Migalhas de Peso

A jurisprudência do TST na defesa do devido processo legal

A luta, dentro dos tribunais, pela manutenção dos direitos e garantias fundamentais processuais é incessante e deve ser objetivo central de preocupação de todas as operadoras e todos os operadores do Direito.

21/10/2022

O processo já não é mais considerado, somente, como mero instrumento de realização de direitos, mas sim como um direito em si, que deve realizar o sobreprincípio da dignidade da pessoa humana. Nos dizeres do ministro Luiz Fux, no julgamento do REsp 612.108/PR: “Deflui da Constituição Federal que a dignidade da pessoa humana é premissa inarredável de qualquer sistema de direito que afirme a existência, no seu corpo de normas, dos denominados direitos fundamentais e os efetive em nome da promessa da inafastabilidade da jurisdição, marcando a relação umbilical entre os direitos humanos e o direito processual”1.

Nesse sentido, o princípio do devido processo legal está previsto expressamente no art. 5º, LIV, CF/88, diferentemente de Constituições brasileiras pretéritas, nas quais o princípio vigorava apenas de forma implícita. Para o ministro Gilmar Mendes, esta garantia fundamental está associada, justamente, à vontade constituinte de romper com a ordem política ditatorial anterior, caracterizada por abusos diversos, inclusive processuais2

Leciona o ministro Alexandre de Moraes que o devido processo legal deve assegurar ao indivíduo paridade total de condições com a parte adversa e plenitude de defesa, na qual estão inclusos o direito à defesa técnica, à publicidade no processo, à citação, à produção ampla de provas, ao processamento por juiz competente, aos recursos e à coisa julgada3. Assim, dele decorrem, como corolários diretos, os princípios da ampla defesa e do contraditório, conforme art. 5º, LV, CF/88.

Na esfera laboral o raciocínio não é diverso. Tanto é assim que a doutrina processual justrabalhista já sustenta a existência do princípio da função social do processo do trabalho, que envolve o prestígio à dignidade da pessoa do reclamante e do reclamado, bem como a paridade de armas e o acesso a uma ordem jurídica justa e à segurança jurídica, para que “os atos processuais sejam praticados de forma razoável e previsível, vedadas as surpresas aos jurisdicionados”4.

Nesse sentido, o TST tem papel central nesta busca pela função social do processo trabalhista. Tanto é assim que, em maio de 2022, aprovou o lema “o tribunal da justiça social” para uso institucional5. A ação do TST, no entanto, não fica apenas na esfera publicitária. Nos últimos anos, o Tribunal tem aperfeiçoado sua jurisprudência para coibir as mais diversas formas de cerceamento de defesa – a verdadeira antítese do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório. Os exemplos são inúmeros, mas cada um é importantíssimo para a construção de um arcabouço jurisprudencial que efetivamente privilegie o sobreprincípio da dignidade da pessoa humana e a função social do processo do trabalho.

No RR 0001784-87.2017.5.06.0013, apreciado pela 2ª turma, a relatora, ministra Delaíde Miranda Arantes, anulou o processo, apontando que, ainda que compita ao juiz indeferir as diligências inúteis ou meramente protelatórias, tal deve se dar em decisão fundamentada, “conjugada com o princípio do contraditório e da ampla defesa, na medida em que o direito à produção de prova é garantia constitucional que rege nosso ordenamento jurídico”6. Paralelamente, no RR 00015400-38.2008.5.02.0052, o ministro Mauricio Godinho Delgado conduziu voto que levou a 3ª turma a anular processo pelo indeferimento de perícia técnica para comprovação de doença ocupacional7. No mesmo sentido foi o ministro Breno Medeiros, na 5ª turma, no âmbito do RR 0000092-98.2016.5.08.01088.

Também na 5ª turma, o desembargador convocado João Pedro Silvestrin relatou o RR 0024772-59.2016.5.24.0006, no qual a reclamada havia perdido o prazo para apresentação de contestação, o que levou o juízo a quo a cancelar a audiência inaugural e decretar a revelia e a confissão quanto à matéria de fato. Neste caso, o TST reconheceu o cerceamento de defesa porque “não obstante a lei 13.467/17 ter facultado a apresentação de defesa de forma eletrônica, restou mantida a obrigatoriedade da realização de audiência inaugural com a concessão de prazo para a contestação após a tentativa infrutífera da conciliação”9.

No RR 0002552-30.2014.5.02.0433, por sua vez, a 2ª turma do TST anulou o processo porque, a despeito de o reclamante, em audiência, ter protestado contra o indeferimento do depoimento pessoal dos reclamados, deixou de alegar a nulidade por cerceamento de defesa em suas razões finais. O juízo a quo, então, considerou preclusa a alegação de cerceamento. O relator no TST, ministro José Roberto Freire Pimenta, contudo, reconheceu que “a parte deve arguir a nulidade na primeira vez em que tiver oportunidade de falar, seja em audiência, seja nos autos, não havendo exigência legal para que os protestos sejam renovados nas razões finais”10.

Já no RR 0011157-13.2019.5.15.0017, a ministra Dora Maria Costa reconheceu, no âmbito da 8ª Turma, a violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa ao relatar caso no qual a documentação juntada pela reclamada – essencial, naquele caso, para desempatar uma prova testemunhal dividida – não havia sido submetida ao contraditório do reclamante11. Em sentido similar, ocorrida na 5ª turma, no RR 0001419-11.2014.5.08.0004, verificou-se que não havia sido concedida, às agravantes, vista dos documentos pelos quais o regional, ao afastar a preliminar de inépcia da inicial e julgar o mérito da demanda, sem intimar os reclamados para conhecimento do seu teor, se baseara para manter a penhora do bem para fins de quitação dos débitos trabalhistas objeto da execução, acarretando, nas palavras do relator, ministro Breno Medeiros, prejuízo processual inconteste às executadas12.

A ampla defesa também foi reconhecidamente violada no ED-RR 1002019-63.2016.5.02.008413 e no RR 1000209-67.2015.5.02.051114, ambas por indevido indeferimento de juntada de novas provas. Quanto às testemunhas, o indeferimento de oitiva foi motivo do reconhecimento do cerceamento de defesa no RR 0154500-87.2012.5.17.000715 e no ARR 0000993-46.2011.5.15.002416. Além destes, no âmbito do RR 1002130-90.2016.5.02.0005, foi o indeferimento de perguntas sem a apresentação de fundamento relevante, pelo julgador, que se apresentou como motivo de nulidade processual17.

No RR 0000875-87.2012.5.04.0009, a ministra Katia Magalhães Arruda, no âmbito da 6ª turma, deu provimento ao recurso de revista patronal porque, no primeiro grau, o juízo indeferiu a oitiva de testemunha da empresa, posto que estava convencido de que as provas produzidas seriam favoráveis à reclamada, contudo, em sede de recurso ordinário, o Regional deu provimento ao apelo do reclamante, o que gerou, neste momento, prejuízo à reclamada, em razão da anterior ausência de oitiva de sua testemunha na audiência de instrução18.

Já no RR 0000533-09.2013.5.06.0002, foi provido, afastando-se a confissão ficta, o recurso de revista da parte que havia faltado na audiência de instrução porque, da comunicação de redesignação da audiência, não constou a advertência de que a parte revel teria tais efeitos materiais decretados contra si em caso de ausência19. O RR 0000562-08.2013.5.05.0028, por sua vez, foi provido porque a relatora, ministra Maria Helena Mallmann, reconheceu, no sentido da súmula 427, TST, que a intimação de advogado diverso daquele indicado expressamente nos autos é nula, salvo se constatada a inexistência de prejuízo20.

Por último, destaca-se o julgamento do RR 0004200-72.2006.5.05.0132, no qual a razão do cerceamento de defesa foi o indeferimento do pedido de sustentação oral formulado por advogado devidamente habilitado nos autos, ainda que este não tivesse previamente se inscrito para tanto, “por se tratar de prerrogativa jurídica de essencial importância que compõe o estatuto constitucional do direito de defesa”21.

O TST, significativamente bem municiado pela advocacia trabalhista brasileira, indubitavelmente faz muito pela valorização do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, contudo, apesar dos bons exemplos citados neste artigo, as ocasiões de vilipêndio a estas garantias – e, com elas, de ofensa ao próprio sobreprincípio da dignidade da pessoa humana – não são poucas, nas cortes pátrias22. A luta, dentro dos tribunais, pela manutenção dos direitos e garantias fundamentais processuais é incessante e deve ser objetivo central de preocupação de todas as operadoras e todos os operadores do Direito.

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1 REsp 612.108/PR. Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, STJ, j. 02 set. 2004, DJ 03 nov. 2004, p. 147 (Trecho do voto do Min. Luiz Fux, p. 30 e 31).

2 MENDES, Gilmar. Comentários ao art. 5º, XXXV, CF. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes, et al. Comentários à Constituição do Brasil. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva Educação, p. 458-463, 2018, p. 460.

3 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 30ª ed. rev. amp. São Paulo: Atlas, 2014, p. 110.

4 PEREIRA, Leone. Manual de Processo do Trabalho. 6ª ed. São Paulo: SaraivaJur, 2019, p. 111-112.

5 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Notícias do TST. TST aprova lema “o tribunal da Justiça Social” para uso institucional. Disponível em: https://www.tst.jus.br/-/tst-aprova-lema-o-tribunal-da-justi%C3%A7a-social-para-uso-institucional%C2%A0. Acesso em 18 out. 2022.

6 RR nº 0001784-87.2017.5.06.0013, 2ª Turma, TST, Rel. Min. Delaíde Miranda Arantes, DEJT 2/10/20.

7 RR nº 0015400-38.2008.5.02.0052, 3ª Turma, TST, Rel. Min. Mauricio Godinho Delgado, DEJT 19/3/21.

8 RR nº 0000392-98.2016.5.08.0108, 5ª Turma, TST, Rel. Min. Breno Medeiros, DEJT 13/12/19.

9 RR 0024772-59.2016.5.24.0006, 5ª Turma, TST, Rel. Des. Conv. João Pedro Silvestrin, DEJT 23/10/20.

10 RR 0002552-30.2014.5.02.0433, 2ª Turma, TST, Rel. Min. José Roberto Freire Pimenta, DEJT 25/5/18.

11 RR 0011157-13.2019.5.15.0017, 8ª Turma, TST, Rel. Min. Dora Maria da Costa, DEJT 18/9/20.

12 RR 0001419-11.2014.5.08.0004, 5ª Turma, TST, Rel. Min. Breno Medeiros, DEJT 5/6/20.

13 ED-RR 1002019-63.2016.5.02.0084, 2ª Turma, TST, Rel. Min. José Roberto Freire Pimenta, DEJT 26/6/20.

14 RR 1000209-67.2015.5.02.0511, 6ª Turma, TST, Rel. Min. Katia Magalhães Arruda, DEJT 17/4/20.

15 RR 0154500-87.2012.5.17.0007, 2ª Turma, TST, Rel. Min. Delaíde Miranda Arantes, DEJT 30/8/19

16 ARR 0000993-46.2011.5.15.0024, 2ª Turma, TST, Rel. Min. Delaíde Miranda Arantes, DEJT 9/1/18.

17 RR 1002130-90.2016.5.02.0005, 2ª Turma, TST, Rel. Min. José Roberto Freire Pimenta, DEJT 14/2/20

18 RR 0000875-87.2012.5.04.0009, 6ª Turma, TST, Rel. Min. Katia Magalhaes Arruda, DEJT 27/4/18.

19 RR 0000533-09.2013.5.06.0002, 2ª Turma, TST, Rel. Min. Delaíde Miranda Arantes, DEJT 22/2/19.

20 RR 0000562-08.2013.5.05.0028, 2ª Turma, TST, Rel. Min. Maria Helena Mallmann, DEJT 23/11/18.

21 RR 0004200-72.2006.5.05.0132, 5ª Turma, TST, Rel. Min. Breno Medeiros, DEJT 5/10/18.

22 MIGALHAS. Mudanças nas sustentações orais têm provocado problemas no STJ. Reportagem de 18 out. 2022, atualizada em 19 out. 2022. Disponível aqui

23 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 30ª ed. rev. amp. São Paulo: Atlas, 2014.

24 PEREIRA, Leone. Manual de Processo do Trabalho. 6ª ed. São Paulo: SaraivaJur, 2019.

25 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Notícias do TST. TST aprova lema “o tribunal da Justiça Social” para uso institucional. Disponível em: https://www.tst.jus.br/-/tst-aprova-lema-o-tribunal-da-justi%C3%A7a-social-para-uso-institucional%C2%A0.

26 MENDES, Gilmar. Comentários ao art. 5º, XXXV, CF. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes, et al. Comentários à Constituição do Brasil. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva Educação, p. 458-463, 2018.

27 MIGALHAS. Mudanças nas sustentações orais têm provocado problemas no STJ. Reportagem de 18/10/22, atualizada em 19/10/22. Disponível aqui.

 

Caio Neno Silva Cavalcante
Advogado, sócio do escritório Ophir Cavalcante Advogados Associados, e mestrando em Direito, Estado, Tributação e Desenvolvimento pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Brasília (PPGD-UCB).

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