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Indenização nos casos de estelionato sentimental. Do amor à fraude

Existindo comprovação de que houve a extrapolação dos limites da boa-fé objetiva resultando no abuso de direito, é certo que restará configurada a ilicitude dessa conduta abusiva que resultou em dano e vantagem ilícita.

19/10/2022

Circula na internet uma notícia recente acerca da prisão de um rapaz que foi apelidado de “galã do Tinder”, suspeito de aplicar golpes em mulheres com boas condições financeiras, por meio da promessa de um relacionamento amoroso. Após conquistar a confiança das vítimas, o cidadão passava a pedir a transferência de valores, levando-as a experimentar prejuízos de ordem tanto material quanto moral. Tal caso é apenas um entre os diversos enfrentados pelos Tribunais Pátrios, sendo que inúmeras vítimas, muitas vezes por vergonha da situação, não procuram a autoridade policial para proceder com a devida denúncia. Muito além das consequências criminais, diversas pessoas não sabem que tal prática pode resultar, também, na responsabilização na seara cível.

Como é cediço, o estelionato puro encontra previsão no art. 171, caput1, do Código Penal, e se caracteriza quando o sujeito violador do direito, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante qualquer atitude fraudulenta, busca obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio. Acompanhando o entendimento jurisprudencial, cumpre trazer à tona os ensinamentos de André Estefam2, que trata da prática do estelionato:

O sujeito passivo é despojado de seus bens depois de seduzido pela sagacidade do agente, que o induz a erro, prejudicando sua percepção da realidade. O vocábulo estelionato origina-se, etimologicamente, de stellionatu (ou seja, pertencente ou relativo ao stellio ou Laudakia stellio, espécie de lagarto que muda de cor para iludir os insetos dos quais se alimenta).

Desse modo, extrai-se da leitura do texto legal que, para que haja o reconhecimento do estelionato, é necessário que o agente causador do dano aja com o intuito de lesar, de maneira consciente, a vítima. Tal dispositivo legal serve como parâmetro interpretativo na seara cível.

No âmbito da responsabilidade civil, a prática denominada estelionato sentimental – também conhecida como estelionato afetivo, golpe do “Don Juan” ou romance scam – pode ser compreendida como um ato ilícito (art. 186 do CC), praticado com o intuito de abusar do direito (art. 187 do CC), e que possui o condão de resultar em vantagem indevida por parte de uma das partes em detrimento da outra, durante um envolvimento amoroso. Concretiza-se, em regra, quando o ofensor se utiliza da confiança depositada e do sentimento amoroso do parceiro, de maneira dolosa, para obter vantagens econômico-financeiras para si ou para outrem, mediante falsas promessas. Em muitas ocasiões, o estelionatário se vale da situação sentimental e da confiança depositada pela vítima em si, para convencê-la de que ela precisa disponibilizar as quantias solicitadas para manter a relação, ou, mais ainda, solicita um “auxílio” financeiro prometendo que no decorrer da relação irá proceder com a devolução da monta, configurando explorações psicológica e financeira.

Muito embora tal prática não disponha de previsão específica vigente, existindo apenas a tramitação do projeto de lei 6.444/19, que visa regulamentar a situação, há longa data os Tribunais Pátrios vêm atribuindo contornos e definições ao estelionato amoroso, justamente visando garantir que não ocorrerão arbitrariedades e, de igual modo, que existirá um respaldo mínimo para condenações dos ofensores pela prática.

Nessa linha, visando apresentar uma visão prática e voltada à aplicação do instituto, traz-se à tona o voto do ilustre Desembargador Willian Silva, do Egrégio Tribunal de Justiça do Espírito Santo, que nos autos de apelação criminal 0351404291313, consignou que a prática do estelionato sentimental se configura: “quando a vítima é induzida a erro quanto às intenções do pretendente e, com base na confiança plena estabelecida dentro de um relacionamento amoroso, sofre perdas, especialmente patrimoniais”.

No mesmo seguimento, o ilustre Desembargador Marcelo Gobbo Dalla Dea, do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, ao relatar os autos 0029236-17.2016.8.16.0001, expôs que a prática do estelionato sentimental restará caracterizada somente quando existir comprovação do abuso de confiança e a promessa de devolução da monta disponibilizada, conforme se extrai da ementa citada a seguir:

Apelação Cível. AÇÃO DE COBRANÇA. ESTELIONATO SENTIMENTAL. TÉRMINO DE RELACIONAMENTO AMOROSO. DANOS MATERIAIS. COMPRA DE BENS DURÁVEIS NA VIGÊNCIA DO RELACIONAMENTO. ALEGAÇÃO DE QUE A AUTORA TERIA ARCADO SOZINHA COM O PAGAMENTO DOS BENS, TENDO REALIZADO INCLUSIVE EMPRÉSTIMO FINANCEIRO PARA QUITAÇÃO DOS DÉBITOS. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DO PREJUÍZO PATRIMONIAL, VÍNCULO AFETIVO, JUSTA EXPECTATIVA DE DEVOLUÇÃO DE VALORES e abuso do direito. requisitos preenchidos em relação à compra de automóvel pelo réu. prova produzida nos autos que demonstra que o apelado assumiu o dever de pagamento do emprÉstimo financeiro adquirido pela autora com o objetivo de adquirir veículo automotor, O qual se encontra em posse do réu. vedação ao enriquecimento ilícito. demais danos patrimoniais não comprovados. redistribuição da sucumbência. recurso parcialmente provido.1. O juízo fica vinculado aos fatos podendo atribuir qualificação jurídica que entender correta (hipótese consubstanciada pelo brocado “da mihi factum, dabo tibi ius”, ou seja, dá-me os fatos que te dou o direito). Embora inexista previsão legal, o estelionato sentimental vem ganhando espaço na doutrina e jurisprudência, acompanhando a evolução do comportamento humano e das relações afetivas. 2. Para a caracterização do estelionato sentimental, na esfera cível, pode-se dizer que é imprescindível que haja a comprovação de abuso de confiança, nas relações afetivas, de modo a provocar na vítima o prejuízo patrimonial e a promessa, pela parte que recebe a vantagem pecuniária, de devolução ou pagamento futuro, criando justa expectativa. 3. A partir da análise das mensagens trocadas entre as partes, vislumbra-se que o réu assumiu a responsabilidade pelo pagamento da dívida do cartão de crédito do Banco do Brasil quando sugeriu o refinanciamento da dívida, criando, via de consequência, a justa expectativa na autora. Aliado a isto, consta no Contrato de Compra e Venda de Veículo de mov. 1.15 que o valor negociado seria de R$ 14.500,00, o qual seria pago da seguinte forma: R$ 4.500,00 em dinheiro e R$ 3.000,00 no cartão de crédito da Sra. Patrícia Alves Ribeiro. O contrato foi assinado pela autora, em data de 19/10/12. Neste mesmo dia, consta que a autora realizou o empréstimo da quantia de R$ 4.524,00 junto ao Banco do Brasil (mov. 1.16), valor este que coincide com o valor entregue na compra do veículo.4. Diante deste cenário, vislumbra-se que a autora logrou êxito em comprovar o desembolso da quantia de R$ 7.500,00, qual foi destinada unicamente a beneficiar o réu. Assim, sob pena de enriquecimento ilícito da parte beneficiada, impõe-se o dever de restituição, conforme disciplina dada pelo art. 927 do Código Civil.5. Destarte, o valor deve ser corrigido monetariamente da data do desembolso (19/10/12) e acrescido de juros de mora a partir da citação (18/1/17).

(TJPR - 18ª C.Cível - 0029236-17.2016.8.16.0001 - Curitiba -  Rel.: DESEMBARGADOR MARCELO GOBBO DALLA DEA -  J. 1/2/21)

Tal como se depreende do julgado acima, é necessário ter cautela na identificação dos casos de estelionato sentimental, pois não se pode confundir uma mera decepção amorosa corriqueira com a prática de um ato ilícito fraudulento, passível de responsabilização, sendo necessário um amplo respaldo probatório para viabilizar o reconhecimento da prática ilegal que leve, por via de consequência, a uma condenação.

Nessa linha de argumentação, segundo o respeitável Desembargador Alcides Leopoldo, do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, relator da apelação cível 1019107-05.2020.8.26.0554, existe certo padrão no que tange à prática do estelionato sentimental, conforme se extrai do seguinte trecho do julgado indicado:

A forma como se opera obedece a certo padrão: uma das partes, percebendo a vulnerabilidade emocional e psicológica da outra, envolve-se amorosamente com esta, em um relacionamento de curto a médio prazo, com o fim de obter vantagem econômica, prometendo devolução, e encerrando o relacionamento de forma abrupta e injustificada, o que, da cuidadosa análise dos autos, se verificou no caso.

Desse modo, em observância aos julgados relatados, é possível sustentar que para caracterização do estelionato sentimental na esfera cível, é imprescindível a comprovação do abuso de confiança, de maneira que resulte em prejuízo patrimonial para um dos parceiros, e enriquecimento ou vantagem patrimonial decorrente desta situação ao outro, mostrando-se necessária a existência de provas quanto à promessa de restituição dos valores ou, de igual forma, de um futuro compromisso, que deixou de se concretizar após as concessões, frustrando uma justa expectativa. No acórdão 866800 (TJDF), é possível visualizar bem a questão relacionada com as provas, pois na situação houve a condenação do Requerido pela prática de estelionato sentimental, por haver “[...] diversas mensagens nas quais o apelante-réu solicitava concessões financeiras por parte da apelada-autora, com promessas de restituição, tudo isso em meio a declarações amorosas e sinais de confiança conquistada à custa da vítima”.

Assim, existindo comprovação de que houve a extrapolação dos limites da boa-fé objetiva (violação ao princípio da lealdade), com vistas à obtenção de vantagem indevida, resultando no abuso de direito (art. 187 do CC), é certo que restará configurada a ilicitude (art. 186 do CC), emergindo, dessa conduta abusiva que resultou em dano e vantagem ilícita, o dever de indenizar (art. 927 do CC). Caberá ao autor da demanda demonstrar, por meio das mais variadas provas (mensagens de texto, e-mails, testemunhas etc.), o envolvimento amoroso, o intuito fraudulento, e que eventuais valores emprestados seriam devolvidos de alguma maneira, seja em pecúnia, seja com promessas promissoras, a fim de que seja possível reconhecer o dever de indenizar.

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1 Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:

Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis. 

2 Direito Penal, Parte Especial, Ed. Saraiva, 2ª edição, 2012, p. 496.

3 TJ/ES, Classe: Apelação Criminal, 035140429131, Relator : WILLIAN SILVA, Órgão julgador: PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL, Data de Julgamento: 10/8/22, Data da Publicação no Diário: 23/8/22

Mayara Santin Ribeiro
Advogada, membro do escritório Reis & Alberge Advogados, pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela UCM e em Direito das Famílias e das Sucessões pela UTP.

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