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Assédio moral e o sofrimento ‘reduzido’ das vítimas

Aborda o assédio moral sob a perspectiva de suas vítimas e a lógica reducionista do sofrimento humano nas organizações.

22/9/2022

O assédio moral é uma conduta que serve de moldura para diferentes formas de violação de direitos, característica que confere imprecisão e complexidade ao fenômeno. Essa moldura conformadora corresponde a um quadro de marcadores ou requisitos necessários à definição e enquadramento da violência.

Ocorre que reduzir o assédio moral a uma ação nuclear determinada dificultaria sobremaneira o reconhecimento das inúmeras situações vexatórias que acometem as suas vítimas no ambiente de trabalho.  Talvez a imprecisão conceitual seja a principal razão para o uso inadequado do termo em situações não correspondentes, o que de certa maneira, dificulta o reconhecimento do dano moral nas reclamações trabalhistas. Por decorrência, a sua definição evidencia a FORMA e não o CONTEÚDO DA VIOLAÇÃO (direito desrespeitado). A conduta pode compreender diferentes ilícitos, a exemplo do crime de injúria racial, do racismo, da calúnia e da difamação. Quando o direito fundamental violado é aquele à igualdade, o assédio moral ganha contornos discriminatórios.

Corroborando esse entendimento, os autores Martinez e Carvalho Júnior (2022) reforçam que

O assédio moral no trabalho não comporta delimitação conceitual precisa, mesmo porque suas manifestações são proteiformes: assumem distintas modalidades de expressão. Em todas elas se constata a violência psicológica no meio ambiente laboral, consistente na exposição do trabalhador a condutas humilhantes, vexatórias, constrangedoras, repetitivas e prolongadas, tornando-o tóxico e nocivo. (MARTINEZ e CARVALHO JÚNIOR, 2022,  p.8)

A violência moral se manifesta por diferentes comportamentos opressores, incidentes de modo sistemático e reiterado por um longo período. Em muitos casos, a sua intensidade evolui e se diversifica com o passar do tempo, aprofundando os danos causados. Com o encurtamento dos vínculos laborais, a noção de ‘longo período’ se relativiza a cada dia, o que de alguma forma desloca a nossa atenção e ênfase para a intensidade e gravidade das ocorrências, sem afastar o critério de ‘repetição’.  Caracterizam o assédio moral:

O assédio moral laboral compreende atos vexatórios, hostis, intimidatórios, em acepção mais ampla, degradantes, dirigidos aos pares no meio ambiente de trabalho por diferentes canais (postagens nas redes sociais, mensagens via WhatsApp ou Messenger, SMS, e-mails).

A violência não decorre necessariamente da hierarquia organizacional, mas de uma dessimetria de poder ou influência. Entendo que a conduta independe de hierarquia imposta pelos cargos ocupados, não obstante a condição facilite a sua ocorrência e duração. A pessoalidade que nutre o assédio moral corrobora esta afirmação. Aquele (a) que pratica a violência (moral ou psicológica) comporta-se de modo a externalizar por seus atos um significado pessoal desejado, quase sempre, visando oprimir, destruir, anular, diminuir, subjugar, afastar, excluir, usar e desestabilizar emocionalmente seus alvos, inclusive, manipulando a sua autovisão. Os motivos acompanham o agente. Todavia, se pensarmos a hierarquia sob uma perspectiva ampliada, considerando, nesta análise, como o sujeito se vê ou se projeta em relação ao (à) outro (a), pode-se dizer que é uma violência assentada na hierarquia e dessimetria de forças.

A prática do assédio moral corporativo consolida-se a partir de uma polaridade de influências, onde um polo “comanda” a relação e o outro “aceita” passivamente as coordenadas (temporariamente ou não), incitado por condicionantes diversos. Essa polaridade nem sempre é de natureza funcional, mas, indubitavelmente, cria uma hierarquia invisível, informal e não legitimada de poder. Por esse ângulo, o assédio no âmbito trabalhista também alcança indivíduos pertencentes a um mesmo nível hierárquico (assédio moral de linha ou horizontal). Não obstante se reconheça essa possibilidade, o assédio mais observado é o vertical, incidente sobre a mão-de-obra situada na base da hierarquia funcional. (VASCONCELOS, 2015, p. 822)

Nem sempre o assédio moral decorre do uso abusivo das prerrogativas patronais ou diretivas, apesar da recorrência assustadora.

É também correto afirmar que nem todo excesso patronal se configura como assédio. Significa dizer que podemos estar diante da extrapolação direta das faculdades do poder de gestão, o que per si é censurável tanto do ponto de vista social como jurídico, e não ser assédio moral.

Isto é, pode ser que o uso arbitrário das faculdades empresariais não implique vulneração aos direitos da personalidade do trabalhador, enquanto na proteção em face do assédio sempre se recorre a normas de tutela de direitos fundamentais da dignidade da pessoa humana. (CASTRO, 2014, p.27)

O assédio, independente da natureza, compreende sempre comportamentos indesejados, invasivos, socialmente censuráveis, marcados pelo ‘excesso’, ultrapassando os limites impostos pelo invólucro imaterial que comporta a nossa dignidade.

A conduta viola direitos da personalidade, a exemplo daquele à honra, à imagem e intimidade. “Uma vez compreendida a acepção do abuso de direito, o assédio moral é sempre uma conduta abusiva.” (CASTRO, 2014, p.26)

Trata-se de um fenômeno dotado de direção e sentidos diversos, operando-se vertical e/ou horizontalmente. O assédio moral vertical se dá, como o próprio nome sugere, entre pessoas de níveis hierárquico-funcionais distintos (administração – subordinada (o); subordinada (o) – administração); já o assédio horizontal é o assédio de linha, entre colegas. O assédio moral misto ou híbrido é aquele que se inicia verticalizado e se expande em todas as direções, o que muitas vezes dificulta intervenções gerenciais focadas na origem do conflito improdutivo. (VASCONCELOS e BERTINO, 2021)

A repercussão do assédio moral na vida da (o) trabalhadora/ trabalhador sobrevive ao vínculo de emprego com a organização ou pessoa natural contratante.

Esta sobrevida, possivelmente, é a face mais cruel da violência porque desencadeia bloqueios e traumas diversos, afetando o significado atribuído ao trabalho.

Importa salientar que

(...) em um local de trabalho seguro, pessoas não são impedidas pelo medo interpessoal, elas se sentem dispostas e capazes de aceitar os riscos inerentes da franqueza. Temem restringir sua total participação mais do que temem compartilhar uma ideia potencialmente sensível, ameaçadora ou errada. A organização sem medo é aquela em que o medo interpessoal é minimizado para que a equipe e o desempenho organizacional possam ser maximizados em um mundo de conhecimento intensivo, não uma organização desprovida de ansiedade sobre o futuro! (EDMONDSON, 2020, posição 190)

As vítimas de assédio têm recorrentemente seus sentimentos e emoções contidos e cerceados, seja pela indiferença social, pelo alheamento e omissão velada, seja por medo ou pela (in)consciente psiquiatrização do estado mental de quem sofre a violência (“Ah! Deixa isso pra lá!”; “Com certeza, Fulano(a) não teve a intenção”; “Isso é coisa de sua cabeça.”; “Liga não! Não vale a pena”; “Nem percebi.”; “Não quero me envolver.”; “Não prestei atenção.”). Essa imobilização emocional as afasta do alívio do desabafo, da escuta ativa, da acolhida fraterna, enfim, do apoio e enfrentamento adequados. A desaceitação da fala das vítimas produz o seu esvaziamento o que, a meu sentir, representa uma segunda violência, inequívoco indício de insegurança psicológica.

As organizações se constituem  por  meio  de  suas  culturas  e  paradigmas  decorrentes.  Os relacionamentos e o ambiente de  trabalho  refletem  esses  elementos.  Dessa realidade decorre que ambientes permissivos são  facilitadores  de  abusos. (VASCONCELOS e BERTINO, 2021, p. 20)

De fato,

"(...) quando as pessoas têm segurança psicológica no trabalho, sentem-se à vontade para compartilhar suas preocupações e erros sem medo do constrangimento ou represália. Elas estão confiantes que podem falar abertamente e não serão humilhadas, ignoradas ou culpadas. Sabem que podem fazer perguntas quando não estão certas sobre algo. Tendem a confiar em seus colegas e a respeitá-los."(EDMONDSON, 2020, posição 209)

A repressão emocional vivenciada pela pessoa assediada prolonga o seu sofrimento, alimentando a sensação de desvalor e impotência. É como se aquela dor não importasse, um movimento que denomino de ‘redução do sofrimento’. Acredito que esta seja uma das explicações para a subnotificação das ocorrências de violência moral no ambiente organizacional. Realmente,

(...) o tempo da violência, a omissão da administração e a conivência dos pares estabelecem um padrão de comportamento que desumaniza e normaliza a conduta, criando um ambiente de trabalho hostil, indiferente ao sofrimento do outro, portanto, propício à sua reprodução, nefário ao desenvolvimento profissional. (VASCONCELOS, 2022)

A partir dos dados coletados em minha pesquisa, fiz uma leitura-síntese acerca da repercussão da conivência dos pares e da omissão patronal diante da violência.  Como se sentem as vítimas de assédio moral?

Aqui jaz uma voz cujo ânimo não pulsa. Fala que morre é vida sem expressão que, frustrada e emocionalmente exaurida, desata-se de si. 

Aqui jaz uma voz...sentenciada por julgamentos silenciosos que psiquiatrizam a sua dor, silenciada pela opressão simbólica das vozes que minimizam seu sofrimento...culpada por sofrer, calada em sua tristeza.

Fala que morre produz, além de dor, medos e silêncios, prolongando a sensação de desamparo. Fala que morre abre feridas e abismos sociais.

A pessoa da fala que morre deixa de resistir para existir, e o que importa se não o silêncio? É que o silêncio não incomoda os ouvidos dos que não querem escutar.  

É oportuno destacar que

“A autoestima do ser humano é influenciada por uma série de fatores que são construídos psíquica e socialmente, sendo o afeto e as emoções elementos fundamentais dentro dessa construção.” (OMAIS, 2018, p.58)

O ambiente de trabalho não é um lugar ‘neutro’, isento de afetos e reações emocionais. A indiferença naturaliza o assédio moral, contribuindo para a sua longevidade e expansão, alcançando novos alvos.

A ideologia neoliberal da resiliência transforma experiências traumáticas em catalisadores para o aumento do desempenho. Fala-se até mesmo de crescimento pós-traumático. O treino de resiliência como treino de resistência espiritual tem de formar, a partir do ser humano, um sujeito de desempenho permanentemente feliz, o mais insensível à dor possível. (HAN, 2021, posição 61)

E assim muitas vítimas são condenadas ao silêncio, à solidão e crescente invisibilidade.

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CASTRO, Cláudio Roberto Carneiro de. O que você precisa saber sobre o assédio moral nas relações de emprego? Doutrina, jurisprudência e casos concretos atuais. São Paulo: LTr, 2014.

EDMONDSON, Amy C. A. Organização Sem Medo: Criando Segurança Psicológica no Local de Trabalho para Aprendizado, Inovação e Crescimento. Rio de Janeiro: Alta Books, 2020.

HAN, Byung-Chul. Sociedade paliativa: a dor hoje. Tradução Lucas Machado. – 1. ed. – Petrópolis, RJ : Editora Vozes, 2021.

MARTINEZ, Luciano. CARVALHO JÚNIOR, Pedro Lino de.  Assédio Moral Trabalhista: Ações Coletivas e Processo Estrutural. São Paulo: SaraivaJur, 2022.

OMAIS, Saúla. Manual de Psicologia positiva. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2018.

VASCONCELOS, Yumara Lúcia. Assédio moral no meio ambiente de trabalho. Migalhas de peso, n. 5.423, disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/372260/assedio-moral-no-meio-ambiente-de-trabalho

VASCONCELOS, Yumara Lúcia. Assédio moral nos ambientes corporativos. Cad. EBAPE.BR, v. 13, nº 4, Artigo 9, Rio de Janeiro, Out./Dez. 2015.

VASCONCELOS, Y. L., & BERTINO, R. M. J. (2021). Limites do poder diretivo do gestor nas relações de trabalho: uma análise de casos de assédio moral e profissional. Revista Eletrônica do Curso de Direito Da UFSM, 15(3), 2021, e37184. https://doi.org/10.5902/1981369437184

Yumara Lúcia Vasconcelos
Docente e pesquisadora da UFRPE, pós-doutora em Direitos humanos (UFPE), doutora em Administração (UFBA), especialista em Direito civil e em Filosofia e teoria do Direito (PUC MINAS).

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