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Modulação subjetiva: Um caminho possível

Esse tema se desvela de substancial importância, uma vez que a aplicação imediata do novo posicionamento pode, frente a eventual modulação, gerar contradições deletérias em relação às condutas adotadas.

5/10/2022

O intricado tema do estabelecimento de regras transicionais, em face da alteração de um certo panorama jurídico estabilizado, ganhou mais notoriedade, principalmente diante do sistema de precedentes judiciais consolidado pelo atual Código de Processo Civil.

Afinal de contas, a superação de padrões decisórios vinculantes envolve a compreensão prévia de que os referenciais decisórios orientam pautas de conduta e, portanto, desvela-se fundamental tutelar a confiança legítima, de forma a impedir que as mudanças sejam sempre marcadas por um tom abrupto.

O tema não é novo e, no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade, já havia autorização para que o tribunal modulasse os efeitos da decisão, a fim de que estes fossem protraídos no tempo, evitando que se desconsiderassem situações jurídicas já consolidadas1.

Nessa linha de intelecção, analisar a segurança jurídica apenas sob o prisma estático de manutenção inconteste de situações passadas é desconsiderar os seus novos paradigmas, que revelam um dever de evolução, sem rupturas abruptas, guarnecendo o mínimo de previsibilidade. Consubstancia-se, assim, a ideia de continuidade jurídica, em uníssono com o que apregoa Antonio do Passo Cabral23:

Porém, pode-se também focar o estudo da continuidade jurídica na margem permitida de alterabilidade, paradigma a partir do qual não se procura impedir a mudança, mas sim evitar transições abruptas, e assim a continuidade não só admite a mudança, como também atua para reduzir o impacto na passagem da antiga para a nova posição estável.

Portanto, quando da realização de alterações de posicionamento, surge a necessidade de utilização de mecanismos transicionais, tais como: a) compensação financeira; b) ajuda de adaptação e c) modulação de efeitos (temporal, subjetiva e territorial).

A lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, por exemplo, previu, em seu artigo 23, a necessidade de estabelecimento de um regime de transição, nas hipóteses de mudança de entendimento, que engloba, dentre outras medidas, a modulação de efeitos:

Art. 23. A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais. (Grifos nossos)

Em compasso com o enunciado normativo acima transcrito, tem-se o teor do art. 927, §3º, do Código de Processo Civil:

Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão: (...) § 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.

Teresa Arruda Alvim5 adequadamente esclarece os contornos da modulação de efeitos, de modo a destacar as suas regulares espécies:

O tipo mais comum de modulação é o temporal. Usualmente, neste tipo de modulação retira-se a retroatividade da eficácia da decisão, ou seja, a força para alcançar o passado. (...) A modulação pode dizer respeito aos sujeitos atingidos. Pode-se excluir, da abrangência dos efeitos da decisão, um universo determinado de pessoas.

Pode limitar a eficácia da decisão a determinado território, ou, ainda, dizer respeito a uma só parte da decisão.

É certo que o uso da modulação é medida excepcional e, portanto, funda-se no resguardo à confiança legítima, tal como ocorre em casos nos quais já há um nítido direcionamento de pauta de conduta. Sobre o tema, já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça, por ducto do julgado infra transcrito (a ementa traduz, adequadamente, os fundamentos determinantes do julgado):

RECURSO ESPECIAL. SEGURO DE VIDA. MUDANÇA DE JURISPRUDÊNCIA. APLICAÇÃO DO ENTENDIMENTO ANTIGO. TEORIA DA PROSPECTIVE OVERRULING. MUDANÇA DE ENTENDIMENTO PROSPECTIVA. PROTEÇÃO DA CONFIANÇA. NECESSIDADE DE PROTEÇÃO. PRECEDENTES QUALIFICADOS. NÃO INCIDÊNCIA NA HIPÓTESE. 1. Ação ajuizada em 09/01/2012, recurso interposto em 28/03/2016 e atribuído a este gabinete em 13/10/2017. 2. O propósito recursal consiste em determinar se, na hipótese de mudança de jurisprudência, a nova orientação poderia ser aplicada indiscriminadamente sobre os litígios surgidos durante a vigência do entendimento jurisprudencial anterior, ainda mais sobre aqueles já submetidos ao Poder Judiciário. 3. A teoria da superação prospectiva (prospective overruling), de origem norte-americana, é invocada nas hipóteses em que há alteração da jurisprudência consolidada dos Tribunais e afirma que, quando essa superação é motivada pela mudança social, seria recomendável que os efeitos sejam para o futuro apenas, isto é, prospectivos, a fim de resguardar expectativas legítimas daqueles que confiaram no direito então reconhecido como obsoleto. 4. A força vinculante do precedente, em sentido estrito, bem como da jurisprudência, em sentido substancial, decorre de sua capacidade de servir de diretriz para o julgamento posterior em casos análogos e de, assim, criar nos jurisdicionados a legítima expectativa de que serão seguidos pelo próprio órgão julgador e órgãos hierarquicamente inferiores e, como consequência, sugerir para o cidadão um padrão de conduta a ser seguido com estabilidade. 5. A modulação de efeitos do art. 927, § 3º, do CPC/15 deve ser utilizada com parcimônia, de forma excepcional e em hipóteses específicas, em que o entendimento superado tiver sido efetivamente capaz de gerar uma expectativa legítima de atuação nos jurisdicionados e, ainda, o exigir o interesse social envolvido. 6. Na hipótese, é inegável a ocorrência de traumática alteração de entendimento desta Corte Superior, o que não pode ocasionar prejuízos para a recorrente, cuja demanda já havia sido julgada procedente em 1º grau de jurisdição de acordo com a jurisprudência anterior do STJ. 7. Recurso especial conhecido e provido. (STJ - REsp 1721716/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/12/2019, DJe 17/12/2019) (Grifos nossos)

Especificamente quanto à modulação temporal, é possível que se tenham variações da superação prospectiva de entendimento, tais como:6 a) pure prospective overruling7 e b) prospective prospective overruling. No primeiro caso, o novo entendimento apenas é aplicado às situações futuras, não abrangendo sequer a hipótese em análise. Por sua vez, o prospective prospective overruling pressupõe que o novo entendimento será aplicado, no futuro, a partir de uma certa data previamente definida.

Ocorre que a doutrina não se debruça sobre as demais modalidades de modulação, nos moldes do que acima foi destacado. Assim, tem-se como opção viável a modulação subjetiva e a modulação territorial dos efeitos de determinada decisão.

Quanto aos aspectos ligados à modulação territorial, poder-se-ia imaginar a seguinte situação: Em decorrência da mudança de entendimento de uma Corte Superior, foi reconhecida a impossibilidade de cobrança de determinado tributo estadual. Porém, a exação apenas havia sido instituída em dois entes federados, de tal sorte que poderia o Tribunal modular os efeitos da decisão territorialmente, a fim de estabelecer que, para os respectivos Estados, o novo posicionamento só valerá para o futuro. Veja-se que a modulação territorial poderá servir como um salutar instrumento de preservação da segurança jurídica, diante das particularidades da situação concreta submetida ao crivo do Poder Judiciário.

Outro tipo de modulação pouco aprofundado pela doutrina e que, neste artigo, apresenta-se como um caminho possível é a modulação subjetiva dos efeitos da decisão. Esse instrumento, longe de significar potencial violação à isonomia, traduz-se em via plausível a assegurar que a alteração do panorama jurídico não signifique mudança abrupta para os que já usufruíam de determinada posição. É nítido, portanto, que, se apenas determinados sujeitos são atingidos pela modificação de posicionamento, a modulação deva se ater aos contornos subjetivos do caso.  

A acomodação dos limites subjetivos da decisão permitirá que se tutele a confiança legítima, promovendo-se um estágio de adaptação, conforme elucida Antônio de Pádua Soubhie Nogueira7:

Os métodos que podem ser utilizados pelo STF para aplicar a modulação são amplos e, portanto, compete ao Tribunal escolher cuidadosamente aquele que melhor se adapte à situação ilustrada no caso concreto, desde que, evidentemente, objetivando a proteção de princípios constitucionais balizados pela teoria da proporcionalidade. Nesse sentido, a modulação não está restrita à prospecção temporal do precedentes, podendo a Corte adotar outras ponderações que se mostrem necessárias para lidar com os impactos da interpretação constitucional, v.g., limitando os sujeitos (litigantes) afetados pela decisão (modulação subjetiva).(Grifos nossos)

A técnica de modulação subjetiva já foi, inclusive, utilizada pelo Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário 600.885, quando em jogo o debate sobre a não recepção de dispositivos do estatuto dos militares. No caso, a Suprema Corte assentou que estariam ressalvados da decisão candidatos que tivessem direitos judicialmente reconhecidos.

Em recente caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas, nos Embargos de Declaração na Ação Direta de Inconstitucionalidade 0801504-11.2022.8.02.0000, foi possível vislumbrar um excelente exemplo de aplicação prática da modulação subjetiva.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade acima referenciada teve por objetivo impugnar a lei Estadual 8.575, de 14 de janeiro de 2022, cujos termos instituíram o piso salarial dos profissionais de enfermagem. Dentre outros fundamentos utilizados para questionar a compatibilidade normativa do diploma, aduziu-se que haveria vício de iniciativa, pois o projeto de lei fora apresentado por parlamentar, quando deveria ter sido deflagrado pelo Chefe do Poder Executivo, na medida em que também altera parâmetros remuneratórios de servidores públicos. Nesse sentido, foi deferida medida cautelar na ADI, suspendendo os efeitos do diploma normativo e, consequentemente, impedindo o pagamento do novo patamar remuneratório.

Ocorre que o Estado de Alagoas, através de embargos de declaração, provocou o Tribunal de Justiça a modular subjetivamente os efeitos da medida cautelar deferida, até o julgamento de mérito da ADI, para viabilizar a continuidade do pagamento do piso salarial aos servidores públicos. Isso porque, diferentemente da iniciativa privada, o ente federativo já havia iniciado o pagamento e, portanto, a aplicação imediata dos efeitos da decisão implicaria em redução abrupta e inesperada do plexo remuneratório dos enfermeiros ligados ao Poder Público.

Percebe-se que o pleito de modulação subjetiva deduzido se perfilha com a noção acima esmiuçada da segurança jurídica sob o prisma da continuidade, a qual vincula o Estado, enquanto garantidor de direitos fundamentais. Há nítida demonstração de compromisso institucional da Administração Pública, ao buscar processos transicionais que permitam uma acomodação adequada daqueles que serão atingidos pela novel regulação comportamental.

Nessa linha de intelecção, os embargos foram acolhidos, a fim de concretizar a modulação subjetiva acima esmiuçada:

Diante do exposto, voto no sentido de CONHECER dos presentes Embargos de Declaração para, no mérito, ACOLHÊ-LOS, emprestando-lhes efeitos infringentes, a fim de permitir ao Estado de Alagoas a continuidade da aplicação da lei Estadual 8.575/22 somente em relação aos servidores públicos estaduais até o julgamento definitivo da ação direta de inconstitucionalidade. (Grifos nossos)

A Corte alagoana, assim, atenta à necessidade de suavização da mudança, permitiu que os efeitos da decisão tomada na medida cautelar fossem projetados apenas para um grupo, no caso, a iniciativa privativa, haja vista que, nessa seara, ainda não havia legitima expectativa a ser tutelada, diante da ausência de pagamento do piso salarial.

Vê-se, diante do exposto, que a modulação, seja temporal, territorial ou subjetiva, é um caminho possível à concretude da segurança jurídica, de modo a impedir rupturas na estabilidade do regramento comportamental, que venham a surpreender o jurisdicionado.

Lado outro, a discussão sobre o estabelecimento de regras de transição, ainda reacende um debate sobre a necessidade de se aguardar eventual julgamento dos embargos de declaração voltados à busca da modulação de efeitos, para que se possa aplicar a mudança de entendimento. Esse tema se desvela de substancial importância, uma vez que a aplicação imediata do novo posicionamento pode, frente a eventual modulação, gerar contradições deletérias em relação às condutas adotadas. Desse modo, melhor seria aguardar o julgamento dos embargos de declaração, como sugere o art. 44, da Recomendação 134, de 09 de setembro de 2022, do Conselho Nacional de Justiça (Dispõe sobre o tratamento dos precedentes no Direito brasileiro): “Art. 44. Recomenda-se que os embargos de declaração em que se pede a manifestação do tribunal sobre modulação sejam recebidos com efeito suspensivo.”

A título de notas conclusivas, espera-se que o presente artigo possa abrir as portas não só para a aplicação prática da modulação subjetiva, mas também para o seu amadurecimento teórico.

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1 Vale destacar, assim, o teor do art. 27, da Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999: Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

2 CABRAL, Antonio do Passo. Segurança jurídica e regras de transição nos processos judicial e administrativo: introdução ao art. 23 da LINDB. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 44. 

3 Em linha de convergência, manifesta-se Humberto Ávila: “Como visto acima, o princípio da segurança jurídica, na sua acepção de exigência de calculabilidade, veda mudanças que colham o cidadão de surpresa, sem que ele possa se preparar para a introdução de um novo regime jurídico.” (ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2021, 648.)

4 ALVIM, Teresa Arruda. Modulação na alteração da jurisprudência firme ou de precedentes vinculantes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 141-142. 

5 Registre-se que a possibilidade de modulação de efeitos não se restringe ao controle de constitucionalidade, abrangendo,  também, o controle de legalidade dos atos administrativos, a partir da aplicação analógica do art. 27 da Lei nº 9.868/1999 e do art. 23 da LINDB. Sobre o tema, vide: OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Precedentes no Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Forense, 2018. 

6 VILLA, Alberto. Overruling processuale e tutela delle parti. Torino: Giappichelli, 2018, p. 53. A prospective overruling também é denominada de “sunbursting”, em razão do célebre caso Great Northern Railway Company v. Sunburst Oil & Refiting Company. No caso, a Supreme Court of Montana superou seu precedente de 1921, mas limitou a aplicação do novo entendimento aos casos futuros, resolvendo o caso concreto com base no antigo precedente (pure prospective overruling). 287 U.S. 358 (1932). Sobre o tema, vide: SCHAEFER, Walter V. The control of Sunbursts: Techniques of Prospective Overruling. New York University Law Review, v. 42, 1967, p. 633- 634; FAIRCHILD, Tomas E. Limitation of new judge-made law to prospective efect only: “prospective overruling” or sunbursting. Marquete Law Review, v. 51, 1968, p. 255.

7 NOGUEIRA, Antônio Pádua Soubhie. Modulação dos efeitos das decisões no Processo Civil. Tese de Doutorado apresentada no Programa de Pós-Graduação em Direito Da Universidade de São Paulo – USP. 2013. 

Rafael Carvalho Rezende Oliveira
Pós-doutor pela Fordham University School of Law (New York). Doutor em Direito pela UVA-RJ. Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-RJ. Especialista em Direito do Estado pela UERJ. Professor. Ex-defensor Público Federal. Procurador do Município do Rio de Janeiro. Sócio-fundador do escritório Rafael Oliveira Advogados Associados. Árbitro e consultor jurídico.

Luís Manoel Borges do Vale
Procurador do Estado de Alagoas, nomeado Procurador Federal, Ex-Advogado da Petrobras, Doutorando pela Universidade de Brasília - UnB, Mestre em Direito Processual pela Universidade Federal de Alagoas, Especialista pela Ohio University, Professor de Direito Processual Civil na Pós-Graduação da UERJ, na Escola Superior da Magistratura de Alagoas - ESMAL, na Escola da Advocacia-Geral da União e nos cursos ATC e FORUM , membro da Internacional Association of Privacy Professionals - IAPP, do Instituto Brasileiro de Direito Processual - IBDP e da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo - ANNEP.

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