Advogados.

Silvio O. Martins Junior
Sócio do escritório Martins e Serrano Cavassani Sociedade de Advogados.

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