O Código Penal de 1940 em atual vigência no Brasil dá ao bem jurídico vida o maior grau de proteção no ordenamento jurídico. Conforme Nélson Hungria, idealizador do Anteprojeto do Código Penal de 1940, o bem vida é o bem jurídico de interesse do indivíduo material pessoal: para Hungria, os crimes contra a vida são os que atentam diretamente ao bem jurídica vida, que é o supremo bem individual.
Nesse sentido, inicialmente na Parte Especial do Código Penal, o primeiro título trata dos crimes contra a pessoa e, o primeiro capítulo dos crimes contra a vida, estando disposto no art.122, caput, do CP a seguinte redação: “Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou a praticar automutilação ou prestar-lhe auxílio material para que o faça”; sendo assim, o auxílio médico ao suicídio o ponto fulcral alvo do presente trabalho.
O tema “eutanásia” é alvo de divergências doutrinárias e objeto de estudo de diversas áreas de aplicação. Uma leitura a partir da Constituição Federal de 1988 nos permite evocar o art.1, III da Constituição Federal tendo que a dignidade da pessoa humana é o princípio basilar e norteador dos direitos fundamentais. Ao lidar o art.1º, III, Constituição Federal c/c o art.5º, III, Constituição Federal é possível chegar à conclusão de que não ter a alternativa de se livrar de tratamento desumano ou degradante vai contra a Constituição e, nessa perspectiva, a vedação a optação pela eutanásia seria um desacordo estatal perante a Carta Magna.
Alguns esclarecimentos sobre o que é a eutanásia são importantes para o presente artigo, nesse ínterim, a eutanásia ter dois sentidos:
O sentido amplo e o sentido estrito. Em seu sentido amplo a eutanásia consiste em condutas comissivas e omissivas a doentes terminais; já em sentido estrito consiste em conduta ativa direcionado a pacientes em estado terminal em que a morte é inevitável e acontecerá em breve.
Atualmente, o sentido estrito da eutanásia que é o cerne de todo o debate não só jurídico, mas também médico, religioso, ético etc., e por conta da quantidade de áreas interessadas em opinar acerca da eutanásia o torna mais difícil de chegar a uma conclusão justa sem que seja maculada por pontos de vista pessoal.
Neste ínterim, também se faz importante distinguir:
Eutanásia, ortotanásia, suicídio assistido e distanásia. A eutanásia consiste em aceleração da morte em decorrência de doença incurável e degenerativa; já a ortotanásia é a prática de dar fim aos meios de sobrevivência artificiais e deixar que a morte chegue no tempo chegaria caso não fosse adiada por meio de medicamentos, meios artificiais de respiração etc., é a morte natural sem a interferência de técnicas científicas. Enquanto que o suicídio assistido é a prática de disponibilizar a qualquer paciente, independente de doença física, o meio de dar fim a própria vida. E, por fim, a distanásia é a utilização excessiva da ciência para prolongar a vida de um paciente com doença incurável aumentando assim, o seu sofrimento.
Um breve esclarecimento sobre a ortotanásia:
A ortotanásia no Brasil passou a ser permitida após longo debate judicial entre o Conselho Federal de Medicina (CFM) e o Ministério Público Federal (MPF); tudo começou com a Resolução 1.805/2006 do CFM que dispunha da seguinte Ementa:
Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal.1 O Ministério Público Federal (MPF) foi contra a resolução e começou então uma disputa judicial que, somente em 2010 com nova declaração do MPF declarando-se a favor da Resolução 1.805/2006 foi concedida a legalidade da resolução. Com isso, a eutanásia passiva que consiste na modalidade de ortotanásia não é mais alvo de desentendimento legal e ético.
Passado esse esclarecimento, tem-se que a eutanásia passiva já tem seus debates pacificados a partir da Resolução 1.805/06, sendo a eutanásia ativa a questão a ser discutida. Entende-se por eutanásia ativa o ato de proporcionar a alguém que está com doença terminal ou incurável uma morte indolor. Cabe ressaltar que a morte irá chegar mediatamente e a eutanásia pacífica somente aliviaria o sofrimento que haveria em esperar a morte natural chegar. Nem sempre a cura de uma doença é sanar, pode acontecer que a cura de uma doença seja aliviar as dores decorrentes dela.
A discussão em torno da eutanásia ativa se faz cada vez mais presente na sociedade pelo fato de as pessoas estarem vivendo mais. Hoje, a expectativa de vida do brasileiro está entre 60 e 80 anos, sendo necessário ressaltar que a possibilidade de viver mais traz consigo o ônus das doenças degenerativas. Nessa perspectiva de avanço e 1 & vide=sim modernidade, os meios para tratamentos de doenças também avançaram, a ciência hoje é capaz de oferecer modernos meios para manter uma vida de forma artificial.
Diante de tamanho avanço e autonomia do ser humano, surgiu a figura do testamento vital legalizado no Brasil em que a A Resolução n° 1.995/2012 do CFM em seu art. 1° contém a seguinte disposição: Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.2 Por meio dessa resolução, surgiu no Brasil a possibilidade de escolher as diretrizes a serem tomadas pelo paciente antes do mesmo ficar incapaz por meio do chamado Testamento Vital.
A figura do Testamento Vital tem sua base na autonomia da vontade e deverá ser feito por agente capaz em que o mesmo dispõe no documento se quer que seja tentado a qualquer custo o prolongamento de sua vida ou não. Contudo, se a pessoa dispor no documento que quer que seja aplicada a eutanásia em seu quadro médico diante de doença incurável em estado terminal, a autonomia da vontade é suprimida em prol dos limites estabelecidos pelo Estado, surgindo então o embate entre a autonomia da vontade e o controle estatal.
Diante das questões que surgiram a partir da discussão da eutanásia, doutrinadores se debruçaram sobre o tema e aqui serão citados alguns a fim de que seja estimulado o desenvolvimento. Dessa forma, serão três posições a favor da eutanásia e duas posições contra. Iniciando a partir de Claus Roxin que em sua obra Estudos de Direito Penal defende que a eutanásia viabiliza a morte com dignidade da pessoa humana. Diante de morte iminente a eutanásia somente aceleraria o processo. Há de se relevar que a doutrina majoritária alemã defende que em razão do consentimento (que pode ser expresso ou presumido) quanto a eutanásia, o homicídio seria impunível pois pondera-se que a vontade de viver daria lugar a vontade de não sofrer. Roxin também argumenta que as pessoas que defendem a ilimitada proteção da vida estão carregadas de emoções e acabam não sendo capazes de se despir de seus sentimentos para que o tema não seja tratado do ponto de vista emocional, mas sim objetivo. Os defensores do prolongamento do paciente terminal são aqueles que jamais perdem a esperança de que uma cura apareça ou um 2 milagre aconteça. O direito alemão não pune o auxílio ao suicídio de paciente gravemente adoentado, desde que se trate de pessoa sã e sem tendências suicidas.
Saindo da doutrina internacional e chegando na brasileira, Guilherme Nucci defende que a eutanásia não é a antecipação da morte, mas sim uma morte tranquila. O meio jurídico conservador considera a eutanásia homicídio privilegiado por relevante valor moral, sendo esses mesmos conservadores os que condenam a eutanásia que dá fim ao sofrimento, mas que não há problema na distanásia que prolonga o sofrimento de forma desnecessária. Sustenta também que o direito não deveria ser quem regra o momento da morte de alguém, mas sim, o meio de permitir ao sujeito moribundo a escolha por uma morte digna. Além disso, diz que o aspecto religioso em torno do tema o torna mais difícil de ser debatido de forma neutra por conta da pressão dos religiosos. Considerando inviável forçar alguém em estado terminal a ter um final de vida sofrido apenas esperando que a morte chegue.
Já no artigo A vida como ela é:
Dignidade e autonomia individual no final da vida de Luís Roberto Barroso e Letícia de Campos Velho Martel, podemos extrair alguns ensinamentos, dentre eles temos que o avanço da tecnologia permite o prolongamento excessivo da vida daqueles que já estão à beira da morte e que a eutanásia seria uma escapatória do prolongamento excessivo da vida de pessoas em estado terminal ou vegetativo permanente. Considerando a defesa do estado quanto ao bem jurídico vida, a qualquer custo, marca bem o caráter paternalista estatal adotado e que, a deontologia médica exalta a autonomia, liberdade e diálogo com o paciente.
Atribui-se a cultura brasileira de supervalorização da vida uma decorrência do cunho religioso que ainda existe no Estado que deveria ser laico. Quanto aos tratamentos invasivos e humilhantes, a dignidade da pessoa humana protege a liberdade e a inviolabilidade do indivíduo quanto a sua desumanização e degradação pois, nesse caso, o indivíduo não estaria sendo um fim em si mesmo, mas sim, instrumento de vontade alheia. Na sua expressão mais essencial, a dignidade significa que cada pessoa é um fim em si mesmo sendo assim responsável por sua própria vida a partir de seus valores e objetivos, como regra geral, as decisões cruciais da vida de uma pessoa não devem ser impostas por uma vontade externa a ela, as pessoas têm o direito de eleger os seus próprios projetos existenciais. Podendo a dignidade se dar por autonomia ou por heteronomia; por autonomia seria a capacidade de autodeterminação sendo a dignidade como autonomia o tema central da eutanásia e; por heteronomia seria a visão da dignidade ligada a valores compartilhados pela comunidade antes das escolhas individuais, nesse caso, a dignidade por heteronomia moldaria o conteúdo e limitaria a liberdade; no Brasil, a Constituição Federal de 1988 dá viés de autonomia a dignidade da pessoa humana com alguma permeabilidade da heteronomia. Nesse sentido, a autonomia dá ao indivíduo a possibilidade de escolher o que considera melhor para si. Ou seja, a eutanásia deveria ser permitida como uma alternativa rara, tendo critérios estabelecidos previamente para essa escolha pelo paciente que, quando atendessem a essas expectativas poderiam escolher previamente ou no momento da situação incurável como quer prosseguir.
Em sentido contrário a eutanásia, Genival Veloso de França em seu livro Direito Médico faz algumas considerações que serão aqui ressaltadas. Considera incorreto o uso do termo “direito de matar” ou “direito de matar” pois “direito” denota um princípio cristalino entre os homens e nesse sentido, alega que a eutanásia é sempre um homicídio. Além disso, considera que existe um conflito inerente a discussão que é a preservação da vida versus o alívio da dor e que, nesse embate, a vida deverá prevalecer pois a dor não tem grau tabelado sendo única a cada indivíduo, um estado de emoção, em que uns são mais e outros menos resistentes.
Interessante ponto a ser observado é que mesmo defendendo que a legalização da eutanásia daria aos médicos um sentimento de soberania em razão de quais vidas serão vividas, o mesmo traz a informação de que a eutanásia só passou a ser condenada pela sociedade e, em consequência, pelos homens da lei, a partir do avanço das religiões, principalmente o cristianismo e o judaísmo. Outro argumento é que a medicina não é capaz de trazer de volta quem foi levado por uma aceleração da morte em causa do avanço de uma doença que, pode vir a ser descoberto a sua cura dias após a morte; defendendo também que a incurabilidade é relativa pois a cura que não existe hoje pode vir a existir amanhã; o sofrimento não constituiria termômetro seguro pois haveria certa transformação da dor em problema de ordem técnica; e que é desumano que a morte deva ser aplicada a uma pessoa que em razão de sua doença passou a ser considerada inútil. A vida humana independeria de qualidade; a qualidade de vida não está relacionada com a capacidade habilidosa, pois o ser humano existe para realizar o seu destino enquanto criatura e; o atrelamento da dignidade com a liberdade não se alinha, em muitas vezes, com o interesse comum. Genival considera inaceitável qualquer forma de eutanásia mas aceita a ortotanásia pois considera inútil manter a vida nos casos em que a pessoa não teve a sua morte ainda por conta da ajuda de meios artificiais.
Por fim, Leslei Lester dos Anjos Magalhães em seu livro O princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à vida considera que a eutanásia pode ser classificada como um homicídio doloso ou um suicídio assistido e que, aborto e eutanásia são assuntos sobre vidas que não “merecem” ser vividas e que a dor não deve ser elemento exclusivo que qualifica a dignidade de uma morte. Faz interessante apontamento quanto ao ponto de vista econômico em que diz que o Estado nunca deveria sopesar a vida de uma pessoa com base no valor dos gastos hospitalares e de tratamento pois isso transformaria as pessoas em mercadorias e que, uma lei que autorizasse a eutanásia estaria criando novos possíveis conflitos no direito de família por conta do interesse verdadeiro por trás da decisão de optar pela eutanásia do familiar adoentado. Concluindo, Leslei também é contra a prática de eutanásia.
Na prática judicial brasileira, é raro encontrar jurisprudência quanto a eutanásia até mesmo por se tratar de uma prática ilegal que para ser executada deve ser feita por médico e são poucos os que arriscam suas carreiras em prol da eutanásia.
No Agravo Regimental no Mandado de Injunção (MI) nº 6.825 DF3 perante o Supremo Tribunal Federal (STF) de relatoria do Ministro Edson Fachin era requerido o direito a morte digna em razão de lacuna legislativa quanto a eutanásia e sustentado pelo princípio da dignidade humana, o Agravo Regimental foi indeferido pelo Ministro relator. Contudo, é interesse observar aqui que o Ministro Luís Roberto Barroso em seu voto sustentou que existiria sim direito a morte digna quando o paciente sofre de doença em estado terminal ou estado vegetativo permanente em razão da autonomia da vontade que decorre do princípio da dignidade humana, mesmo votado no sentido de indeferir o Agravo Regimental em razão da doença do paciente que sofreu a eutanásia não estar em estado terminal ou estado vegetativo permanente, o Ministro Barroso levou então ao STF posição favorável a eutanásia.
Já no Habeas Corpus 104.963 PR, o pedido do HC4 se dava em razão do advogado estar com a inscrição da OAB cancelada e o cliente alega desconhecimento, no caso em tela, o advogado defendia médico acusado de praticar eutanásia em, pelo menos, três pacientes na década de 90 em seu próprio hospital. Somente em 2007 houve o pedido de prisão3 4preventiva do médico por não ter comparecido ao seu próprio julgamento e, enquanto esperava a sentença, o médico se elegeu vereador. Alegada a nulidade da ação penal pelo réu a partir do interrogatório, o Habeas Corpus não foi concedido pelo STF pois o mesmo analisou e afirmou que o caso não foi comprometido em razão do cancelamento da inscrição na OAB do advogado.
Cristalino então que, existem bons argumentos quanto de quem é a favor e de quem é contra a eutanásia, mas também é notório que a discussão em torno do assunto deveria ser feita pelos entes diretamente ligados ao tema sem interferência das preferências pessoais de cada, um debate neutro e isento de crenças. A dignidade da pessoa humana pode ser evocada por ambos os lados, mas, a dignidade de viver deveria também significar a dignidade de morrer e que, quando o momento terminal chegasse, o moribundo tivesse a oportunidade de optar pelo seu futuro. A discussão em torno da eutanásia ativa é um terreno espinhoso também porque os mesmos que debatem a eutanásia não são alvo de doenças degradantes que tiram o seu ar a cada segundo mais.
_________________
1 - http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=PesquisaLegislacao&dif=s&ficha=1&id=6640&tipo=RESOLU%C7 %C3O&orgao=Conselho%20Federal%20de%20Medicina&numero=1805&situacao=VIGENTE&data=09- 11-2006
2 - https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2012/1995
3 - http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749934134
4 - http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=5675591
_________________
ALENCAR, Paula Gabriella Ribeiro Dorigatti de. O Direito à Vida. Âmbito Jurídico, 2016. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-constitucional/o[1]direito-a-vida/. Acesso em: 30 de nov. 2020.
BARROSO, Luís Roberto; MARTEL, Letícia de Campos Velho. A morte como ela é: dignidade e autonomia inidividual no final da vida. Revista da Faculdade de Direito de Uberlândia, Minas Gerais, v. 38, p. 235-274, 2010.
FRANÇA, Genival Veloso de. Direito Médico. 16ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2020. HUNGRIA, Nélson; JÚNIOR, Miguel Reale; SOUZA, Luciano Anderson. Comentários ao Código Penal. 5ª edição. Rio de Janeiro: GZ, 2018. Vol. 5.
MAGALHÃES, Leslei Lester dos Anjos. O princípio da pessoa humana e o direito à vida. São Paulo: Saraiva, 2012.
MARTINS, Carlos Eduardo. Ordenamento jurídico brasileiro aceita ortotanásia. ConJur, 2013. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2013-set-17/carlos-martins[1]ortotanasia-aceita-nosso-ordenamento-juridico>. Acesso em: 30 de nov. 2020.
NEGRELLI, Ana Vasconcelos. Testamento vital: um documento jurídico válido e eficaz. Migalhas, 2019. Disponível em: . Acesso em: 30 de nov. 2020.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 20ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal / Claus Roxin; tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006